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A teoria do discurso e sua relação com outras linhas de pensamento 92!

PARTE II ± DIREITOS, DEMOCRACIA E MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA

4. A CONTRIBUIÇÃO DA TEORIA DO DISCURSO 87!

4.2 A teoria do discurso e sua relação com outras linhas de pensamento 92!

A teoria do discurso é apresentada, por Habermas, como um modelo capaz de acolher elementos tanto do liberalismo, com sua visão fortemente focada no indivíduo e nos direitos fundamentais, quanto do republicanismo, centrado na comunidade ética e nos processos de formação política da vontade e da opinião. Em WH[WRGHQRPLQDGR³2(VWDGRGHPRFUiWLFRGHGLUHLWR± uma amarração paradoxal de

54 7UDGXomR OLYUH GH ³8QGHU WKH IXQFWLRQDO DVSHFW RI mutual understanding, communicative action

serves to transmit and renew cultural knowledge; under the aspect of coordinating action, it serves social integration and the establishment of solidarity; finally, under the aspect of socialization, communicative action serves the formation of personal identities. The symbolic structures of the lifeworld are reproduced by way of the continuation of valid knowledge, stabilization of group solidarity, and socialization of responsible actors. The process of reproduction connects up new situations with the existing conditions of the lifeworld; it does this in the semantic dimension of meanings or contents (of the cultural tradition), as well as in the dimensions of social space (of socially integrated groups), and historical time (of successive generations). Corresponding to these processes of cultural

reproduction, social integration, and socialization are the structural components of the lifeworld:

93 SULQFtSLRV FRQWUDGLWyULRV"´55, Habermas se dedica a examinar a tensão entre UHSXEOLFDQLVPR ³D OLEHUGDGH GRV DQWLJRV´ DVVRFLDGD DRV GLUHLWRV GH SDUWLFLSDomR SROtWLFD GRV FLGDGmRV  H OLEHUDOLVPR ³D OLEHUGDGH GRV PRGHUQRV´ DVVRFLDGD DRV direitos subjetivos de liberdade dos cidadãos da sociedade econômica moderna), chamando a atenção para a impropriedade de se defender a existência de uma hierarquia entre o princípio dos direitos humanos e o da soberania popular (2003d:154-155):

(...) a muitos parece que a fundamentação normativa do Estado democrático de direito pressupõe o estabelecimento de uma hierarquia

entre o princípio dos direitos humanos e o da soberania popular: ou as leis,

inclusive a Lei Fundamental, são legítimas, quando coincidem com os direitos humanos, independentemente da origem e do fundamento de sua legitimidade, e, neste caso, o legislador democrático poderia decidir soberanamente, sem se preocupar com os prejuízos que daí adviriam para o princípio da soberania do povo; ou as leis, inclusive a Lei Fundamental, são legítimas, quando surgem da formação democrática da vontade. E, neste caso, o legislador democrático poderia criar uma constituição arbitrária, que iria ferir a própria Lei Fundamental, o que constituiria um prejuízo para a ideia do Estado de direito.

No meu entender, porém, essa alternativa contradiz uma intuição forte, pois a ideia dos direitos humanos, vertida em direitos fundamentais, não pode ser imposta ao legislador soberano a partir de fora, como se fora uma limitação, nem ser simplesmente instrumentalizada como um requisito funcional necessário a seus fins. Por isso, consideramos os dois princípios como sendo, de certa forma, co-originários, ou seja, um não é possível sem o outro.

Embora Habermas tenha grande proximidade com o pensamento republicano no que se refere às possibilidade de formação da vontade política por meio de práticas deliberativas, ele se afasta de tendências mais fortemente comunitárias do republicanismo, que, em algumas vertentes, reduzem os discursos políticos à virtude ou às questões éticas de determinada comunidade, resultantes de determinado horizonte compartilhado de língua, história, cultura e formas de vida. Com seu modelo de democracia deliberativa baseada na ação comunicativa, Habermas não considera racionalmente aceitáveis decisões políticas baseadas somente em consensos éticos.

