• Nenhum resultado encontrado

John Ruthven: a experiência de revelação como fundamento

3. O sacerdócio de todos os crentes e os ofícios de Cristo e da igreja ofícios de Cristo e da igreja

5.3. John Ruthven: a experiência de revelação como fundamento

O pentecostalismo sempre propôs uma interpretação paradigmática de Atos e a restauração de dons extraordinários (cf. seção 2.1.1). Mesmo assim, até pouco tempo, inclusive teólogos pentecostais abraçavam a implicação de cessação do apostolado, fazendo uso (ainda que adaptado) da leitura funcional protestante. É o caso de J. Rodman Williams:

Não pode haver sucessão nem restauração do apostolado. A sucessão é

inadmissível, não só por causa do caráter único e não repetível de seu apostolado. A restauração é igualmente impossível, já que os apóstolos cumpriram seu papel e continuam seu ministério por meio dos escritos do NT. Qualquer ideia de perpetuar ou restaurar o apostolado como cargo oficial é estranha ao NT e ao propósito de Cristo para sua igreja.188

Este entendimento — de que a igreja prescinde de novos apóstolos — tem sido

questionado pela Nova Reforma Apostólica189 e pela defesa da contemporaneidade dos

dons, proposta por Jon Ruthven.190 Afastando-se do pentecostalismo clássico, que até então

187 CFW 1.6. In: BEHR, p. 1994.

188 WILLIAMS, op. cit., p. 886. Grifo nosso.

189 Cf. LOPES, op. cit., especialmente a parte III, p. 225-332.

190 RUTHVEN, Jon Mark. On The Cessation of The Charismata: The Protestant Polemic on Post-Biblical Miracles — Revised & Expanded Edition. Tulsa: Word & Spirit Press, 2011, p. i. (Word & Spirit Monograph Series: 1).

Jon Mark Ruthven é tido como “um dos teólogos pentecostais mais respeitados da atualidade. Iniciou o ministério em Boston/Nova Iorque ao lado de David Wilkerson em meados dos anos 60 evangelizando gangs e moradores de rua, assim como também serviu a Deus como missionário na África” (SKOOB. Jon Ruthven.

negava a existência de novos apóstolos, Ruthven postula que o NT ensina a atualidade de todos os ofícios e dons, incluindo o apostolado. Ainda que Ruthven não seja tão reconhecido como outros teólogos que também sustentam a continuação de dons extraordinários, a publicação de seu livro no Brasil foi divulgada com “entusiasmo” e a primeira impressão se esgotou rapidamente.

Olharemos agora para a interpretação de Efésios 2.20, sugerida por Ruthven.

Ele insinua que os teólogos pentecostais falharam em responder à leitura protestante de Efésios 2.20. Identificar “o fundamento”, com “doutrina” equivale a concluir que a

Escritura é alicerce único, implicando cessação da revelação.191 Para evitar isso, Ruthven

sugere que o vocábulo “fundamento” seja entendido não como “alicerce” e sim como um

“arquétipo” atualizado e replicado ao longo da história da igreja.192 Calvino e os demais

protestantes entendiam “fundamento” como o alicerce que, em um edifício, é feito somente

uma vez. Ruthven rejeita esta “identificação padrão da ‘fundação’ derivada de Calvino”193 e

propõe que “fundamento”, em Efésios 2.20, não implica cessação do ofício ou papel dos apóstolos e profetas. Pelo contrário, apóstolos e profetas ministrando revelação são um

protótipo para a igreja contemporânea.

