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Estado e questão social: uma equação para a formação da proteção social na

CAPÍTULO 1 – O Sistema de Proteção Social: um resgate na perspectiva da

1.3 Estado e questão social: uma equação para a formação da proteção social na

A influência do pensamento liberal, que culminou com a Revolução Industrial, não reconhecia a assistência aos pobres como algo positivo, ao contrário, a condenava, considerando-a como incentivo à mendicância ou à falta de vontade de trabalhar. A teoria liberal, que tem como representante maior Adam Smith, compreende que o indivíduo movido pelo desejo natural de melhorar suas condições de vida assegura o bem coletivo, sendo assim as leis humanas não podem interferir nas leis de mercado, cabendo ao Estado a restrita função de fornecer a base legal para que o mercado livre possibilite os benefícios aos indivíduos.

Para Adam Smith, não há contradição entre acumulação de riquezas e equidade social (BEHRING, 2007). Este pensamento, que predominou no final do século XIX e início do século subsequente, relegou a segundo plano a necessidade de um Estado intervencionista, que regulasse as relações de mercado, definisse salários e estabelecesse qualquer tipo de assistência aos pobres, o que vai acontecer mais a frente com a constituição do Estado de Bem-Estar Social, no pós Segunda Guerra.

A constituição do Estado de Bem-Estar Social deu-se em decorrência da congruência de fatores econômicos e políticos como: o crescimento do movimento operário que passou a reivindicar direitos políticos e sociais; o advento do fordismo, trazendo mudanças, no campo da produção, que possibilitaram a ampliação do poder coletivo dos trabalhadores, que passaram a requisitar acordos coletivos de trabalho e ganhos de produtividade; a concentração do capital em monopólios, dada a junção do capital industrial com o capital financeiro, o que vai derrocar na grande crise de 1929. (BEHRING, 2007).

Os reflexos desta crise, expressos no desemprego generalizado, na ausência de demanda de mercado e recessão, fizeram com que a teoria liberal fosse questionada, sobretudo no que tange à autorregulação do capital. John Maynard Keynes questiona esta teoria e defende a necessidade de um Estado interventor que possa lançar mão de medidas econômicas e sociais, na perspectiva de controlar determinadas crises, restabelecer a confiança dos investidores e possibilitar certa linearidade no consumo, defendendo a necessidade de provisão de bens e serviços, implementados por meio de políticas sociais. Neste sentido, o Estado aparece como instrumento jurídico e político, territorialmente inscrito para mediar os conflitos entre os diversos grupos sociais num dado contexto - econômico, social, cultural e histórico - para conter as contradições entre capital e trabalho, acumulação e distribuição.

Adensando a discussão, verifica-se que o Estado apresenta dupla função: garantir a manutenção das relações sociais e de produção capitalista, forjadas na exploração da força de trabalho, mantendo a privatização dos meios de produção; e atender prioritariamente às demandas por direitos sociais reivindicados pelo movimento crescente dos trabalhadores.

Mandel (1982) afirma que, no capitalismo, o Estado tornou-se um instrumento de acumulação progressiva de capital e o parteiro da produção, sendo um elemento necessário para administrar as crises, o que envolve um conjunto de políticas governamentais, cuja intenção é driblar as crises ou restabelecer os mecanismos necessários à retomada do desenvolvimento, inscrevendo-se no alargamento da política social.

A conjugação da concepção keynesiana sobre o papel do Estado e a aplicação do modelo fordista no campo da produção, inscritos num tempo e espaço de efervescência, dentro e fora das fábricas do movimento operário, forjaram as bases do Estado de Bem-Estar Social, tendo como consequência a ampliação da legislação social que determinou, por sua vez,

uma redistribuição considerável do valor socialmente criado em favor do orçamento público, que tinha que absorver uma porcentagem cada vez maior dos rendimentos sociais a fim de proporcionar uma base material adequada à escala ampliada do Estado no capital monopolista. (MANDEL, 1982, p. 338- 9).

