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O Espírito Santo faz o ofício triplo de Cristo repercutir na igreja Pelo Espírito, os ministérios do cristão e da igreja reverberam o ofício triplo de Jesus

3. O sacerdócio de todos os crentes e os ofícios de Cristo e da igreja ofícios de Cristo e da igreja

3.4. O Espírito Santo faz o ofício triplo de Cristo repercutir na igreja Pelo Espírito, os ministérios do cristão e da igreja reverberam o ofício triplo de Jesus

Os ofícios do AT, de profeta, rei e sacerdote, apontam para Jesus Cristo, pois este nos salva como Profeta, Rei e Sacerdote (Dt 18.15; Jo 1.1; 6.14; Ap 17.14; 19.16; Fp 2.5-11; Hb

2.17). Calvino fala sobre isso nas Institutas:

Portanto, para que a fé ache em Cristo sólida matéria de salvação, e assim nele descanse, deve-se estabelecer este princípio, a saber: que o ofício que lhe foi

outorgado pelo Pai consta de três partes. Ora, ele foi dado não apenas como Profeta, mas também como Rei, e ainda como Sacerdote.114

O Catecismo de Heidelberg menciona a implicação disso para a vida do cristão:

Por que você é chamado cristão? Porque pela fé sou membro de Cristo e, por isso, também sou ungido para ser profeta, sacerdote e rei. Como profeta, confesso o nome dele. Como sacerdote, ofereço minha vida a ele como sacrifício vivo de gratidão. Como rei, combato nesta vida o pecado e o diabo, de livre consciência; depois, na vida eterna, vou reinar com ele sobre todas as criaturas.115

O ofício triplo de Cristo não apenas garante a salvação dos cristãos, mas também

modela o serviço deles. De acordo com Michael Horton, o Espírito atua como mediador dos

ofícios de Jesus, como segue:

O Espírito é o mediador do ministério profético de Cristo, defendendo a causa de Deus contra o mundo, convencendo-nos da culpa e dando-nos fé em Cristo. [...]. O Espírito é também o mediador do ministério sacerdotal de Cristo [...]. O Espírito não traz outra Palavra, mas produz dentro de nós o “amém” a Cristo.

O Espírito é o mediador do ofício real de Cristo ao subjugar a incredulidade e a tirania do pecado, dando aos pecadores a fé que os une a Cristo de tal modo que eles possam receber todos os dons celestiais.116

Além disso, o Espírito faz com que o triplo ofício de Jesus resplandeça no ministério de todos os cristãos:

Por meio do Espírito, o pedido de Moisés em Números 11.29 (“Tomara todo o povo do SENHOR fosse profeta, que o SENHOR lhes desse o seu Espírito!”) será cumprido além de seus sonhos mais exagerados. [...] O Espírito dá e orquestra os muitos dons derramados sobre o corpo por meio de oficiais ordenados, que diferem apenas nas graças (vocação), mas não na graça (condição ôntica), do Espírito. [...] Por meio do ministério do Espírito, nós também somos refeitos à imagem de Cristo como

profetas, sacerdotes e reis; testemunhas verdadeiras e reais no tribunal cósmico, um coro respondendo de modo antífono um louvor ao nosso Redentor.117

Horton nos ajuda a compreender que o ofício triplo de Cristo configura os três ofícios da igreja, de pastor-mestre, presbítero e diácono:

Os dons variados que o Rei ascendido derramou sobre sua igreja pelo seu Espírito incluem não apenas ofícios pertencentes à sã instrução em uma fé e governo espiritual, mas o ministério às necessidades temporais dos santos. [...] O Espírito media o ofício tríplice de Cristo, como profeta, sacerdote e rei nesta era por meio desses três ofícios de pastor-mestre, diácono e presbítero. [...].

114 CALVINO, João. As Institutas: Edição Clássica. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, ii.xv.1 [v. 2, p. 248]. Logos Software.

115 Pergunta 32, apud BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA. 2. ed. (BEG2). Barueri; São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil; Cultura Cristã, 2009, p. 1763.

116 HORTON, op. cit., p. 589, 590. Grifos nossos.

Pastores pregam e ensinam [o ofício de profeta], presbíteros dirigem [o ofício de rei] e diáconos servem [o ofício de sacerdote].118

Esse modo de compreender as coisas abre espaço para que saibamos o que são os dons espirituais, e como eles devem operar. Quando o NT descreve a igreja, fala de uma comunhão de profetas, reis e sacerdotes, servindo a Deus na dependência e poder do Espírito Santo.

4. Os dons da criação, os dons-sinais e os dons espirituais

Uma igreja comum, que se reúne semanalmente sem arroubos de emoção, essa igreja, de reuniões simples, desfruta de dons? Você, cristão que nunca ouviu Deus falando contigo em uma sarça ardente, ou que nunca experimentou um êxtase, nem falou em línguas, você, cristão comum, recebeu dons de Deus? Iniciamos o capítulo anterior falando sobre a inclinação, entre os próprios cristãos, de estabelecer diferenciação de estado entre pessoas, distinguindo os mais dos menos elevados.