Efésios 2.20 [...] parece ser o último refúgio exegético do cessacionismo [...]. O resultado é que os cessacionistas argumentam que a metáfora do “fundamento” dos apóstolos, profetas e Cristo, de alguma forma exige que, assim como eles morreram, seus dons morreriam com eles. Deveríamos, então, naquela mesma lógica, insistir que a morte do prefeito de uma cidade requer a extinção do cargo, título ou função de prefeito? Pelo contrário: seu papel “fundacional” como prefeito estabelece o padrão e implica

continuação do papel depois dele.194

O problema deste entendimento é que não combina com a metáfora de construção, proposta por Paulo em Efésios 2.20. Ruthven substitui a ideia de “fundação” como alicerce de um edifício, por “fundação” como ato que inicia ou estabelece uma cidade. Em seguida, ele mistura a função do indivíduo fundador de uma cidade, com a do indivíduo gestor (prefeito) de uma cidade.

Depois de fundada, uma cidade precisa de novos prefeitos, mas nunca mais, de novos fundadores. Convertendo a ilustração de Ruthven para a moldura protestante, sugerimos que os fundadores de uma cidade são, para a cidade, como a doutrina dos apóstolos e profetas é para a igreja. O ato fundador de uma cidade ocorre somente uma vez, assim como a revelação da doutrina apostólica foi dada apenas uma vez. Fundadores de uma cidade são extraordinários e temporários, assim como os apóstolos e profetas bíblicos. A cidade, por

Disponível em: <https://www.skoob.com.br/autor/20650-jon-ruthven>. Acesso em 27 mai. 2019; grifo nosso). Há quem o celebre como autor da “obra teológica mais densa de 2017”; cf. PABLO, Rafael. Sobre a Cessação dos Charismata. In: Teologia Pentecostal Assembleiana. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=l6PpCq28NqE>. Acesso em: 20 jun. 2019. Em um texto em que parece concordar que o entendimento cessacionista é contaminado por racionalismo e iluminismo, Alistair McGrath recomenda o livro de Ruthven como “o melhor estudo sobre o assunto”; cf. MCGRATH, Alister R.

Christianity’s Dangerous Idea: The Protestant Revolution — A History from the Sixteenth Century to the Twenty-First. New York, HarperCollins Publishers, 2007, edição do Kindle, p. 388, nota de rodapé 3. Grifo nosso. Tradução nossa. Gene Green, teólogo pentecostal e professor do NT, sustenta que: “Ruthven argumenta que os carismas emergem da obra do Espírito Santo dentro da Nova Aliança e que, portanto, o “cessacionismo prega um evangelho truncado. A ascensão do pentecostalismo global exige uma ampla e renovada audiência de seus argumentos bíblicos e teológicos em favor dos carismas contemporâneos dentro da igreja”

(RUTHVEN, 2011, página de recomendações pela edição expandida e revisada. Grifo nosso. Tradução nossa).

191 RUTHVEN, 2017, p. 204-205, 208-217.

192 Ibid., p. 195-201, 209-217.

193 Ibid., p. 208.

sua vez, precisa sempre de gestores ou prefeitos. Prefeitos são, para as cidades, aquilo que os pastores são para as igrejas. Prefeitos de cidades são ordinários e permanentes, assim com o ofício de pastor e mestre. Devidamente reconfigurada, a ilustração proposta por Ruthven não ajuda a provar, nem explicar a contemporaneidade do apostolado.

Ruthven busca reforçar seu argumento mencionando Jesus Cristo como fundamento da igreja, ligando Efésios 2.20 com a confissão de Pedro, em Mateus 16.18.

A referência paulina aos apóstolos (e aos profetas) como “fundamentais” para a igreja (Ef 2.20; 3.5) é paralela à tradição de Jesus sobre a revelação sob os moldes da confissão de Pedro: “Tu és Pedro (Πέτρος), e sobre esta pedra (πέτρᾳ = revelação acerca de Cristo) edificarei a minha igreja” (Mt 16.18).195

Não há novidade em enxergar Cristo incluído no “fundamento”, bem como vincular Efésios 2.20 com Mateus 16.18, pois intérpretes reformados também fizeram isso (Bucer, Bullinger e, especialmente Sarcerius). A coisa nova é que, quando Ruthven menciona a

“revelação de Cristo”, sua ênfase não está na doutrina, na verdade proposicional objetiva

sobre Jesus como “Cristo” e “Filho do Deus vivo” (Mt 16.16), mas na experiência de recepção da

revelação em si. O protestantismo magisterial afirmava que a igreja é edificada sobre o

enunciado de Pedro. Ruthven assevera que a igreja é edificada, geração após geração, sobre a recepção de revelação extrabíblica sobre Jesus Cristo.

