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Esfera pública e comunicação de massa 97!

PARTE II ± DIREITOS, DEMOCRACIA E MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA

4. A CONTRIBUIÇÃO DA TEORIA DO DISCURSO 87!

4.3 Esfera pública e comunicação de massa 97!

Conforme explicitado acima, a categoria da esfera pública foi primeiro apresentada por Habermas tendo por pano de fundo uma fase histórica específica da sociedade burguesa. Assim, D DVFHQVmR H SRVWHULRU GHVLQWHJUDomR GD ³HVIHUD S~EOLFDEXUJXHVD´UHWUDWDGDSRU+DEHUPDVVHGino contexto da transformação dos espaços de discussão racional da vida política burguesa do século XVII para uma sociedade de cultura de massa, grandes corporações, elites dominantes e de capitalismo monopolista. Habermas retrata, assim, o enfraquecimento das funções críticas da esfera pública liberal, que passa a ser cenário de conflitos violentos e concorrência de interesses privados.

Em sua obra mais madura, ³Direito e Democracia: entre facticidade e

validade´ a categoria de esfera pública é retomada por Habermas não como uma

descrição histórica de uma estrutura realmente existente, mas como categoria analítica. De fato, Habermas é um dos pensadores que mais profundamente pensou acerca da circulação do poder político em uma sociedade dominada pela influência dos meios de comunicação de massa e, nesse panorama, a noção de esfera pública se revela especialmente fértil.

Segundo textos mais recentes de Habermas, a esfera pública pode ser conceituada como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; trata-VHGHXPD³HVWUXWXUDFRPXQLFDFLRQDOGRDJLURULHQWDGD SHOR HQWHQGLPHQWR´ HABERMAS, 2003b:92) na qual se condensam as opiniões públicas, formando uma estrutura intermediária entre o sistema político e os setores privados do mundo da vida.

Para Habermas (2006:415), o centro do sistema político consiste de instituições formais como os parlamentos, os tribunais, as agências da administração pública e o governo. Cada ramo do sistema político pode ser descrito como uma arena deliberativa especializada, e os seus produtos ± decisões legislativas, programas políticos, decisões judiciais, medidas administrativas, entre outros ± são resultado de diferentes tipos de processos institucionais de deliberação e negociação.

Já a esfera pública, que se encontra na periferia do sistema político, possui estrutura ramificada, formando esferas públicas mais ou menos especializadas por temas57, diferenciando-se ainda quanto à sua complexidade e alcance em esfera pública episódica, esfera pública de presença organizada e esfera pública abstrata, produzida pela mídia. Essas esferas públicas especializadas, que compõem e LQWHJUDP D ³HVIHUD S~EOLFD JHUDO´ VmR SDUD +DEHUPDV SRURVDV GRWDGDV GH YDVRV comunicantes, sem fronteiras rígidas entre si.

Figura 2 - Representação da esfera pública, conforme Habermas (2003b; 2006)58 Fonte: Elaboração da autora

A esfera pública tem a função de identificar e interpretar os problemas sociais e, por meio de procedimentos deliberativos, fornecer uma pluralidade de opiniões públicas que, por sua vez, exercerão influência sobre a esfera política, conferindo

57 Por exemplo, esferas públicas literárias, religiosas, artísticas, feministas, etc.

58 A representação gráfica tem a finalidade de organizar a discussão subsequente, e não de esgotar

as diferentes dimensões da esfera pública, que dialoga, também com conceitos como Espaço Político, Espaço Público, Espaço Comum e Espaço Privado. Para uma outra representação dos diferentes subespaços sociais que fazem interface com a esfera pública, v. SILVA (2006:41ss).

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99 legitimidade às decisões ali tomadas. Dessa forma, espera-se que o processo de deliberação na esfera pública cumpra três funções (HABERMAS, 2006:416): (i) mobilizar e agregar questões relevantes, levantar informações necessárias e especificar interpretações possíveis; (ii) processar tais contribuições de forma GLVFXUVLYD SRU PHLR GH DUJXPHQWRV DGHTXDGRV H LLL  JHUDU SRVLo}HV GH ³VLP´ RX ³QmR´ racionalmente motivadas.

Habermas dedica atenção ao papel dos meios de comunicação de massa na IRUPDomR GD HVIHUD S~EOLFD H PDLV SUHFLVDPHQWH j ³LPDJHP GLfusa da esfera pública veiculada pela sociRORJLD GD FRPXQLFDomR GH PDVVD´ 1mR UHVWDP G~YLGDV de que o modelo deliberativo e a noção de esfera pública devem ser discutidos à luz das características que os meios de comunicação de massa imprimem aos processo de deliberação, em particular (i) a ausência de interação face a face entre participantes presentes, engajados em uma prática compartilhada de tomada coletiva de decisão; e (ii) a falta de reciprocidade entre os papéis dos falantes e dos ouvintes na troca de argumentos e opiniões.