A experiência do Estado de Bem-Estar Social, largamente consolidada nos países europeus, possibilitou a regulamentação trabalhista, intensificou a oferta de serviços e seguros socais, destinados não somente aos trabalhadores, e investimentos em infraestrutura, saúde e educação, incorporando desse modo as demandas das lutas da classe trabalhadora.

Numa concepção mais radical do marxismo, para os riscos e contradições inerentes ao capitalismo, Mandel (1982), afirma que esse avanço na ação estatal eram concessões do capital dado o livre desenvolvimento das lutas políticas por parte do proletariado, que ameaça diretamente ao modo de produção capitalista.

Assim, na transição do capitalismo concorrencial para o monopolista, no pós-1945, inaugura-se o crescimento da intervenção estatal que, segundo Behring (2007), é fruto da universalização dos direitos políticos, resultado da luta da classe trabalhadora que, se não instituiu uma nova ordem social, contribuiu significativamente para ampliar os direitos sociais, para tensionar, questionar e mudar o papel do Estado no âmbito do capitalismo, marcando dessa forma a passagem do Estado liberal para o Estado social. Neste sentido, os determinantes econômicos, sociais e políticos intrínsecos ao modelo de sociedade capitalista impulsionaram a política social como instrumento de reconhecimento de direitos a partir da intervenção estatal. Tais mudanças contribuíram para a polarização dos sujeitos envolvidos diretamente neste processo: de um lado, estava o capitalista que, proprietário dos meios de produção se apropriava dos bens materiais e de consumo necessários à subsistência humana; do outro, o trabalhador, desprovido de qualquer bem material, vende sua força de trabalho para garantir de seu sustento.

O lugar que cada o grupo social ocupa na cadeia produtiva indica a composição de uma sociedade marcada pela estratificação de classes, na qual, a concentração de riqueza socialmente construída está nas mãos de poucos, levando a maioria da população às condições de miséria, pobreza e exploração, incitando insatisfação e revolta por parte da classe trabalhadora, expressas na luta por melhores condições de vida e de salário, o que alguns autores vão pontuar como expressão da questão social, inerente ao capitalismo. A análise da proteção, sob o prisma da questão social, reforça a necessidade do Estado interventor, que execute ações sociais, regule acordos entre classes, possibilite o desenvolvimento de forças produtivas. Assim,

o surgimento da política social é um fenômeno associado à constituição da sociedade burguesa, ao modo de produzir e reproduzir-se; mediante ao reconhecimento da questão social inerente às relações sociais nesse modelo de produção, ao tempo que a classe trabalhadora assume seu papel político e até revolucionário (BEHRING, 2000, p. 21).

O adensamento da expressão da questão social vai propiciar a busca pela organização dos trabalhadores, como mecanismo de ampliação de direitos pela via do Estado, colocando em xeque a forma contraditória e excludente da relação capital versus trabalho, acumulação versus exploração. No cerne dessa relação, materializa-se a questão social como fruto do conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista e produzida e reproduzida no movimento contraditório das relações sociais5.

Neste contexto de tensões entre as classes, configura-se a necessidade da intervenção do Estado para assegurar certa tranquilidade necessária ao desenvolvimento do sistema e a manutenção de certo grau de civilidade humana. Sendo assim, a política social no capitalismo concretiza-se a partir das lutas de classe, decorrentes da mobilização da classe operária, onde o Estado apresenta resposta e estratégias as suas ações (NETTO, 1992, p. 71).

À medida que os trabalhadores se posicionam organizadamente, reivindicando melhores condições de vida, de salários, a questão social passa a ser tratada como problema político, fruto das lutas sociais que irão romper o domínio privado nas relações entre capital e trabalho, favorecendo o trânsito da questão social para esfera pública, na qual o Estado passa a administrar e gerir os conflitos de classe através do controle e do consenso no enfrentamento da questão social, fato que irá gerar uma ampliação dos direitos, transformados em serviços e políticas sociais (GOMES, 2009).

