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PARTE II ± DIREITOS, DEMOCRACIA E MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA

3. CONTEXTUALIZAÇÃO DO DEBATE 54!

3.2 A ênfase nos processos políticos de participação 63!

3.2.2 Neorrepublicanismo 67!

O pensamento republicano sofreu muitas inflexões ao longo de sua evolução, culminando, em anos mais recentes, em um movimento chamado de revitalização republicana ³5HSXEOLFDQ 5HYLYDO´ ou, mais comumente, de neorrepublicanismo.

30 Neal e Paris (1990), por exemplo, afirmam ser no mínimo curioso que a disputa entre as duas

correntes muitas vezes gera afirmações, por parte dos liberais, de que não existiria verdadeiramente uma disputa, ou de que o liberalismo seria perfeitamente consistente com a visão comunitária. Esse tipo de acomodação, segundo os autores, é uma estranha resposta a críticas que são, por vezes, apresentadas como cruciais e mesmo paradigmáticas. Bell (2005:228), em outra linha, sugere que as críticas comunitaristas do liberalismo podem ter sido motivadas menos por preocupações filosóficas e mais por preocupações políticas urgentes, como aquelas relacionadas aos efeitos sociais e psicológicos negativos e às tendências atomistas das sociedades modernas e liberais. No entender de Bell, independentemente da (in)consistência dos princípios liberais, a apreensão comunitarista se deveria à percepção de que as instituições e práticas tradicionais liberais teriam contribuído para o agravamento de fenômenos como a alienação política, a ganância, a solidão, a criminalidade urbana e mesmo as altas taxas de divórcio.

31 Amy Gutmann (1985:320ss) defende que as críticas do comunitarismo colocam, para o liberalismo,

um importante desafio de aperfeiçoamento, no sentido de combinar os valores comunitários com um compromisso com valores liberais básicos. Na mesma linha, Buchanan (1989:882) argumenta que apesar da pouca clareza de alguns argumentos apresentados pelo pensamento comunitário, a sua grande contribuição consiste em apontar limitações sobre o valor da autonomia e de concepções exclusivamente individualistas do bem-estar. Em sua visão, no entanto, os comunitaristas não lograram êxito em demonstrar que a tese política liberal é falsa, a não ser que ela seja entendida como uma tese que exija absoluta prioridade para direitos individuais. Para o autor, uma filosofia política que consiga assimilar o melhor do pensamento comunitarista certamente conterá uma concepção mais sutil e qualificada de direitos individuais do que aquela geralmente associada ao liberalismo, mas, seguramente, ainda conterá um firme compromisso com a ideia de direitos individuais.

Autores como Sunstein, Skinner e Pettit buscaram lançar um novo olhar sobre a tradição republicana, para enfrentar as críticas associadas ao republicanismo e repensar algumas de suas ideias centrais, como o próprio conceito de liberdade32.

As vertentes mais modernas do republicanismo apresentam uma clara aproximação ao pensamento liberal. Sunstein (1988:1566-1567), por exemplo, argumenta que embora algumas formas extremas de pensamento liberal sejam, de fato, incompatíveis com o republicanismo ± por exemplo, a visão da liberdade somente como proteção face à esfera pública, a limitação do papel do Estado à prevenção da violência, a compreensão das preferências e direitos existentes como elementos exógenos à política, o baixo valor dado à deliberação e à virtude ± há outros elementos da política liberal que são bastante próximos ao modo de pensar republicano. Um dos aspectos em que tal aproximação fica mais clara diz respeito à compreensão do conceito de liberdade. Enquanto nas concepções tradicionais havia uma nítida dicotomia entre liberdade negativa/liberalismo e liberdade positiva/republicanismo, as concepções mais recentes do republicanismo buscam transcender tal categorização, apresentando uma terceira compreensão da liberdade: a liberdade republicana, compreendida como ausência de dominação.

Pettit (2002: 51) é um dos autores dessa formulação, defendendo uma concepção de liberdade que não se enquadra em nenhum dos lados da dicotomia negativo-positivo. A concepção é negativa ao passo que requer a ausência de dominação por outros, não necessariamente o domínio sobre si mesmo. A concepção é positiva na medida que, pelo menos em um aspecto, requer algo mais do que a ausência de interferência; requer segurança contra interferência, em particular contra a interferência arbitrária33. Nesse sentido, Pettit (2002:8) defende

32 Identificando as limitações do republicanismo clássico mas, ainda assim, agarrando-se às suas

bases teóricas, Sunstein (1988:1539-1540) reconhece que, historicamente, a tradição republicana incorporou várias estratégias de exclusão ± das pessoas sem propriedade, de negros e de mulheres ± , e que em algumas de suas manifestações esta se revelou fortemente militarista. O autor reconhece, ademais, que a crença republicana na subordinação de interesses privados ao bem público carrega um risco de tirania. Ainda assim, afirma o autor, a crença tipicamente republicana na democracia deliberativa continua a influenciar tanto a doutrina jurídica quanto as avaliações contemporâneas do processo político.

33 A sutil diferença entre a liberdade negativa e a liberdade republicana, nessa formulação, é melhor

entendida por meio de exemplos. Adotando-se a concepção liberal clássica da liberdade como não interferência, deve-se aceitar que uma pessoa pode ser livre mesmo que viva em uma ditadura, desde que o ditador opte por não interferir com ela. Assim, até mesmo um escravo pode ser considerado livre, se o seu senhor não exercer sobre ele nenhuma interferência. Já a concepção alternativa apresentada por Pettit prega que uma pessoa somente será livre se ela viver em uma sociedade dotada das instituições políticas necessárias para assegurar a proteção dos indivíduos

69 que o elemento central do pensamento republicano não é, na verdade, a participação democrática como fim em si mesmo, mas a participação democrática como forma de promover a fruição da liberdade como não-dominação.