Esta confissão [de Pedro, em Mt 16.18] é divinamente revelada e, com a revelação aos apóstolos e profetas representa a “fundação” da igreja, da qual Cristo é a “pedra fundamental”, ou “cabeça da esquina” (pedra angular), que continuamente, através do Espírito, mantém a estrutura conjunta, tanto de cima, como de baixo (1Co 3.11). Estritamente falando, Cristo é o fundamento exclusivo da igreja (1Co 3.3-17) que um líder ou um apóstolo como Paulo pode “estabelecer”, mas o líder ou apóstolo não é ele próprio aquele fundamento. Paralelamente à imagem do corpo (1Co 12), o dom do apostolado é mais funcional do que cronológico. Portanto, apóstolos e profetas são “fundamentais” na medida em que “prototípicos” de toda a igreja que reduplica a experiência de revelação original sobre Cristo no âmbito do evangelho cristão. [...] Portanto, esta passagem não mostra que os apóstolos e os profetas cessaram, mas sim que, como sua experiência é “fundamental” [fundacional] e arquetípica, sua experiência e funções, portanto, continuam.196

Pedro confessou que Jesus é o Cristo recebendo revelação direta de Deus Pai (Mt 16.17). Os apóstolos do NT receberam revelação sobre Jesus Cristo (Gl 1.15-16). Esta experiência, de receber revelação extrabíblica para pregação do evangelho, é “reduplicada” na igreja por apóstolos e profetas contemporâneos.

Ruthven, critica a leitura fundacional protestante em sete declarações:

1) “Fundação” indica um “padrão” a ser replicado, e não uma “geração” congelada no tempo; 2) o “fundamento” de Efésios 2.20 representa tanto o próprio Cristo como a recorrente apostólica “confissão fundacional” profeticamente inspirada, como a “grande confissão” de Pedro (Mt 16.16-18), revelada a todos os cristãos em todas as épocas; 3) o protestantismo tradicional vê um apóstolo do NT como um papa do séc. 16 e não como uma função ministerial em curso dentro da igreja; 4) a metáfora cessacionista, em uma falácia ilógica, confunde a morte dos primeiros apóstolos e profetas com a morte de seus dons; 5) a metáfora é destruída se Cristo, a

ἀκρογωνιαίου (“pedra de esquina”) é, como provável, também a “pedra principal” ou o “sustentáculo do fundamento”, segurando as paredes como se fossem dedos entrelaçados (Ef 2.21), que está também em contato com cada pedra; 6) esta metáfora

195 Ibid., p. 197-198.

cessacionista viola o ensino claro de Efésios 4.11, e, 7) substitui a “letra” do NT para a experiência do Espírito revelado do próprio Cristo como fundamento final.197

Na primeira crítica, Ruthven dá ao vocábulo “fundação” um sentido que destoa da metáfora de edificação de uma casa, usada pelo apóstolo Paulo em Efésios 2.20. A ideia de um alicerce que se “replica” ao longo do tempo é estranha às práticas de construção do séc. 1. Além disso, a leitura fundacional protestante não propõe “uma ‘geração’ congelada no tempo”, mas sim uma doutrina completada e suficiente.

