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Estado Novo Uma Administração Pública com fronteiras difusas e sem modelos organizativos precisos.

DESENVOLVIMENTO DA ESTRATÉGIA METODOLÓGICA.

4.3. Progresso dos modelos institucionais e da estruturação interna de inspiração empresarial.

4.3.1. Estado Novo Uma Administração Pública com fronteiras difusas e sem modelos organizativos precisos.

A organização da Administração Pública durante o Estado Novo caracteriza-se pela existência de zonas de fronteira muito nebulosas, por um lado, entre o que é público e o que é privado, e, por outro, entre o que é administrativo e o que é empresarial. Também não são facilmente identificáveis as tipologias utilizadas, dando a impressão de que o regime depois de, sobretudo nos primeiros tempos, tanto ter condicionado a liberdade associativa e empresarial, nunca se pretendeu vincular, no que lhe dizia respeito, a modelos organizativos precisos.

No que se refere às zonas de fronteira entre público e privado, temos a registar a organização corporativa, que corresponde a uma auto-organização segundo modelos impostos pelo Estado, de inscrição ou quotização obrigatórias, (Grémios, Sindicatos, Corporações, Casas do Povo, Casas dos Pescadores) que por vezes deve directamente a sua existência a actos legislativos, como no caso das Corporações, apenas criadas na década de 1950,12 as instituições de previdência, e, mais tarde, os seus serviços médico-

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Em 23-9-1957, a Corporação da Lavoura, a Corporação dos Transportes e Turismo, a Corporação do Créditos e Seguros e a Corporação da Pesca e Conservas, instituídas pelos Decretos 41 287 a 41 290, em 23-9-1958, a Corporação da Indústria e a Corporação do Comércio, instituídas pelos

170 sociais, e as próprias entidades dotadas de entidade pública administrativa, como as Associações Humanitárias de Bombeiros Voluntários.

Em relação às zonas de fronteira entre os sectores administrativo e empresarial temos a assinalar que só a partir de 1967 começaram a ser, sempre por via legislativa, criadas empresas públicas, seja de raiz (Empresa Pública de Parques Industriais, Empresa Pública de Urbanização de Lisboa), seja por fim de concessão (Telefones de Lisboa e Porto), seja por transformação de serviços pré-existentes (CTT, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Empresa de Electricidade da Madeira). Muitas organizações públicas de natureza empresarial permaneceram até aí, e mesmo depois, no quadro formal da Administração Pública ainda que a lei mandasse relacionar as Empresas do Estado num dos Mapas do Preâmbulo do Orçamento Geral do Estado”. Já vimos no Capitulo anterior como a discussão de critérios para determinação do que devia ser considerado como tal mobilizou e dividiu opiniões na Direcção-Geral da Contabilidade Pública (Neves, 1956).

Quanto aos organismos de coordenação económica, estão nas fronteiras do sector público e do sector privado. Moreira, referindo-se ao conceito de organismo de coordenação económica legalmente consagrado em 1936 para abranger os “institutos”, “juntas” e “comissões reguladoras” 13 afirma: “É certo que a mitologia auto-reguladora foi sempre uma hipoteca dos organismos de coordenação económica, que nasceram sobre o signo da transitoriedade, que para sempre iria pesar sobre eles…No entanto, não podia haver dúvidas de que os organismos de coordenação económica eram elementos da administração do Estado e não elementos da organização corporativa”, acrescentando: “Quanto à sua natureza jurídico-organizatória os organismos de coordenação económica eram pessoas colectivas públicas, de carácter institucional, pertencentes à administração indirecta do Estado”. E também estão na fronteira entre o sector público administrativo e o sector público empresarial pois, como refere o mesmo autor “…também actuavam directamente no mercado, em alguns casos em situação de monopólio (caso da FNPT). Embora essas funções de produção e comercialização não se encontrassem mencionadas na lei-base de 1936.” (Moreira, 1997: 243-246) O facto é que não constavam do mapa das “Empresas do Estado” e as leis do Orçamento do Estado que, a partir de 1977, regulam actualizações salariais, distinguem frequentemente organismos do Estado e organismos de coordenação económica.