Em ³%H\RQG WKH UHSXEOLFDQ UHYLYDO´, Sunstein (1988) busca descrever os aspectos do republicanismo que, a seu ver, justificam a permanência e fortalecimento dessa linha de pensamento no período contemporâneo. São eles: (i) o compromisso com a deliberação no governo; (ii) o compromisso com a igualdade política; (iii) R FRPSURPLVVR FRP D ³XQLYHUVDOLGDGH´ RX VHMD D FUHQoD QD possibilidade de um sistema de mediação entre pontos de vista diferentes, apto a JHUDU XP DFRUGR SROtWLFR HP WRUQR GR ³EHP FRPXP´ H (iv) o compromisso com a cidadania e com a participação, compreendidos não apenas como instrumentos para o controle das instituições e dos governos, mas também como veículos para a promoção de características como empatia, virtude e sentimentos de comunidade.

Pela sua relevância para a discussão subsequente neste trabalho, vale dar breve realce a um dos elementos de dissenso entre algumas formas de liberalismo e o republicanismo, qual seja, o papel das preferências individuais na formação da vontade política coletiva.

Como visto, algumas linhas de pensamento liberal ± o pensamento pluralista, em particular ± acreditam que o governo deve agir como um simples agregador de preferências individuais, sem exercer sobre elas qualquer juízo de valor; nessa toada, o principal motivador para a participação política seria a busca pela satisfação de interesses individuais, e não, como na tradição republicana, a virtude cívica e o desejo pelo bem comum. Formas mais recentes do republicanismo, especialmente a de Cass Sunstein (1991:12-13), divergem dessa visão. Para Sunstein, por exemplo, a meta da democracia deve ser não apenas a de assegurar a autonomia dos cidadãos na satisfação de suas preferências, mas, mais importante, de assegurar a autonomia nos processos de formação de preferências. Para ele, decisões governamentais não devem ser justificadas simplesmente pela referência a preferências existentes; pelo contrário: um governo democrático deve, em alguns

contra o exercício arbitrário do poder. Assim, enquanto a liberdade negativa não se encontra necessariamente vinculada a uma forma particular de governo, a liberdade republicana exige, como pressuposto, determinada estrutura de organização do governo e de suas instituições. Voltando ao exemplo, um escravo não poderia jamais ser considerado livre, pois viveria permanentemente sob dominação, ou seja, à mercê da interferência arbitrária de seu senhor.

casos, tomar as preferências existentes como objeto de regulação e de controle, justamente como forma de assegurar o bem estar coletivo e a autonomia dos cidadãos. Em sua visão, a aceitação das preferências existentes como base para a ação política pode representar o sacrifício de importantes oportunidades de avanços sociais.

No entender de Sunstein, seria um equívoco acreditar que as preferências são fixas e estanques; pelo contrário, devem ser entendidas como resultado das informações disponíveis, dos padrões de consumo e das pressões sociais. Nem sempre a escolha que um indivíduo fará como consumidor será a mesma decisão que ele tomará como cidadão: é perfeitamente possível que uma pessoa prefira consumir programação televisiva de baixa qualidade, por exemplo, mas apoie medidas para melhorar a qualidade e variedade da programação de modo geral; ou, ainda, que opte por consumir alimentos ou drogas potencialmente prejudiciais à saúde, mas que seja favorável à divulgação de seus malefícios e à limitação de sua venda a menores de idade. Em suma: as escolhas que as pessoas fazem como participantes políticos são diferentes daquelas que elas fazem como consumidores, e, portanto, em alguns casos, é justificável a ação reguladora do governo sobre mercados.

O autor exemplifica essa assertiva fazendo menção em particular à necessidade de ação governamental nos campos da radiodifusão e da promoção da cultura, no apoio a programas de alta qualidade e na divulgação de notícias de interesse público. Esse tipo de ação governamental tem, a seu ver, o condão de gerar novas preferências, gerando um aumento de satisfação e de bem estar coletivos. Nessa linha, argumenta:

³... escolhas políticas refletem um tipo de deliberação e de raciocínio, transformando valores e percepções de interesses, que é, frequentemente, capturado de forma inadequada no mercado (...) É aqui que a democracia se torna algo mais do que um mecanismo agregador, que a política não SRGHVHUUHGX]LGDjEDUJDQKDHTXHDVµSUHIHUrQFLDV¶SUp-políticas não são tomadas como o fundamento da justificação política. Se o governo puder apropriadamente responder às preferências que são baseadas em limitações nas oportunidades existentes, pode muito bem tomar iniciativas agressivas com relação às artes e à radiodifusão: subsidiando a radiodifusão pública, assegurando uma ampla gama de programas

71 diferentes, ou exigindo programação de alta qualidade insuficientemente dispoQtYHOQRPHUFDGR´34

E prossegue:

³'H IDWR D QHFHVVLGDGH GH IRUQHFHU GLYHUVDV RSRUWXQLGDGHV SDUD D formação de preferências sugere razões para sermos bastante céticos quanto a mercados irrestritos nas comunicações e na radiodifusão. Há, aqui, uma firme justificativa teórica para regulamentação governamental, incluindo a muito criticada e agora razoavelmente abandonada µIDLUQHVV

GRFWULQH¶, que exigia que os radiodifusores cobrissem questões controversas

e dessem tempo igual a visões concorrentes. Em razão dos inevitáveis efeitos da programação sobre caráter, crenças e mesmo conduta, é pouco claro que a inação governamental seja sempre apropriada em uma democracia constitucional. Na verdade, o contrário é que parece ser YHUGDGHLUR´35