Para Habermas (2006:418), apesar da estrutura impessoal e assimétrica das comunicações de massa, seria possível, em condições favoráveis, que a esfera pública gerasse opiniões públicas consistentes, aptas a influenciarem e serem consideradas pelo sistema político, fruto do debate sobre questões relevantes, à luz da avaliação das informações necessárias e com base em contribuições apropriadas.

Desenvolvendo sua visão sobre o funcionamento da esfera pública, Habermas procura distiQJXLU HQWUH RV ³DWRUHV´ TXH VH DSUesentam nas arenas públicas, e RV ³HVSHFWDGRUHV´ TXH VH HQFRQWUDP QDV JDOHULDV Nesse contexto, afirma o autor, os profissionais da mídia produzem um discurso de elite, alimentados por atores que lutam por acesso e influência sobre a mídia, oriundos de três pontos de entrada: (i) os políticos e os partidos ingressam já a partir do centro do sistema político; (ii) lobistas e grupos de interesses especiais se originam a partir dos pontos privilegiados dos sistemas funcionais e grupos que eles representam; e (iii) defensores de causas, grupos de interesse público, igrejas, movimentos sociais e intelectuais são oriundos do ambiente da sociedade civil (Habermas, 2006:417).

Entre esses diferentes atores, há que se diferenciar entre aqueles que dispõem naturalmente do poder de organização, de fontes e de potenciais de

ameaça e os atores que surgem do público, sem grande poder organizacional. No primeiro grupo, estariam tipicamente os partidos políticos estabelecidos e organizações econômicas, apoiados numa base própria para influenciar a esfera S~EOLFD TXHQmR QHFHVVLWDP GH ³SURWHWRUHV´ SDUD DQJDULDU RV UHFXUVRV financeiros, organizacionais e de conhecimento necessários para atuar na esfera pública. No segundo grupo estariam os movimentos sociais, que necessitam preliminarmente produzir sua própria identidade e definir sua legitimação, para então se engajarem na luta pelas suas políticas pragmáticas.

Um terceiro grupo a ser considerado é o dos próprios profissionais da mídia, responsável pela seleção e pelas estratégias de elaboração das informações a serem postas no ar, o que lhes permite intervir tanto na formação das opiniões públicas quanto na distribuição de interesses influentes. Do ponto de vista da legitimidade democrática, o poder da mídia não seria um problema, para Habermas, desde que os jornalistas operassem de forma independente tanto do sistema político quanto do sistema econômico (HABERMAS, 2006:419-420).

A crença de Habermas na possibilidade de realização de processos deliberativos na esfera pública (marcada pelo papel dos meios de comunicação de massa e pela distribuição desigual de possibilidades de comunicação de massa) se apoia em dois elementos: (i) na independência dos meios de comunicação face às elites políticas e econômicas; e (ii) na possibilidade de empoderamento dos cidadãos para tomarem parte nos processos de discurso público (HABERMAS, 2006:419-420):

³$ FRQVWUXomR FRPXP GD RSLQLmR S~EOLFD FHUWDPHQWH FRQYLGD RV DWRUHV D intervirem estrategicamente na esfera pública. Contudo, a distribuição desigual dos meios para tais intervenções não necessariamente distorce a formação de opiniões públicas. Intervenções estratégicas na esfera pública devem, sob pena de correr o risco de ineficiência, obedecer às regras do jogo. E uma vez que as regras estabelecidas constituam o jogo certo ± um jogo que prometa a geração de opiniões públicas consideradas ± então mesmo os atores poderosos somente contribuirão para a mobilização de questões, fatos e argumentos relevantes. Contudo, para que as regras do jogo certo possam existir, duas coisas devem antes ser conquistadas. Primeiro, um sistema de mídia autorregulador deve manter sua independência face aos seus ambientes, ao passo que conecta a comunicação política na esfera pública tanto com a sociedade civil quanto com o centro político. Segundo, uma sociedade civil inclusiva deve empoderar os cidadãos para participar e responder a um discurso público

101 que, por sua vez, não deve degenerar para uma forma de comunicação colonizDGRUD´59.

Apesar dessa possibilidade teórica, Habermas reconhece que há o risco de que a estrutura de poder da esfera pública, na prática, venha a distorcer a dinâmica das comunicações de massa; nesse sentido, salienta a importância de questionar até que ponto as tomadas de decisão do público são autônomas, fruto de um processo de convencimento, ou se são fruto de um processo camuflado de poder.

Sob essa ótica, a avaliação de Habermas acerca da esfera pública moderna é pessimista (2003b:106ss): enquanto na esfera pública burguesa por ele retratada a opinião pública era formada pelo debate e pelo consenso dos cidadãos, a esfera S~EOLFD ³PRGHUQD´ VH HQFRQWUD, em sua visão, dominada pelas elites políticas, econômicas e midiáticas, de modo que a opinião pública, em geral, representa apenas o resultado do agir estratégico de grupos dominantes em busca de seus próprios interesses. O papel assumido pela mídia, nesse cenário, não é o de propiciar o discurso racional, mas de limitar o discurso público àqueles temas de interesse do sistema político ou das grandes corporações, apresentados para um público passivo que, no mais das vezes, se limita ao papel de espectador. Para além das patologias decorrentes da insuficiente ou incompleta diferenciação do sistema de mídia do sistema político e dos grupos de interesses especiais, Habermas chama ainda a atenção para os riscos de colonização da esfera pública por imperativos de mercado, evidenciada pela personalização das questões objetivas, pela mistura entre informação e entretenimento, pela elaboração episódica e pela fragmentação de contextos, conduzindo à despolitização profunda da comunicação pública.

