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“Este Natal está desanimado ”: a festa do ano seguinte

Encontrava-me ainda entre meus amigos no Natal do ano seguinte. Mas desta vez, o ambiente na aldeia era de calmaria. Sem os intensos preparativos do ano anterior, o que mobilizou as famílias este ano foram os trabalhos em torno da coleta, do transporte e do comércio da castanha que, pela primeira vez, seriam totalmente viabilizados por uma

associação indígena, em uma tentativa de eliminar os atravessadores. A Associação Indígena Zavidjaj Diguhr (ASSIZA), tomou para si a responsabilidade da logística do transporte da castanha dos pontos de coleta até o depósito e da posterior compra do produto45. O

protagonismo dos próprios indígenas em todas das fases da cadeia produtiva da castanha, tornou-a o centro das atenções na aldeia no mês de dezembro deste ano. A festa de Natal, por sua vez, de protagonista no ano anterior, tornou-se coadjuvante.

A principal razão para a desmobilização em torno da festa da aldeia Ikólóéhj é que, neste ano, a festa das igrejas constitutivas da MEIRON estava programada para uma das aldeias da Terra Indígena Zoró (MT), próxima a T.I. Igarapé Lourdes. Na aldeia Ikólóéhj estariam presentes apenas os moradores locais e das aldeias próximas. Não viriam visitantes de outras etnias e terras indígenas, pelo contrário, seriam os Ikólóéhj a visitar os Zoró, o que acabou não acontecendo por dificuldades de transporte. A ausência dos visitantes tornou o Natal desanimado na perspectiva daqueles que permaneceram na aldeia. “Este ano tá tudo morto, ninguém se visitando”, reclamaram. De qualquer forma, os tapiris já estavam prontos desde o ano anterior e já acolhiam, desde os primeiros dias de dezembro, algumas famílias da aldeia Igarapé Lourdes. E apesar da calmaria em torno da festa, os grupos de louvor ensaiavam todas as noites. Ao contrário das outras atividades, a música manteve sua capacidade mobilizadora.

No Natal passado, os Zoró compareceram em massa, pois muitas famílias possuem carro próprio. Os Ikólóéhj, pelo contrário, embora desejassem participar da festa dos Zoró deste ano, não tinham como se deslocar, pois as motos, meio de transporte predominante na aldeia, estavam praticamente impossibilitadas de atravessar grandes distâncias em meio aos atoleiros comuns a esta época do ano. Os proprietários de motocicletas me disseram que não queriam “passar trabalho” na estrada com suas famílias em meio às chuvas e que, por isso, preferiam ficar na aldeia. Contribuiu para o esvaziamento da festa na aldeia, a viagem de cinquenta pessoas até a T.I. Pakaas Novos, onde foram retribuir a visita feita pelos Wari’ no ano anterior.

Um dos principais líderes da igreja, por outro lado, estava animado, pois fora convidado para pregar a palavra de Deus na festa dos Zoró, “dia 23 [de dezembro] vem o ônibus dos Zoró buscar a gente, eu vou pregar lá”, avisou meu amigo. Enquanto confeccionava um belo cocar para usar na ocasião, me contou:

No Natal passado eu dei um presente pro líder da igreja Wari’ e os parentes dele me pediram presentes também, aí eu disse que não é qualquer um que recebe presente não, só quem é líder. Jesus não é o nosso líder maior? O nosso chefe maior? Então... só quem recebe presente é o representante de Jesus aqui na terra. Jesus está aqui na terra pra receber presente de Natal? Não! Quem está aqui é a liderança que representa ele. Só estes recebem presente. Entendeu?

Como representantes de Cristo aqui na terra, os líderes da igreja, ao mesmo tempo em que carregam o ônus da responsabilidade sobre os xikóvéhj (sua criação) de Paadjaj, possuem o bônus do prestígio que sua função adquire entre os membros da igreja. De qualquer forma, são as regras de etiqueta ikólóéhj que estão operando. Não é a todos que se presenteia e sim aos chefes/donos. Nas festas tradicionais é o madjaj que recebe as flechas e o artesanato, já que ele é o responsável pela alimentação e pela bebida dos convidados. Nada mais evidente que apenas o líder da igreja visitante fosse presenteado.