Entretanto, uma “fuga para o direito privado” avant la lettre levou a organizar como sociedades anónimas entidades que desde o início se mantiveram sob o controlo do poder Decretos 41 875 e 41 876, em 23-9-1959, a Corporação da Imprensa e Artes Gráficas e a Corporação dos Espectáculos, instituídas pelos Decretos 42 523 e 42 524.

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171 político, como sejam os Transportes Aéreos Portugueses, a Radiotelevisão Portuguesa, o Banco de Fomento Nacional (criado como sociedade anónima com base em recursos do Tesouro, do Fundo de Fomento Nacional, do Departamento de Fomento do Banco de Angola e das Províncias Ultramarinas)14 e o Metropolitano de Lisboa (cujo capital pertencia na quase totalidade ao respectivo município), ou ainda a Companhia Portuguesa de Electricidade, resultante de fusão das principais empresas do sector imposta pelo Governo, que passou a designar os titulares dos lugares chave da administração.

Também a definição de regimes não obedece a uma tipologia pré-definida. Assiste- se até ao final da II Guerra Mundial a uma multiplicação de serviços e sobretudo de fundos e de contas, sendo que muitos destes vieram a ser objecto de fusão no Fundo de Fomento Industrial (a quem incumbia conceder empréstimos e garantias e tomar participações no quadro da Lei de Fomento e Reorganização Industrial) e no Fundo de Abastecimento15 e que algumas Leis de Meios vieram a determinar a realização de estudos conducentes a evitar a proliferação de fundos e serviços autónomos16. De modo geral, a atribuição de autonomia financeira não é acompanhada pela atribuição de personalidade jurídica de direito público, que é reservado para casos de maior complexidade, como o das maiores administrações portuárias. O Grupo de Trabalho sobre Institutos Públicos no seu relatório de 2001 afirma ter encontrado apenas 22 institutos públicos que vinham antes de 1974 tendo a impressão de que a maioria (25 organismos de coordenação económica, universidades e institutos universitários, institutos de assistência, alguns hospitais, administrações portuárias, Junta de Crédito Público) foi extinta após 1974 (Tomé et al, 2001). Será assim, mas a nossa percepção é de que a figura foi efectivamente pouco utilizada. Mesmo em relação aos portos a Lei que regulou a sua organização atribuiu uma mera autonomia administrativa e financeira às juntas autónomas de portos17 apenas reconhecendo personalidade jurídica às administrações dos Portos de Lisboa e de Douro e Leixões18. A própria Administração-Geral dos Correios, Telégrafos e Telefones, convertida em empresa

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DL 41 957, de 13-11-1958.

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DL 36 501, de 9-9-1947. São transferidos para os dois Fundos os saldos de 32 fundos. A ajuda do Plano Marshall viria a ser canalizada pelo Fundo de Fomento Nacional (cfr. DL 37 724 de 2-1-1950 e DL 37 853, de 20-6-1950, sendo que o primeiro daqueles diplomas comete ao Fundo o financiamento dos investimentos em hidroeléctricas).

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Por exemplo, L 2 045, de 23-12-1950, L 2 050 de 27-12-1951 e L 2 059, de 29-12-1952 (Leis de Meios para 1951, 1952 e 1953).

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L 2035, de 30-7-1949.

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DL 24 208, de 23-7-1934, e DL 36 976 de 20-7-1948 (AGPL) e DL 36 977(APDL), também de 20-7- 1948.

172 pública em 196919 apenas dispõe de autonomia administrativa e financeira, sem personalidade jurídica. O Fundo de Abastecimento só a adquiriu em momento posterior à sua criação20.

Mesmo os serviços municipalizados, aos quais os Códigos Administrativos de 1936 e de 1940, revisto e republicado em 1940, atribuem autonomia financeira, são destituídos de personalidade jurídica, havendo quem por essa razão os tenha como “empresas imperfeitas” sem relevância para o sector público empresarial (António et al, 1982: 54-56). Não há uma definição legal de instituto público e muito menos um regime geral, e mesmo a empresa de economia mista e a empresa pública são conceitos essencialmente doutrinários, com utilização tardia na legislação no caso da última, e ainda assim também sem qualquer obediência a um regime geral.