Na verdade, essa posição se apoia fortemente na distinção habermasiana HQWUH ³pWLFD´ H ³PRUDO´ ou seja, HQWUH R ³ERP´ ± com referência a um contexto presente de antemão ± HR³MXVWR´± o que exige a assunção de um posicionamento

imparcial de reflexão moral que permita transcender a compreensão do mundo particular. Dito de outro modo, para Habermas, questões morais, entendidas como questões de justiça, admitem respostas justificáveis, no sentido de aceitação racional, porque se voltam para a questão de saber o que, a partir de uma perspectiva ampla, é no melhor interesse de todos. Questões éticas, por outro lado, não admitem esse tipo de tratamento imparcial, porque buscam saber o que, a partir da ótica de uma pessoa em particular, é no melhor interesse para aquela pessoa ou para seu grupo, mesmo que não seja o melhor para todos (HABERMAS, 1995a:125).

Habermas atribui posição central ao processo político de formação da opinião, baseando-se no estabelecimento de procedimentos racionais ideais para a tomada de decisões, capazes de integrar discursos éticos (ou de autoentendimento) e

discursos morais (ou de justiça), gerando resultados imparciais para a

regulamentação de questões práticas (HABERMAS, 2002:278):

Com isso, a razão prática desloca-se dos direitos universais do homem ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade e restringe-se a regras discursivas e formas argumentativas que extraem seu teor normativo da base validativa da ação que se orienta ao estabelecimento de um acordo mútuo, isto é, da estrutura da comunicação linguística.

A ênfase habermasiana nos processos comunicativos de tomada de decisão é facilmente compreendida quando se considera a importância que o autor atribui à

linguagem, entendida como um verdadeiro meio de integração social, através do

qual ³DVLQWHUDo}HVVHLQWHUOLJDPHDVIRUPDVGHYLGDVHHVWUXWXUDP´ +$%(50$6 2003a:20). À Constituição jurídico-estatal, aos direitos fundamentais e aos princípios do Estado de direito é, portanto, reservado o papel de institucionalizar ³DVH[LJHQWHV condiç}HV GH FRPXQLFDomR GR SURFHGLPHQWR GHPRFUiWLFR´ +DEHUPDV   tanto nas esferas formais de deliberação quanto nos espaços em que a opinião pública se constitui de maneira informal.

Dessa maneira, liberdade pública e liberdade privada passam a pressupor-se mutuamente, uma vez que o direito legítimo é produzido a partir do poder comunicativo, o qual necessita, por sua vez, institucionalizar-se juridicamente. Há, assim, entre o princípio democrático e o princípio de Estado de direito uma relação de complementaridade ou de influência recíproca.

95 Para Habermas (2003d), então, o princípio democrático somente pode ser concretizado juntamente com a ideia de Estado de direito. Partindo de uma FRPSUHHQVmRGDKLVWyULDFRQVWLWXFLRQDOFRPRXP³SURFHVVRGHDSUHQGL]DGR´FDSD] de corrigir a si mesmo, Habermas sustenta que a prática de autodeterminação cidadã deve ser entendida como um processo longo e ininterrupto de realização e configuração do sistema de direitos fundamentais, de modo que o princípio da soberania popular emerge da própria ideia de Estado de direito.

1D YHUGDGH HP VXD YLVmR R TXH ID] RV (VWDGRV VHUHP ³GHPRFUiWLFRV GH GLUHLWR´ p D LPSOHPHQWDomR GH GLUHLWRV IXQGDPHQWDLV TXH WrP VHPSUH XP WHRU universalista de significado, por mais que se vejam polemizados a partir de horizontes de interpretação diversos. Assim, para esse autor, há entre o princípio GHPRFUiWLFR H D LGHLD GH (VWDGR GH GLUHLWR XPD UHODomR GH ³LPSOLFDomR PDWHULDO UHFtSURFD´ R GLUHLWR HPSUHVWD IRUPD DR SRGHU SROtWLFR IXQFLRQDQGR FRPR meio de organização do poder no Estado; e o poder político, por sua vez, serve para a institucionalização do direito por parte do Estado, reforçando-o (HABERMAS, 2003a:182).