Desse modo, a história revela que as práticas de proteção remontam à antiguidade. Contudo, no capitalismo, estas são redefinidas a partir da relação capital e trabalho, com inserção dos indivíduos enquanto trabalhadores em instâncias de organização de categorias profissionais passando, a construir novas configurações de proteção social.

No entanto, é importante ressaltar que, como lembra Di Giovani (2008), a existência de novas formas de proteção social não significa a substituição de outras ou até mesmo sua

5“Questão social apreendida como o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura,

que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação de seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade” (IAMAMOTO, 2001, p. 27).

extinção; o que se observa tanto na literatura quanto na experiência é a coexistência dessas práticas.

1.4 A proteção social no contexto do Estado de Bem-Estar Social

O Estado de Bem-Estar Social é consolidado após a Segunda Guerra Mundial, nos países desenvolvidos. Ascende sob o princípio de que os governos devem garantir um padrão mínimo de vida para todos os cidadãos, compreendido como direito social, incorporando a gestão dos problemas sociais como parte integrante das ações estatais.

Silva (2004), ao analisar a concepção de Pierson (1997) sobre o Estado de Bem-Estar Social, identifica que este pode ter um sentido restrito - atuando na provisão de serviços de bem-estar como saúde, educação, habitação, garantia de renda e serviços sociais pessoais - e um sentido amplo, definindo-se como “uma particular forma de Estado, uma distinta forma de política ou um específico tipo de sociedade”. E um último sentido, “como uma sociedade na qual o Estado intervém no processo de reprodução e distribuição econômica para relocar life chancesentre indivíduos e ou classes”. (SILVA, 2004, p. 56).

Outra concepção de Estado de Bem-Estar Social confere Friedlander e Apte, que o entendem como um sistema de leis, programas, benefícios e serviços, para atender às necessidades básicas para o bem-estar da população e funcionamento da ordem social. (SILVA, 2004).

A constituição desse Estado assenta-se num cenário político e econômico conturbado pela efervescência do ideário socialista, que ganhava adesões dos movimentos populares na luta contra a lógica injusta da economia de mercado competitivo, que condenava a maioria da população à pobreza, no pós-Revolução Industrial.

De outro lado, vale ressaltar as concepções de grupos capitalistas, ora reformistas, que pregavam a eficiência do sistema e reconheciam suas limitações quanto à redistribuição de bens, requisitando a intervenção do Estado para alterar a dinâmica do mercado, ora conservadores, que exigiam um Estado que provesse serviços aos indivíduos que não podiam trabalhar e garantir o sustento da família.Segundo Marshall (1967), a instalação do Estado de Bem-Estar Social (EBES) tem relação com as situações de guerra, sendo uma estratégia de reunir recursos e partilhar riscos para enfrentar as vulnerabilidades imanentes dos processos de guerra, sendo essas estratégias incorporadas ao sistema social.

Nesta mesma perspectiva, assinala Heclo (1995 apud Silva 2004), que o EBES se consolida sob as lembranças de inseguranças subjacentes à Primeira Guerra Mundial e o medo destas se repetirem no futuro. Silva ( 2004, p. 63) conclui, a partir destas análises que “foi o sentimento de perigo e de vulnerabilidade comuns que fizeram com que os anseios por segurança, igualdade e liberdade do novo EBES parecessem consistentes e inerentes ao funcionamento da sociedade e da economia”.

