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Separação entre prestação de serviços, financiamento e regulação Distinção entre empresarialização e privatização.

DESENVOLVIMENTO DA ESTRATÉGIA METODOLÓGICA.

3.2. Separação entre prestação de serviços, financiamento e regulação Distinção entre empresarialização e privatização.

Quando se fala de orientação para o mercado, tem-se geralmente em mente uma situação em que não haja distorções originadas pela organização dos mercados, ou seja, que, desejavelmente, estes funcionam em concorrência perfeita, nem pelas características

114 técnicas associadas à produção dos bens, nem por falhas de informação ou por falhas de racionalidade dos consumidores, sendo na ausência destas condições comum a intervenção do Estado, assumindo quer a prestação do serviço (produção pública), quer o financiamento dos custos incorridos com a produção (provisão pública), quer uma intervenção correctora dos comportamentos dos agentes económicos (regulação).

Teoria dos bens públicos (ou dos serviços colectivos) e regulação

São relativamente bem conhecidas a teoria e prática da defesa da concorrência em relação a bens correntemente disponibilizados pelo mercado, e as intervenções que colocam bens sob tutela quando o poder político não se conforma com a falta de informação ou a falta de racionalidade do consumidor e decide interferir com o exercício das respectivas preferências, seja criando melhores condições de informação, seja incentivando ou desincentivando o consumo por via de instrumentos financeiros (subsídios ou impostos) seja tornando obrigatórios ou proibidos certos comportamentos. Já as falhas de mercado decorrentes das características técnicas dos bens necessitam de referência mais desenvolvida.

Apoiando-nos sobretudo em Richard Musgrave, Joseph Stiglitz, e Luc Weber, podemos distinguir bens e serviços individuais, que obedecem à tripla condição de rivalidade no consumo (a utilização por parte de um consumidor reduz a quantidade disponível para os outros consumidores), exequibilidade de exclusão (o produtor tem um grau de domínio sobre o bem ou serviço produzido que lhe permite excluir quem não esteja disposto a pagar o preço, e essa exclusão é técnica e economicamente exequível), e opcionalidade (o consumidor é livre de utilizar ou não o bem), e bens ou serviços colectivos, a quem falta alguma destas características, e aos quais correspondem portanto uma não- rivalidade no consumo, uma inexequibilidade de exclusão, e uma não-opcionalidade, denominando-se bens ou serviços colectivos puros os que não preenchem nenhum dos requisitos dos bens individuais (Musgrave e Musgrave, 1973: 51-82; Stiglitz,1998:119-144; Weber, 1978: 83-128).

A ausência de rivalidade no consumo, pode estar associada à indivisibilidade da oferta (caso típico de um serviço que só é possível criar mediante um investimento em infraestrutura), sendo comum encontrarem-se situações em que ela se verifica até um limite de congestionamento, ultrapassado o qual se verifica já existência de rivalidade, e sobretudo quando aliada à ausência de opcionalidade, cria uma situação em que não há revelação de preferências, sendo impossível que o mercado guie as decisões de produção e estabeleça preços. Aos bens e serviços individuais podem estar associadas externalidades positivas ou

115 negativas, sendo que a existência de tais externalidades pode ser encarada como configurando uma situação de produção conjunta de bens ou serviços colectivos (as próprias externalidades) com os bens e serviços individuais a que estão associadas.

A nossa opção pela utilização da terminologia bens e serviços colectivos / bens e serviços individuais, bens sob tutela (Weber, idem) em detrimento da mais consagrada, designadamente na literatura anglo-saxónica, bens públicos / bens privados, bens de mérito (Musgrave e Musgrave, idem), visa afastar a argumentação circular que frequentemente subjaz à discussão destas matérias: para não ir mais longe, é frequente ouvirmos dizer que “bens públicos” são bens custeados pelo Estado ou até bens produzidos pelo Estado, e confundir exequibilidade (técnica ou económica) da exclusão, com exclusão efectiva. Embora seja raro que estes conceitos sejam em Portugal utilizados no espaço público encontrámo-los em artigos sobre a rede de estradas5. Também nos afastamos da abordagem destas questões através de uma tipologia das necessidades, comum nas obras jurídicas, uma vez que não consideramos fácil distinguir necessidades colectivas (necessidades da colectividade? necessidades sentidas por que se vive em colectividade? necessidades sentidas por todos?) de necessidades individuais, e preferimos falar de bens de consumo opcional em lugar de necessidades de satisfação activa e de bens de consumo não opcional em lugar de necessidades de satisfação passiva.