Talvez para evitar a ocorrência de litígios judiciais entre “Estado” e “Estado” o regime reserva-se o direito de designar os dirigentes máximos das entidades públicas a quem reconhece personalidade jurídica e a quem compete a sua representação em juízo: Presidentes das Câmaras Municipais, Reitores das Universidades, Presidentes de Administrações dos Portos. Até no regime dos administradores por parte do Estado e delegados do Governo transparece a preocupação de evitar escândalo: “Os delegados do Governo e os administradores por parte do Estado não poderão aceitar ou exercer mandato judicial contra o Estado ou pessoa colectiva de direito público nem que tenha por objecto a interposição de recurso contencioso de actos ministeriais”21

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Sequeira, dirigente da Direcção-Geral do Orçamento, depois de historiar reformas do orçamento e da contabilidade pública sob a Monarquia Constitucional e sob a I República afirma no relatório do Grupo de Trabalho sobre os Institutos Públicos criado em 2001:

Uma das primeiras medidas adoptadas na reforma de 1928/29, de Oliveira Salazar, foi precisamente a de realizar a plena integração de todos os serviços e fundos existentes no Orçamento do Estado, reduzindo as formas de autonomia ou desconcentração e submetendo as poucas que restavam a um estrito controlo da contabilidade pública. Essa medida foi considerada essencial ao controlo das finanças públicas e a sua eficácia resultou, como é sabido, da própria eficácia prática da ditadura financeira implantada.

Contudo acrescenta,

Esta situação de redução da autonomia e de controlo estrito veio a sofrer graves brechas nos anos sessenta, quando o regime se mostrou incapaz de se adaptar às novas exigências de uma profunda revolução que ocorreu na sociedade e na economia portuguesas. Nessa altura, iniciou-se um novo período em que foram aumentado paulatinamente as situações de 19 DL 49 368, de 10-11-1969. 20 DL 37 303, de 12-2-1949. 21 DL 40833, de 29-10-1956.

173 autonomia financeira, nalguns casos com a intenção de uma gestão mais eficaz e mais adequada às novas necessidades da economia, mas noutros casos, porventura em maior número, pela pressão política de grupos de interesse poderosos, que viam na autonomia uma forma expedita de fazer circular verbas avultadas fora dos circuitos orçamentais e do seu estrito controlo. A situação foi-se agravando cada vez mais, a tal ponto que, já depois do 25 de Abril, mais precisamente em 1976, quando o Governo solicitou uma lista dos fundos e serviços autónomos existentes, foi impossível dar uma resposta completa, tanto mais que houve imediatamente a percepção de que eram praticadas várias formas de autonomia que em rigor poderiam designar-se por clandestinas, ou seja, não estavam autorizadas na devida forma legal. (Sequeira, 2001: 212-213).

O autor certamente não exagera pois após o 25 de Abril foi preciso publicar quatro decretos-leis, a intervalos de dois anos, sobre obrigações de prestação de informação por parte de fundos e serviços autónomos para começar a obter resultados22. E, embora não concretize mais sobre os anos 1960 acreditamos que alguns organismos autónomos e não autónomos terão crescido em dimensão financeira e em efectivos por força de verbas dos Planos de Fomento. Este fenómeno pode ser relacionado com o dualismo de estruturas na Administração Pública anotado por Premchand no seu Government Budgeting in Theory and Practice, que descreve a coexistência nas estruturas da administração de um sector com funcionalismo mais jovem, habilitado com graus académicos, portador de novos métodos de trabalho, e de um sector com funcionalismo mais idoso, assente na “tarimba”, rotinado nos métodos tradicionais em correspondência com um dualismo orçamental (orçamento de investimento - orçamento de funcionamento) típico de países em vias de desenvolvimento (Premchand, 1983: 196-203).