Quanto à segunda crítica, protestantes magisteriais também entendem que a confissão de Pedro é “fundacional” e “profeticamente inspirada”, mas tanto Mateus 16.13-20, quanto Efésios 2.20, não exigem a conclusão de que deve haver continuação da revelação. A igreja será edificada sobre a doutrina de Jesus como Cristo e Filho do Deus vivo. O santuário de Deus é edificado sobre a doutrina divinamente revelada e ensinada pelos apóstolos e profetas. Isso esvazia a reivindicação de revelações extrabíblicas, bem como de apóstolos ou profetas contemporâneos. Os cristãos são abençoados e nutridos desfrutando da revelação do evangelho e feitos testemunhas dela — revelação dada pelo Espírito Santo aos apóstolos e profetas, e registrada por estes nas Escrituras (Gl 1.8-9, 15-17; 2Pe 3.15-16).

Terceiro, ao dizer que o protestantismo enxerga um apóstolo do NT como um papa do séc. 16, Ruthven replica o argumento do reformador radical Sebastian Frank, que dizia que o sola Scriptura estabelecia um “papa de papel”.198 Ruthven afirma que “os apóstolos e os

profetas apenas comunicaram revelações; eles não as criaram, ex-catedra, como papas

protestantes”.199 E sugere que a leitura fundacional protestante assume as premissas de

Roma acriticamente.

Para minimizar as reivindicações do papa de ser a autoridade religiosa final pela sucessão apostólica, os reformadores não analisaram adequadamente os papéis dos apóstolos e profetas do NT. Em vez disso, assumiram as premissas de Roma e simplesmente transferiram a coroa e a autoridade do papa do séc. 16 aos apóstolos do primeiro século! Os apóstolos, então sob esta perspectiva, os únicos que podiam receber a revelação divina, canonizaram a sua autoridade doutrinal e eclesiástica definitiva, não por meio de encíclicas papais, mas no NT. Os reformadores, e particularmente os teólogos que os seguiram, protegeram ainda mais a autoridade “papal” do NT, negando qualquer revelação divina adicional baseada

implicitamente [no] papel “fundacional” dos profetas em Efésios 2.20.200

A terceira crítica é imprecisa na análise do ponto de vista dos protestantes magisteriais, acerca do papa de Roma e dos apóstolos do NT. Os últimos são depositários e escritores da doutrina divinamente revelada, enquanto o primeiro, não. O NT difere radicalmente das encíclicas papais pelo simples fato destas últimas resultarem de esforço humano, enquanto o primeiro, de revelação de Deus infalível, inerrante e suficiente. Enquanto a premissa de Roma demanda continuação da obra de revelação do Espírito Santo, via Sagrada Tradição, a premissa magisterial admite sua cessação. Não é que os magisteriais acordaram entre si, arbitrariamente, rejeitar profecias extrabíblicas. Para eles, esta negação é requerida como dedução e aplicação razoáveis e fiéis de Efésios 2.20. Desde o início (e com razão,) a Reforma Magisterial assumiu que postular qualquer fonte de verdade ou orientação religiosa além das Escrituras — em outras palavras, alimentar expectativa ou deixar-se guiar por profecias

197 Ibid., p. 203.

198 Cf. EBELING, Florian. The Secret History of Hermes Trimegistus: Hermeticism from Ancient to Modern Times. Ithaca: Cornell University Press, 2011, p. 82, apud HORTON, Michael. Redescobrindo o Espírito Santo: A Presença Santificadora de Deus na Criação, na Redenção e na Vida Cotidiana. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 244.

199 RUTHVEN, 2017, p. 198.

extrabíblicas — fragiliza a igreja, abrindo espaço não apenas para encíclicas papais, mas todo tipo de manipulações e tirania religiosa.