Se o mercado falha, ou os beneficiários directos se entendem para que o bem ou serviço seja apesar de tudo disponibilizado, o que tanto pode dizer que se quotizam para que um terceiro se encarregue da sua produção, como que asseguram eles próprios a organização da produção6, ou, sobretudo se a escala em que o bem deve ser disponibilizado inviabiliza esta concertação, o Estado intervêm e decide ou financiar os produtores (provisão pública, produção privada), ou encarregar-se ele próprio da produção (provisão pública, provisão pública). Esta a função afectação de recursos de Richard Musgrave que se complica uma vez que, pretendendo o Estado assegurar também uma redistribuição (outra das funções de Musgrave) pode fazê-lo quer através quer da utilização de impostos e transferências, quer através da subsidiação / imposição explícita dos bens e serviços produzidos, quer de forma implícita, quando opta por financiar os bens e serviços produzidos por organizações públicas por receitas lançadas segundo o princípio da capacidade contributiva (Buchanan e Musgrave, 1999)7. Recorde-se que esta redistribuição

5 “Crítica aos excessos do utilizador – pagador” de Helena Garrido, Diário Económico de 18-3-2005.

´”As estradas desertas…” de Manuel Agria, Expresso de 1-1-2009.

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Tal como se verifica na cooperação entre vizinhos ou na constituição de clubes.

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A caridade individual ou veiculada por instituições de beneficência pode não assegurar uma cobertura suficiente das necessidades.

116 de rendimentos ou disponibilização de ajudas em espécie também pode ser da responsabilidade de particulares e das suas organizações.

Durante muito tempo a expansão das despesas públicas foi justificada pelas falhas de mercado (função afectação) e pela necessidade de atender às necessidades dos particulares carenciados (função redistribuição, Estado Social). A expansão das organizações públicas foi justificada pela aparente maior facilidade em fazer cumprir os objectivos e em controlar os custos, uma vez que o poder político tudo poderia regular por via hierárquica.Todavia, por um lado é impossível, em termos operacionais, determinar qual a proporção de financiamento que uma determinada situação de falha de mercado deve implicar, por outro o processo político de decisão orçamental, em si limitado pelas regras de votação (Arrow, 1978) e influenciado pelos dirigentes, pelas classes profissionais e por grupos de pressão, não é um bom substituto do mercado (Buchanan e Musgrave, 1999). E, afinal, a opção por “fazer dentro” do Estado origina aumento dos encargos de estrutura, crescimento de efectivos, encargos de coordenação acrescidos.

Nasce daqui a ideia da separação entre prestação de serviços, financiamento e regulação. Mesmo nos sectores em que se regista uma elevada provisão pública, é possível que a produção seja assegurada por produtores privados (empresas ou instituições particulares sem fins lucrativos) e/ou que os produtores públicos se orientem para o mercado, limitando-se o Estado a assegurar o financiamento e a regulação. Esta última, longe de se cingir à edição de regras gerais e abstractas tratando todos os operadores por igual (regulamentação clássica) pressupõe o exercício simultâneo de competências legislativas / regulamentares, executivas e jurisdicionais / quase judiciais, podendo conduzir à definição de regras aplicáveis apenas a um caso concreto ou penalizar especificamente o operador com posição dominante no mercado se tal for necessário para assegurar um grau adequado de concorrência (regulação assimétrica).

A reestruturação da intervenção do Estado no sector empresarial pode passar pela cisão de grandes empresas públicas sectoriais que se acreditava inicialmente poderem ter um papel simultâneo de prestação de serviços e de regulação (Majone, 1996: 17-24) como de facto sucedeu em Portugal tanto no Estado Novo como após as nacionalizações de 1974/76, criando-se em seu lugar várias empresas produtoras e várias empresas distribuidoras e promovendo-se a concorrência entre elas (obrigando as que detivessem monopólios técnicos ou naturais a permitir a utilização dos seus meios para que as outras pudessem aceder aos respectivos clientes) e pela criação de órgãos reguladores especialmente mandatados para promover uma concorrência efectiva, se necessário em prejuízo do operador “histórico”, dito incumbente, às vezes ainda responsável pelo serviço universal, ou pelo papel de prestador de último recurso, quando o cliente não consiga

117 contratar com os restantes operadores. Tal sucedeu por exemplo com as chamadas indústrias de rede (Gonçalves, 1999: 15-19).

Sectores sociais e mercado

O Estado Social, diz Vital Moreira, não exige nem a produção pública nem a provisão pública dos serviços económicos:

Diga-se à partida que a ideia de Estado social só requer que esses serviços básicos sejam acessíveis a toda a gente (princípio da universalidade), independentemente do lugar de residência e dos meios económicos. Mas não impõe o seu fornecimento directo pelo Estado (ou as regiões e municípios), nem tão-pouco a sua prestação geral abaixo do custo de produção, muito menos a título gratuito. Tirando os serviços públicos “não económicos”, fora do mercado, que entre nós a Constituição impõe que sejam prestados pelo Estado de forma gratuita (ou quase gratuita), como a educação e a saúde, ou que são financiados por um fundo público de base contributiva mas de natureza repartitiva (como a segurança social), o princípio do Estado social apenas impõe o fornecimento público gratuito daqueles serviços ou equipamentos que por natureza o mercado e a iniciativa privada não proporcionam, ou só limitadamente o fazem (caso das bibliotecas, dos equipamentos desportivos, etc). 8

Já o mesmo não sucederia, segundo este autor, em relação aos serviços “não económicos”:

Primeiro, se levassem até ao fim a lógica liberal contra o Estado, deveriam defender a privatização integral do ensino e o seu pagamento pelos utentes, admitindo, quando muito, a subsidiação pública dos que não podem pagar os encargos do ensino. Segundo, entre nós, como em muitos outros países, o ensino é um serviço público que não está no mercado (não sendo por acaso que não integra o "mercado interno" no âmbito da UE). Por isso não faz sentido invocar igualdade de concorrência entre escolas públicas e privadas, tal como não o faz no caso dos hospitais públicos e privados, teatros públicos e privados, bibliotecas públicas e privadas, polícia pública e polícias privadas, etc. Há sem dúvida espaço para um mercado privado no ensino, desde que fora do espaço do serviço público de ensino e sem ser à custa deste. Numa "economia social de mercado" nem tudo está sujeito ao império do mercado9. O facto é que há quem defenda a existência de um mercado privado destes serviços, assegurando o Estado o financiamento das organizações privadas, nos mesmos termos que as organizações públicas, ou até a privatização destas, reduzindo-se o Estado à função de financiamento e regulação. O preenchimento das condições de Jongbloed sobre as Oito Liberdades corresponderia exactamente à colocação no mercado destes serviços.

8 “Sustentabilidade financeira”, Público de 18-5-2010. 9 “À conta do Orçamento”, Público de 1-1-2011.

118 Também Mozzicafreddo elege os sectores sociais como núcleo do interesse público na sua actual definição “…os serviços considerados, neste espaço e tempo contigente, essenciais à preservação do núcleo duro do interesse público, tais como o sistema de educação considerado obrigatório (até ao 12º ano), o de saúde pública, da coesão social e equidade das políticas públicas ou, ainda, o das condições de inovação e investigação tecnológica para o desenvolvimento económico, importa que a orientação e, nalgum dos casos, a execução, seja mesmo directa ou indirectamente responsabilidade pública” (Mozzicafreddo, 2007: 33-34).

Acepções de privatização

Não qualificamos como privatização toda e qualquer transposição de elementos da gestão empresarial. Consideraremos, para efeitos do que segue, como privatização em sentido restrito, a transferência para privados da titularidade de partes sociais representativas de direitos sobre entidades públicas ou da titularidade de activos físicos orientados para a produção, isto é, essencialmente, de estabelecimentos, e como formas de privatização em sentido amplo a transferência temporária da gestão de uma entidade pública ou de um estabelecimento para privados, através de contrato de cessão de exploração ou de contrato de gestão, ou de mera gestão de um activo, por arrendamento ou aluguer, a privatização da actividade, traduzida na abertura de um determinado sector à iniciativa privada ou na autolimitação das entidades públicas na realização de novos investimentos ou na conquista de quota de mercado, e ainda o contracting-out.

Este último, referente quer a organizações públicas específicas, quer aos subsistemas públicos dos sectores em que estas se integram e que se traduz na decisão de, continuando a assumir a responsabilidade pela prestação do serviço, encomendar fora a respectiva produção, de preferência a efectuar investimentos de reforço de capacidade, pode relevar tanto de uma lógica puramente empresarial (muitas empresas adoptam esta estratégia para limitar o seu crescimento orgânico, factor de rigidez e de aumento da complexidade da sua gestão) como de uma lógica privatizadora (reduzir o peso do sector público, abrir novas oportunidades de negócio a privados) ou até mista.

Na sistematização por nós adoptada, as parcerias público-privadas revestem-se de um carácter misto: por um lado podem representar uma privatização de actividade, renunciando o Estado a criar novas organizações públicas, por outro, em termos dos subsistemas públicos específicos em que se inserem representam uma forma de contracting-out, uma vez que o Estado continua nominalmente a responder pela satisfação das necessidades, com apoio no investimento ou em outras contribuições do contratado. Se

119 bem que,quando se crie um estabelecimento que acabe por reverter para a parte pública da parceria, como sucede em muito casos de concessão, esta privatização acabará por se revelar puramente temporária. Veja-se a definição legalmente adoptada em Portugal:

Para os efeitos do presente diploma, entende-se por parceria público-privada o contrato ou a união de contratos, por via dos quais entidades privadas, designadas por parceiros privados, se obrigam, de forma duradoura, perante um parceiro público, a assegurar o desenvolvimento de uma actividade tendente à satisfação de uma necessidade colectiva, e em que o financiamento e a responsabilidade pelo investimento e pela exploração incumbem, no todo ou em parte, ao parceiro privado10.

Quanto às políticas de empowerment do consumidor para escolher o produtor independentemente da sua natureza pública ou privada, seja através de regras de celebração de contratos de prestação de serviços / subsidiação não discriminatórias, quer através de deduções fiscais independentemente do local de realização da despesa, quer através de vouchers, quer ainda simplesmente suprimindo ou aligeirando regras de competência territorial de intervenção das organizações públicas, não as consideramos formas de privatização, sem embargo de serem úteis para consolidar a situação dos produtores privados ou privatizados e para criar um clima de efectiva concorrência entre produtores.