Para complicar, em alguns excertos da cultura pagã (e.g., hinduísmo, budismo, helenismo sob Platão), sugere-se o caráter ilusório ou inferioridade daquilo que é material. Se a matéria é uma ilusão, ou se ela é má, a elevação da alma demanda (1) negar a realidade última da matéria; (2) transcender a matéria por meio da ascese — exercícios que conduzem à elevação da virtude e que são, grosso modo, atos de disciplina rigorosa da mente e do corpo (meditação, jejuns, autoflagelação, penitências etc.) ou de anulação da razão e subjugação do corpo pelos espíritos (transes e êxtases). Em suma, o ser humano se eleva esvaziando-se

de si mesmo e rompendo a prisão da carne.119

Nesse contexto, o anúncio de que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14), não é devidamente acolhido. A negação da realidade ou da dignidade da carne conduziu alguns a insinuar que não há ressurreição literal do corpo (1Co 15.12-14). De algum modo, a ressurreição já se realizou nos crentes misticamente, não cabendo a estes aguardar uma ressurreição física (2Tm 2.17-18). Mais: se a carne é má, Jesus Cristo não pode ter se tornado

um ser humano real. Seu corpo apenas parecia ser verdadeiramente físico ou material.120 A

possibilidade de uma divindade se tornar material e coparticipante da vida comum, não soa como algo “espiritual”. Tanto Paulo quanto João combateram tais desvios, Paulo ratificando a historicidade e realidade da ressurreição (1Co 15), João explicando que aquele que nega que Jesus Cristo veio em carne “não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo” (1Jo 4.2-3).

Corremos risco de empreender uma busca espiritual demarcada pela ruptura com as coisas criadas. E quando falamos sobre ministérios e dons espirituais, não é incomum que a 119 Podemos enquadrar a questão de outro modo, sugerindo que, ao longo de sua história, o cristianismo lida com uma tensão — que não deflui da Escrituras e sim da cultura circundante — entre racionalismo e irracionalismo.

120 Esse falso ensino é chamado de “docetismo”. Conforme algumas vertentes dos pensamentos grego e oriental, a substância divina é imutável e toda a matéria é impura. Exatamente por isso era inconcebível que Deus, um ser perfeito, assumisse um corpo material. O docetismo ensinava que Cristo não havia vindo, morrido e ressuscitado em “carne”. Ele “parecia” (dokein; “parecer”) humano, mas não era.

Numa de suas variantes, os docéticos até aceitavam que o Cristo havia assumido um corpo físico, o do homem Jesus de Nazaré, por ocasião do batismo, mas retirou-se dele antes da crucificação (esse foi o ensino de Cerinto). Para eles, o sofrimento e a morte de Jesus eram incompatíveis com a divindade de Cristo. Outra teoria docética, associada a Basílides, sugeria que ocorrera um engano, que Simão, o Cireneu, fora

crucificado em lugar de Cristo (HAGGLÜND, Bengt. História da Teologia. Porto Alegre: Concórdia, 1989, p. 18). Além disso, foram formuladas teorias para explicar o aspecto corpóreo de Cristo. Afirmou-se até que ele possuía um corpo fantasmagórico (irreal) ou que algumas partes dos relatos dos Evangelhos não eram verídicos. É por isso que, juntamente com Irineu, alguns estudiosos afirmam que o Evangelho de João foi escrito para combater o docetismo. Conforme Packer, para o apóstolo João, o docetismo era um “erro mortal inspirado pelo espírito do anticristo, uma negação mentirosa tanto do Pai como do Filho (1Jo 2.22-25; 4.1-6; 5.5-12; 2Jo 7, 9). É usualmente compreendido que a ênfase que se encontra no evangelho de João, sobre a

realidade da experiência de fraqueza humana de Jesus [...] tinha a intenção de decepar a raiz desse mesmo erro docético” (PACKER, J. I. Jesus Cristo. In: DOUGLAS, J. D. (Ed.). O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1986, v. 1, p. 501).

mente viaje para coisas que produzam arrepios na espinha, pois somos atraídos por uma religiosidade do “uau”, das coisas que espantam, impressionam, extrapolam o comum. Ao contrário dessas inclinações à negação do que é material e da vida comum, na contramão da proposição de busca de significado e realização espiritual naquilo que sobrepuja o natural, e para decepção dos que se esforçam por ostentar um estado elevado acima dos demais, a Sagrada Escritura nos convida a assumir uma atitude de gratidão, enquanto desfrutamos dos diferentes dons de Deus, sem desconsiderar aquilo que é natural e comum.

A partir daqui, fazemos três afirmações: (1) nós recebemos os dons da criação e da graça comum; (2) Deus também nos abençoa com os dons-sinais; (3) Deus nos agracia com os dons ativos ou espirituais.