Ademais (quarta crítica), a leitura protestante não afirma que dons morrem, e sim, que

determinados dons cessam quando seus possuidores morrem. Não há qualquer “falácia

ilógica” nesta afirmativa. Se as listas de dons da Bíblia não são exaustivas e os dons são dados para que cristãos sirvam ao Senhor em diferentes lugares e tempos (cap. 2-4), é bíblico e verossímil admitir Deus como soberano para conceder dons para a realização de coisas

singulares e, concluída a tarefa, depois da morte dos servos para ela designados, fazer cessar

os respectivos dons. E se há coisas que sempre devem ser feitas ou estar presentes na igreja,

e outras divinamente deliberadas para ocorrer apenas uma vez ou durante um tempo, nada

mais crível do que acolher a proposição de alguns ofícios e dons como extraordinários e temporários, e de outros como ordinários e permanentes. Afirmar isso não equivale a dizer que a igreja cristã não seja apostólica, nem que a igreja não tenha de desempenhar um papel profético na história, ou que Deus emudeceu. Ao mesmo tempo em que não ratificam novos apóstolos e profetas ou revelações extrabíblicas, os protestantes fundacionais acreditam que Deus continua chamando e capacitando pessoas para servi-lo em cada geração.

Na quinta crítica, propõe-se uma conclusão não exigida pela premissa. Cristo como “pedra principal” e “‘sustentáculo do fundamento’, segurando as paredes como se fossem dedos entrelaçados (Ef 2.21), que está também em contato com cada pedra”, não “destrói a metáfora”, como alardeia Ruthven. Um cristão pode concordar com Jesus como sustentáculo do “fundamento”, certo de que o desfrute do Redentor e de seus benefícios se dá pela Escritura somente, aplicada em seu coração pelo Espírito Santo.

Quanto à sexta crítica, é controverso se o ensino de Efésios 4.11 é, de fato, “claro”. As leituras da Reforma Magisterial e Radical chegam a conclusões diferentes sobre este texto.

A sétima crítica é deletéria ao tentar estabelecer um falso (e antigo) dilema: Deus ou a

Palavra. Uma coisa é “a experiência do Espírito revelado do próprio Cristo”; outra coisa é a “‘letra’ do NT”. Ruthven retoma o erro cometido pelo cardeal Sadoleto, combatido por Calvino: “E tu, Sadoleto, tropeçando no primeiro passo sob o umbral, foste castigado pela

injúria que fizeste ao Espírito Santo, separando-o da Palavra”.201 Calvino repercute os Artigos

de Esmalcalde, de Lutero: “Deus não deseja lidar conosco senão através da Palavra falada e

dos sacramentos. É o próprio diabo o que é exaltado como Espírito sem a Palavra [...]”.202

Aliás, como não é raro entre os carismáticos, para Ruthven a “experiência reveladora” e o “forte tom de revelação” são por demais importantes.

Alguns cessacionistas parecem estar insistindo que “o fundamento” é a doutrina estabelecida nos documentos do NT. Como alguém comprometido com a infalibilidade e inerrância da Escritura, eu nunca procuraria minimizar o

significado central da Bíblia para a fé. No entanto, a Bíblia em geral, e Efésios em particular, não se identificam com o núcleo fundacional da igreja. Pelo contrário, a

experiência reveladora de Cristo, embora dentro de seu arcabouço bíblico, é verdadeiramente o fundamento da igreja. São Paulo estava preocupado que a fé cristã não se baseasse em palavras, mas em “uma demonstração do poder do Espírito” (1Co 2.14) [2.4]. Isto sugere fortemente que um sistema de proposições, por mais verdadeiras que sejam, não é a base para a fé normativa; é o próprio Cristo, por meio

201 CALVINO, João. De Calvino a Sadoleto: Uma defesa da Reforma. [S.l.]: Projeto Castelo Forte, 2017, edição do Kindle, posição 247 de 1267. Grifo nosso.

