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PARTE II ± DIREITOS, DEMOCRACIA E MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA

3. CONTEXTUALIZAÇÃO DO DEBATE 54!

3.2 A ênfase nos processos políticos de participação 63!

3.2.1 Republicanismo e comunitarismo 63!

Como visto, o liberalismo surge no século XVIII com forte ênfase nos direitos individuais, na propriedade privada e na limitação do poder do Estado. Essa forma de pensamento se opõe a visões tradicionalmente vinculadas ao pensamento republicano, cuja origem remonta à antiguidade clássica e ao renascimento florentino. Grosso modo, é possível associar o pensamento republicano à ideia de soberania do povo situado em uma comunidade ética, que compartilha consensos fundamentais culturalmente estabelecidos, e o pensamento liberal à ideia de prevalência de direitos fundamentais do indivíduo. É em função dessa distinção central que o liberalismo clássico se apresenta fortemente marcado pela ideia de

25 De fato, o modelo democrático liberal de Rawls enfoca prioritariamente os aspectos formais e

procedimentais da política e os momentos de decisão sobre questões fundamentais, dando pouca atenção aos espaços informais de discussão. Sob essa ótica, é compreensível porque, em sua visão, R ³XVR S~EOLFR GD UD]mR´ QmR GHYH VHU DSOLFDGR D WRGRV RV PHLRV GH FRPXQLFDomR GH PDVVD 3RU outro lado, como aponta Girard (2009:7-8), é problemático compreender como os cidadãos podem ser demandados a agir em conformidade com o uso da razão pública ao votar, se o seu ambiente midiático não lhes fornece as condições básicas para tanto.

liberdade negativa (i.e. a ausência de coação externa), como visto, enquanto o

republicanismo clássico, em geral, focaliza a ideia de liberdade positiva (i.e. a possibilidade de participação política).

Assim, é comum que as teorias liberais atribuam uma importância maior à noção de direitos fundamentais ou direitos humanos, aptos a garantir as liberdades individuais do indivíduo (eventualmente mesmo contra a vontade do legislador político26), enquanto o pensamento teórico republicano associa a liberdade à ideia de autonomia de um povo soberano capaz de se autodeterminar. Interessante notar que para o pensamento republicano, a sociedade não é formada por meros ³SRUWDGRUHV GH GLUHLWRV´ PDV SRU FLGDGmRV FXMRV GLUHLWRV GH SDUWLFLSDomR H GH comunicação política constituem-se como direitos positivos que visam a assegurar a participação na prática deliberativa de uma comunidade de pessoas livres e iguais. Como sintetiza Michelman (1989:446), para os republicanos, direitos são compreendidos, em última instância, como nada mais do que determinações da vontade política prevalecente, enquanto para os liberais alguns direitos são sempre IXQGDGRVHPXPD³OHLPDLRU´GHUD]mRRXUHYHODomRWUDQVSROtWLFD

A contraposição clássica entre a autonomia pública e a autonomia privada, entre a soberania do povo e os direitos fundamentais, é refletida também na compreensão do papel da política e do processo democrático.

Como visto, para o pensamento clássico liberal, a política tem uma função mediadora, articulando a concorrência entre atores que agem movidos por interesses próprios, buscando galgar posições de poder que lhes permitam dispor do poder administrativo. Nessa linha, os direitos políticos têm a função de oferecer aos cidadãos ³DSRVVLELOLGDGHGHFRQIHULUYDOLGDomRDVHXVLQWHUHVVHVSDUWLFXODUHV´, de modo que esses possam, ao fim, ser ³WUDQVIRUPDGRVHPXPDYRQWDGHSROtWLFDTXH

H[HUoD LQIOXrQFLD VREUH D DGPLQLVWUDomR´ (Habermas, 2002:271). Já o pensamento

republicano adota visão bastante distinta. A política é compreendida, fundamentalmente, como uma forma de reflexão sobre um contexto de vida ético27,

26 eFRPXPQRSHQVDPHQWROLEHUDODDOXVmRDRULVFRGD³WLUDQLDGDPDLRULD´FRPRIRUPDGHMXVWLILFDU

o estabelecimento constitucional de direitos fundamentais não modificáveis pela simples vontade do legislador; trata-VHGHXPDIRUPDGHFRORFDUYDORUHVFRQVLGHUDGRVIXQGDPHQWDLVDVDOYRGDV³PDLRULDV WUDQVLWyULDV´

27 A eticidade, aqui, refere-se a valores, crenças, formas de vida ou ideais compartilhados por

65 por meio da qual os cidadãos livres e iguais buscam, por via comunicativa, um entendimento mútuo28.

Impende notar que a visão de democracia do republicanismo associa o processo democrático às virtudes dos cidadãos. O estabelecimento de uma condução estritamente ética dos discursos políticos é, de fato, um dos pontos mais críticos da teoria republicana, na visão de Habermas, na medida em que (i) deposita toda a carga legitimadora do direito positivo sobre a virtude dos cidadãos; e (ii) tenderia a inviabilizar o procedimento democrático em sociedades culturalmente heterogêneas. Para Habermas, os discursos éticos são insuficientes para compatibilizar interesses e orientações de valor que se encontram em conflito em uma sociedade cultural e socialmente plural, na medida em que não conseguem transcender as tradições, visões, valores e crenças particulares dos diferentes grupos que se enfrentam.