Embora a literatura reconheça experiências embrionárias de Estado de Bem-Estar Social em sociedades pré-capitalistas, esta mesma literatura afirma que sua consolidação ocorreu no pós-Segunda Guerra Mundial. Nesta perspectiva, Silva (2004) aponta o Relatório Beveridge, de 1942 como um instrumento importante nessa construção

Para Pierson (1997 apud SILVA, 2004, p. 63), o EBES, sob a influência Keynesiana conjugada com a experiência fordista, dominou a economia mundial do século XX até os últimos 20 anos. Neste contexto, destacam-se as experiências alemã e inglesa, cujos sistemas de seguridade social influenciaram significativamente a construção de sistemas de proteção social em diversos países europeus e latino-americanos.

O primeiro foi implantado na Alemanha a partir da segunda metade do século XIX, sob o governo do chanceler Otto Von Bismarck, constituído a partir da criação de caixas de aposentadorias e pensões compulsórias, financiadas por trabalhadores e empregadores, de base contributiva e benefícios proporcionais à contribuição, fundados no princípio do seguro social. Este sistema de proteção social inspirou a criação de caixas pensão e aposentadorias no Brasil, a partir de 1923, tidas como os embriões da Seguridade Social brasileira.

O segundo sistema foi inaugurado na Inglaterra, sob a coordenação de William Beveridge, e implementado nos países do norte europeu, após a Segunda Guerra Mundial. Era inspirado nos princípios da universalidade do atendimento, uniformidade quando ao montante e modalidade dos benefícios, unificação do aparato institucional e combinação da lógica contributiva e não-contributiva no financiamento do sistema de proteção social.

Na concepção de Draibe (1990, p. 2), o Estado de Bem-Estar Social significa sistemas nacionais públicos estatais com regulações próprias que envolvem um conjunto de políticas públicas - educação, saúde, previdência social, integração e substituição da renda, assistência social e habitação, salário e empregabilidade - e a organização e produção de bens e serviços sociais (coletivos). Em cada região do mundo, este Estado apresenta características peculiares à dinâmica econômica, política e social de sua nação.

Contudo é recorrente na literatura a predominância de alguns paradigmas classificados por Esping Andersen - Liberal, Conservador e Social-Democrata - que

imprimiram experiências de proteção social que influenciaram o mundo todo na constituição de seus regimes de seguridade social.

No Estado liberal, também designado como residual, a proteção social caracteriza-se pela seletividade de suas ações, sendo direcionada a segmentos da população extremamente pobres, de forma pontual, tendo em vista, suprir minimamente as insuficiências de mercado.

No Estado conservador, chamado por alguns autores (DRAIBE, 1990; VIANNA, 1991) de meritocrático e corporativo, a proteção social tem forte vinculação com o trabalho, a renda e contribuições prévias. Portanto, há uma provisão de benefícios sociais por parte do Estado, embora seu caráter redistributivo seja bastante comprometido. Destaca-se a experiência alemã (modelo bismarckiano), que adota o sistema de seguro social, ou seja, incorpora os recursos provenientes da contribuição dos empregados e empregadores.

O modelo social-democrático ou total–redistributivo imprime, nas práticas protetivas, o caráter universal e redistributivo, sob os princípios da universalidade, da solidariedade e da igualdade, melhorando os níveis de qualidade. Teve na experiência inglesa beveridgiana seu maior expoente, propondo a garantia de mínimos sociais a todos, independente de prévia contribuição.

O Estado de Bem-Estar Social trouxe avanços incontestáveis para a ampliação da proteção social, seja em sua forma mais restrita de seguro social (contributiva), seja da seguridade social (redistributiva), garantindo bens e serviços sociais ao conjunto da população; que, conforme Mishra (1995) tornou-se sinônimo de serviços sociais universais, pleno emprego e assistência social.

Essas experiências influenciaram o Brasil, quando da constituição do seu regime de proteção social, destacando-se o modelo Bismarckiano, na Era Vargas, e o Beveridgiano, no pós-constituinte (Era do Constitucionalismo), conforme veremos. Contudo como alerta Vianna (2000, p. 14), “a ausência de um pacto entre classes e as especificidades da cultura política, econômica e social do país não lhe permitiu consolidar a seguridade social até os dias atuais”.