202 LUTHER, Martin. The Smalcald Articles, III.VIII.10-11. Tradução nossa. In: The Book of Concord: The Confessions of the Lutheran Church. Disponível em: <http://bookofconcord.org/smalcald.php#part3.8.10>. Acesso em: 13 mai. 2019. Sobre a luta de Lutero contra os que seguiam novas revelações, recomendamos a leitura dos apêndices 3 a 5.

da atividade do Espírito de Cristo, com um forte tom de revelação, que caracteriza este fundamento.203

Ruthven se compromete “com a infalibilidade e inerrância da Escritura”, mas não com

sua suficiência (sola Scriptura). Diz que “a Bíblia em geral, e Efésios em particular, não se

identificam com o núcleo fundacional da igreja”, quando o mais honesto seria, mesmo apresentando argumento contrário, explicar que (1) o texto grego de Efésios 2.20 permite sim, a leitura proposta por Calvino; (2) o entendimento do “fundamento” como “doutrina”, em Efésios 2.20, abre espaço sim, para a dedução de cessação de profecias extrabíblicas; (3) a leitura magisterial constitui hermenêutica sadia (mesmo ele não concordando com ela). Se isso não bastasse, ele retira 1Coríntios 2.4 de contexto e subverte seu sentido, como se, ao mencionar aqueles que utilizavam “linguagem persuasiva de sabedoria”, Paulo se dirigisse aos cristãos que abraçam a leitura fundacional protestante, e como se “demonstração do Espírito e de poder” equivalesse à contemporaneidade do apostolado e da profecia. Ruthven ainda insiste em um rompimento desnecessário entre “um sistema de proposições, por mais verdadeiras que sejam” (a doutrina) e “o próprio Cristo, por meio da atividade do Espírito de Cristo”, como se o Espírito de Cristo sublevasse ou ultrapassasse aquilo que ele próprio revelou no NT.

Por fim, Ruthven faz uma acusação séria: os cristãos que abraçam a interpretação protestante de Efésios 2.20 se assemelham aos apóstolos falsos, combatidos por Paulo em 2Coríntios: “Um falso apóstolo prega um reino que consiste de palavra, e não de poder ([...]

1Co 4.20) — ou seja, um cessacionista!”204 O apostolado, diz ele, continua hoje e a negação

disso implica concordância com uma “noção de apóstolo [...] historicamente condicionada”, bem como “rigoroso ceticismo”:

Assim, já que a noção de apóstolo é tão historicamente condicionada como a última autoridade religiosa, qualquer pessoa reivindicando o apostolado certamente será medida e julgada com rigoroso ceticismo. No entanto, é possível que nenhum impedimento bíblico exista para alguém hoje atuar, ou mesmo ser dotado com o apostolado.205

Resumindo, para Ruthven, a palavra “fundamento”, em Efésios 2.20, tem o sentido de experiência de revelação que serve de arquétipo a ser repetido. Jesus Cristo como “pedra angular” equivale à experiência de recebimento de revelação de Pedro, a ser replicada em cada geração. Uma vez que apóstolos e profetas são prototípicos, apostolado e profecia continuam hoje. Deus aplica a redenção enquanto a igreja avança recebendo revelações extrabíblicas. Este esquema se ajusta ao pentecostalismo clássico, com a diferença de que, neste último, não há espaço para novos apóstolos. Tanto o pentecostalismo clássico quanto

Ruthven rejeitam sola Scriptura, em favor da Escritura mais profecias extrabíblicas. Ruthven

empreende uma defesa da contemporaneidade dos dons descolada da ortodoxia protestante e evangélica, ao preconizar a atualidade do apostolado. As interpretações de Ruthven contêm imprecisões lógicas, exegéticas e teológicas. Ele lê os dados bíblicos, históricos e teológicos dentro de uma moldura consistente com a reforma radical do séc. 16, atacando a leitura fundacional propugnada pelos reformadores magisteriais.

A questão do início do capítulo recebe respostas excludentes. Ruthven diz que sim, o Espírito Santo chama e contempla pessoas hoje, para todos os ofícios e com todos os dons mencionados no NT. Os que abraçam a leitura protestante de Efésios 2.20, entendem que o

203 RUTHVEN, 2017, p. 217. Grifos nossos.

204 Ibid., p. 197.

Espírito Santo continua chamando pessoas para servir a Deus, mas descontinuaram os ofícios e dons fundacionais.