Ao republicanismo é frequentemente vinculada a linha de pensamento chamada de ³comunitarismo´, em função da prioridade dada à comunidade sobre o indivíduo, da ênfase na participação ativa dos cidadãos nos assuntos públicos e da ideia de que os cidadãos devem possuir determinadas virtudes de modo a propiciar formas de governo equilibradas. Trata-se de forma de pensamento apresentada como reação crítica à obra de Rawls e à sua concepção de que o principal papel de uma sociedade seria o de assegurar a existência de instituições aptas a distribuir, de modo justo, as liberdades e os bens primários necessários para que os indivíduos conduzam suas vidas de forma livre. No centro da controvérsia, como bem sintetizam Cohen e Arato (1992:8), está a questão de saber se é possível, como

contrapondo-se à ideia de moralidade, que, transcendendo o ethos concreto de determinada comunidade, possui natureza universal (justiça).

28 Cattoni de Oliveira (2003:s/n) sintetiza de forma esclarecedora os mais importantes pontos de

GLIHUHQFLDomR HQWUH R SHQVDPHQWR FOiVVLFR UHSXEOLFDQR H R OLEHUDO ³(P WHUPRV HVTXHPiWLFR- comparativos, a tradição republicana, por um lado, pressupõe uma concepção política segundo a qual a Constituição, enquanto expressão da autonomia política do povo signatário de um pacto fundamental, reflete uma ordem concreta de valores, que materializa a identidade ético-cultural de uma sociedade política que se quer homogênea, e a Democracia é a forma política de plena realização dessa identidade, através de um processo de autorreflexão conjunta e do diálogo entre os cidadãos. O acento é, portanto, dado à autonomia pública enquanto meio para a autorrealização ética da comunidade. E a tradição liberal, por outro lado, pressupõe uma concepção política segundo a TXDOD&RQVWLWXLomRpXPPHFDQLVPRRXLQVWUXPHQWRGHJRYHUQR ³LQVWUXPHQWRIJRYHUQPHQW´ FDSD] de regular o embate entre os vários atores políticos que concorrem entre si, e a Democracia é um processo através do qual se elege e se estabelece o exercício de um governo legitimado por decisão da maioria. O acento é dado, agora, pelo Liberalismo, à autonomia privada enquanto exercício da autonomia moral e da escolha racionDO´

GHIHQGHPRVOLEHUDLVFKHJDUDXPDFRQFHSomRIRUPDOHXQLYHUVDOGRTXHp³MXVWLoD´ sem pressupor um conceito substantivo, histórica e culturalmente condicionado, do TXHp³ERP´SDUDGHWHUPLQDGDFRPXQLGDGH

Muito embora o comunitarismo não tenha chegado a se consolidar como uma teoria sistemática e coesa, teve o importante mérito de apontar fragilidades do pensamento liberal29. Para Kymlicka (2002: Capítulo 6), é possível identificar linhas distintas, por vezes conflitantes, do comunitarismo. Alguns comunitaristas acreditam que a comunidade substitui a necessidade de princípios de justiça; outros acreditam que justiça e comunidade são valores perfeitamente compatíveis, mas que o conceito de justiça deve ser revisto. Nessa segunda categoria, há duas correntes: a primeira argumenta que a comunidade deve ser encarada como a fonte dos princípios da justiça ± ou seja, que a justiça deve ser baseada nas compreensões compartilhadas da sociedade, e não em princípios universais; e a segunda aduz que a comunidade deveria ter uma influência maior sobre o conteúdo dos princípios de justiça ± vale dizer, a justiça deveria dar maior peso ao bem comum e menor peso aos direitos individuais.

As críticas ao liberalismo levantadas pelos comunitaristas são de diversas naturezas, enfatizando, em grande medida, o caráter fragmentado da sociedade liberal e o seu excessivo foco na autonomia e nos direitos individuais. Na síntese de Neal e Paris (1990:419-420), é possível identificar três grandes grupos de argumentos comunitaristas contra o liberalismo. Em primeiro lugar, afirma-se que o liberalismo seria excessivamente individualista e que não captaria adequadamente a dimensão histórica da comunidade e a dimensão comunitária do ser humano. Para os comunitaristas, que consideram que o indivíduo se constitui dentro de uma comunidade especifica, responsável por moldar sua forma de ser e de enxergar o mundo, o pensamento liberal pecaria ao retratar um indivíduo abstrato, totalmente apartado das relações sociais. Em segundo lugar, são levantadas fortes críticas à ideia liberal de que DVRFLHGDGHGHYHULD VHU ³QHXWUD´ FRP UHODomR DR TXH p ³ERP´ essa visão, para os comunitaristas, não compreenderia a noção de comunidade e ignoraria o fato de que sociedades liberais inevitavelmente promovem certos tipos

29 Geralmente são mencionados como centrais a essa linha teórica os estudos de Michael Sandel

(³/LEHUDOLVP DQG WKH OLPLWV RI MXVWLFH´), Alisdair MacIntyre (³$IWHU 9LUWXH D VWXG\ LQ PRUDO WKHRU\´); Michael Walzer (³6SKHUHV RI -XVWLFH´); e Charles Taylor (³3KLORVRSK\ DQG WKH +XPDQ 6FLHQFHV

67 de virtude e ignoram outros. Por fim, critica-se o liberalismo por tratar direitos como princípios transcendentais, ao invés de reconhecê-los como elementos históricos e circunstanciais das comunidades.

O debate comunitarismo versus liberalismo, embora duradouro, é considerado pouco fértil por alguns pensadores. Com efeito, vários teóricos liberais se manifestam no sentido de que os comunitaristas não teriam compreendido a teoria liberal, ou, ainda, que a teriam deliberadamente caricaturado30. Outros argumentam, ainda, que não haveria verdadeira oposição entre o pensamento comunitarista e o liberal, salientando o caráter construtivo das críticas e defendendo um liberalismo capaz de contemplar e endereçar as preocupações acerca do papel da comunidade31.