Contrariando a narrativa legitimadora do regime (“ordem nas Finanças Públicas”) percebe-se, pelo que fica dito, que a partir da II Guerra Mundial a disciplina financeira foi sendo posta em causa, e que inexiste uma doutrina relativa à organização da Administração Pública, aliás as preocupações de reforma administrativa centram-se na simplificação administrativa, na ampliação das competências próprias dos dirigentes e das possibilidades de delegação de competências e no regime de pessoal. É ainda em 1969 que a abertura da possibilidade de fazer aplicações rentáveis de disponibilidades do Tesouro abre caminho para a realização de despesas por operações de tesouraria, isto é, em situação de desorçamentação.

À margem desta problemática, é de referir ainda a criação em 1935 do Instituto Nacional de Estatística (sendo extinta a anterior Direcção-Geral de Estatística) que “goza no desempenho das suas funções de completa autonomia técnica” e do qual a lei estabelece

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174 que “Nenhum corpo ou corporação administrativa poderá publicar elementos de ordem estatística que respeitem à sua actividade sem os sujeitar à prévia aprovação do Instituto Nacional de Estatística”23´. Apesar da denominação, não é um instituto público uma vez que não dispõe de personalidade jurídica, e depende em termos gerais do Ministro das Finanças. Cardona considera-o a primeira “pessoa colectiva independente24

. Independente no plano técnico, certamente, mas não “pessoa colectiva”.

No domínio da estruturação interna, uma análise das leis orgânicas aprovadas a partir de 196025, que, a partir de 1967 se apresentam como de transição para as que haveriam de ser adoptadas em consequência da futura Reforma Administrativa, mostra que se procura distinguir entre unidades “burocráticas” e unidades de estudo ou de estudo e planeamento26. A estrutura clássica das unidades orgânicas assenta numa hierarquia direcção de serviços-repartição-secção (no entanto para o preenchimento de todos estes níveis é frequentemente exigida a licenciatura), sendo a criação de divisões um traço de algumas das experiências de reestruturação de serviços técnicos, como o mostram os casos, primeiro, do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC)27, mais tarde, do Ministério das Obras Públicas, dos CTT, da Administração-Geral do Porto de Lisboa, da Administração dos Portos do Douro e Leixões, do Ministério da Educação Nacional e da Secretaria de Estado da Indústria28.

O primeiro foi até precursor da ideia de estrutura flexível, com as divisões a poderem ser criadas por simples despacho, e nos restantes mostra-se existirem algumas indecisões sobre o seu papel, sendo, quer consideradas o nível inferior da hierarquia, quer um nível intermédio susceptível de desdobramento em secções. E houve pelo menos um caso de consultoria internacional, pois do preâmbulo do diploma que reestruturou o Ministério da Educação Nacional consta “a reforma global do Ministério impunha-se desde há anos, como objecto prioritário. Dela se encarregou, numa primeira fase, o Gabinete de Estudos e Planeamento da Acção Educativa e, depois, uma pequena equipa de peritos funcionando na directa dependência do Gabinete do Ministro, tendo sido possível àquele serviço e a esta equipa beneficiar da colaboração inestimável de um especialista estrangeiro de ciências

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L 1911, de 23-5-1935.

24 Cardona, Celeste,“Um Novo Modelo de Governo”, Diário de Notícias de 17-11-2011. 25

Embora estejam publicados no Diário da República Electrónico diplomas desde 5 de Outubro de 1910 não é possível a busca por palavras-chave em relação aos publicados anteriormente a 1960.

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Por exemplo no caso do DL 47743, de 2-6-1967 (Promulga a Lei Orgânica do Ministério do Ultramar), e no do DL 408/71, de 27-9 (Promulga a Lei Orgânica do Ministério da Educação Nacional).

27

DL 47627, de 7-4-1967.

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175 administrativas, ao abrigo do plano de assistência da O. C. D. E.”. Amaral refere que esta reestruturação começou a ser preparada ainda em 1964 com Inocêncio Galvão Teles como Ministro (Amaral, 1971).

4.3.2. Revolução de Abril e consolidação do regime democrático. Bases gerais para as