A teoria do discurso habermasiana, portanto, superando a dicotomia posta pelas concepções republicanas e liberais, afirma a inexistência de uma relação antagônica entre o princípio democrático e o princípio de Estado de direito. Assim, para Habermas, lRQJH GH FRQVWLWXLU XPD ³DPDUUDção paradoxal de princípios FRQWUDGLWyULRV´ GLUHLWR H GHPRFUDFLD GHYHP VHU FRPSUHHQGLGRV FRPR HOHPHQWRV reciprocamente constitutivos. Nesse contexto, o Estado democrático de direito está fundado, por um lado, sobre a defesa de formas deliberativas descentralizadas, por meio de um conceito processual de política deliberativa, e, por outro, sobre a coexistência, em uma sociedade altamente complexa, de diferentes formas de vida e concepções de mundo, merecedoras de igual respeito e baseadas na responsabilidade solidária geral de cada um pelo outro56. Daí resulta a legitimidade

56 ³2 mesmo respeito para todos e cada um não se estende àqueles que são congêneres, mas à

pessoa do outro ou dos outros em sua alteridade. A responsabilização solidária pelo outro como um

dos nossos se refere ao «nós» flexível numa comunidade que resiste a tudo o que é substancial e

que amplia constantemente suas fronteiras porosas. Essa comunidade moral se constitui exclusivamente pela ideia negativa da abolição da discriminação e do sofrimento, assim como da inclusão dos marginalizados ± e de cada marginalizado em particular ±, em uma relação de deferência mútua (...) a «inclusão do outro» significa que as fronteiras da comunidade estão abertas a todos ± também e justamente àqueles que são estranhos um ao outro ± e querem continuar sendo HVWUDQKRV´ +DEHUPDV 2002:7-8).

de resguardar determinados direitos e princípios da vontade das maiorias e a necessidade de aliar garantias democrático-processuais a garantias normativo- materiais. Dessa forma, a teoria do discurso associa ao processo democrático conotações normativas mais fortes do que aquelas do modelo liberal, porém mais fracas do que aquelas pressupostas no modelo republicano, como elucida o próprio Habermas (1995b):

Coincidindo com o modelo republicano, ela [a teoria do discurso] concede um lugar central ao processo político de formação da opinião e da vontade comum, mas sem entender como algo secundário a estruturação em termos de Estado de direito. Em vez disso, a teoria do discurso entende os direitos fundamentais e os princípios do Estado de direito como uma resposta consequente à questão de como institucionalizar os exigentes pressupostos comunicativos do processo democrático. A teoria do discurso não faz a realização de uma política deliberativa depender de uma cidadania coletivamente capaz de ação, mas sim da institucionalização dos correspondentes procedimentos e pressupostos comunicativos. Essa teoria já não opera com o conceito de um todo social centrado no Estado, que pudéssemos representar como um sujeito em grande escala com ação voltada para metas. Ela tampouco localiza esse todo em um sistema de normas constitucionais que regulem o equilíbrio de poder e o compromisso de interesses de modo inconsciente e mais ou menos automático, conforme o modelo da troca mercantil. (...)

A teoria do discurso, diferentemente, conta com a intersubjetividade de ordem superior de processos de entendimento que se realizam na forma institucionalizada das deliberações, nas instituições parlamentares ou na rede de comunicação dos espaços públicos políticos. Essas comunicações desprovidas de sujeito, ou que não cabe atribuir a nenhum sujeito global, constituem âmbitos nos quais pode dar-se uma formação mais ou menos racional da opinião e da vontade acerca de temas relevantes para a sociedade como um todo e acerca das matérias que precisam de regulação. A geração informal da opinião desemboca em decisões eleitorais institucionalizadas e em decisões legislativas por meio das quais o poder gerado comunicativamente se transforma em poder passível de ser empregado em termos administrativos.

Assim, a perspectiva atual de Habermas pode ser sintetizada, conforme Romão (2005:107), por meio de três elementos principais: (i) o reconhecimento das tensões sociais como condição constituinte da natureza discursiva e negocial do Direito contemporâneo; (ii) o reconhecimento das diferentes pretensões de validade de sujeitos autônomos e integrados a uma mesma comunidade jurídica pela linguagem universalizável do direito; e (iii) o reconhecimento dos direitos humanos como garantia de que todos os atingidos pelas decisões possam participar dos processos políticos e normativos dando seu assentimento (ou não) nos termos da Constituição.

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