Não obstante a dificuldade empírica de verificar como e até que ponto os meios de comunicação de massa afetam os fluxos de comunicação da esfera

59 7UDGXomR OLYUH GH ³7KH FRPPRQ FRQVWUXFW RI SXEOLF RSLQLRQ FHUWDLQO\ LQYLWHV DFWRUV WR LQWHUYHQH

strategically in the public sphere. However, the unequal distribution of the means for such interventions does not necessarily distort the formation of considered public opinions. Strategic interventions in the public sphere must, unless they run the risk of inefficiency, play by the rules of the game. And once the established rules constitute the right game²one that promises the generation of considered public opinions²then even the powerful actors will only contribute to the mobilization of relevant issues, facts, and arguments. However, for the rules of the right game to exist, two things must first be achieved: First, a self-regulating media system must maintain its independence vis-a-vis its environments while linking political communication in the public sphere with both civil society and the political center; second, an inclusive civil society must empower citizens to participate in and respond to a public discourse that, in turn, must not degenerate into a colonizing mode of FRPPXQLFDWLRQ´

S~EOLFD +DEHUPDV Gi rQIDVH jV UHDo}HV ³QRUPDWLYDV´ DR IHQ{PHQR GR SRGHU GD mídia, apoiando-se em autores vinculados à economia política da comunicação para sugerir as tarefas que deveriam ser preenchidas pela mídia. Em síntese, segundo ele,

³RV PHLRV GH PDVVD GHYHP VLWXDU-se como mandatários de um público esclarecido, capaz de aprender e de criticar; devem preservar sua independência frente a atores políticos e sociais, imitando nisso a justiça; devem aceitar imparcialmente as preocupações e sugestões do público, obrigando o processo político a se legitimar à luz desses temas. Por este caminho se neutraliza o poder da mídia e se impede que o poder administrativo ou social seja transformado em influência político-SXEOLFLWiULD´ (2003b:112).

Essas diretrizes, para Habermas, apontam para a possibilidade de que os DWRUHV VRFLDLV H SROtWLFRV ³XWLOL]HP´ D HVIHUD S~EOLFD QD PHGLGD HP TXH possam oferecer contribuições convincentes para os problemas percebidos pelo público ou inseridos na agenda pública por seu consentimento.

Habermas afirma que, em geral, os fluxos de comunicação na esfera pública assumem uma dinâmica centrífuga (do centro para a periferia), visto que os temas que são colocados na ordem do dia e pautados pela mídia normalmente se originam dos dirigentes políticos, dos detentores do poder ou dos poderosos e bem- organizados produtores de informações para os meios de comunicação de massa. Para ele, existe, porém, a possibilidade de que forças que se encontram fora do sistema político ± os atores da sociedade civil ± assumam um papel ativo na mobilização da esfera pública, gerando pressão da opinião pública e invertendo, assim, a direção convencional do fluxo de comunicação na esfera pública e no sistema político.

3DUD+DEHUPDVD³SHULIHULD´ tem sensibilidade maior para novos problemas, o que permite a ela captá-los e identificá-los antes dos centros políticos de poder. Para OHYDU WDLV WHPDV DR ³FHQWUR´ D VRFLHGDGH FLYLO GHYH QR HQWDQWR, fazer com que passem pela abordagem controversa da mídia, requisito inevitável para que atinjam RJUDQGHS~EOLFRHSDVVHPDFRQVWDUGD³DJHQGDS~EOLFD´

Embora Habermas não avance no sentido de oferecer sugestões concretas sobre como promover a inversão do fluxo de comunicação na esfera pública da periferia em direção ao centro, os aportes teóricos por ele trazidos, relativos ao papel da mídia e dos diferentes atores que nela se engajam, aplicam-se com

103 perfeição à discussão sobre a introdução de mecanismos de pluralismo interno na programação televisiva, na medida em que viabilizam a assunção, por atores não vinculados aos proprietários dos meios de comunicação, de um papel relevante e permitem a introdução, no sistema político, de conflitos existentes na periferia.

A discussão sobre pluralismo interno na radiodifusão se relaciona, adicionalmente, com duas vertentes do Estado democrático de direito descritas por Habermas: (i) a GHIHVDGHXPD³VLWXDomRGHIDOD´LQFOXVLYDOLYUHGHFRHUomRDEHUWDH simétrica, que permita a realização de processos democráticos de formação da vontade pública; e (ii) o reconhecimento e defesa de uma sociedade cultural e socialmente diversa, unida pelo reconhecimento de direitos fundamentais que contêm um teor universalista de significado, por mais que se vejam polemizados a partir de horizontes de interpretação diversos60.