Durante as celebrações, invariavelmente, os componentes da diretoria ocupam lugar de destaque. Sentam sobre o palco, de frente para o público, ao lado dos cantores que ocupam a posição central. Lá de cima acompanham as pregações, dançam diante dos demais, estimulam os fieis a dançar e ainda decidem quem utilizará o microfone, ou seja, o prestigiado lugar de fala. De qualquer forma, à exceção de meu amigo e das pessoas que se preparavam para atravessar o estado até à T.I. Pacaás Novos, não parecia que os demais estivessem se preparando para uma festa.

Na véspera do Natal, a igreja estava relativamente cheia, os bancos estavam ocupados, mas não havia o acúmulo de pessoas ao redor e nos tapiris. Ao chegarmos ao templo, sentei com meus anfitriões, como de costume, nos últimos bancos. O dirigente da celebração, um missionário indígena, iniciou o culto proferindo uma oração com as pessoas posicionadas em um círculo em torno da igreja – em metade dela, pois a presença estava reduzida –, um círculo menor organizado dentro deste pelas crianças completou o ambiente da oração inicial. Desta vez a leitura foi feita diretamente na porção bíblica traduzida para a língua gavião, o evangelho de Lucas, capítulo dois, que narra a história do nascimento de Jesus Cristo. Mesmo assim, poucos acompanhavam. Como acontece em todos os cultos, a maioria dos presentes apenas ouviam atentamente a leitura e os comentários seguintes feitos por alguns pregadores. Estes comentários sempre reforçavam as histórias lidas.

Encerrado este breve momento, o grupo de louvor começou a tocar e a cantar. Inicialmente apenas quatro homens, os que invariavelmente tomaram a frente em momentos anteriores, de braços dados dançaram por um bom tempo até que outras pessoas lentamente se encorajam a acompanhar. Se aproximando da meia noite, algo inusitado aconteceu antes que os estampidos de foguetes tomassem conta do ambiente. O missionário que estava

presente convidou o cacique Sebirop para falar aos presentes, embora não houvessem convidados de fora à exceção de mim e do linguista Dennis Moore, pesquisador entre os Ikólóéhj desde os anos 1970. Foi a primeira vez que ouvi Sebirop falando no ambiente da igreja. Em sua fala, dirigiu-se especialmente aos jovens, para que prestassem atenção nas palavras ensinadas durantes os cultos e durante esta festa ao invés de ficar se distraindo com outras coisas. Foi uma fala muito amigável e nenhum assunto polêmico foi abordado.

Este foi mais um dos inúmeros quesitos que diferenciaram esta festa de Natal da anterior. Além daqueles já abordados, este Natal caracterizou-se por ser mais restrito. A alegria e efervescência do ano passado contrastaram com o desânimo que tomou conta do local este ano. Até o semblante dos dançarinos foi mais contido. Após a fala do cacique, novamente um círculo foi formado para esperar a chegada da meia noite no relógio. Cumprimentos tímidos marcaram este instante. As danças recomeçaram em seguida. Por serem os momentos mais esperados das festas, não importando se a igreja estiver abarrotada de visitantes ou se apenas os moradores locais se fizerem presentes, as danças romperam a madrugada e, apesar do tom mais acabrunhado com que se revestiram naquela noite, os dançarinos se estenderam até quase amanhecer. Desta vez ninguém me convidou para dançar. Permaneci em meu lugar pensando sobre quão determinante é a presença de visitantes, de afins potenciais, para ser uma festa animada. “Louvor”, “agradecimento”, “adoração” a Deus, a Jesus, definitivamente, não são os fatores determinantes.

No dia seguinte, dia 25 de dezembro, teve lugar um almoço coletivo em que cada família levou seu prato (caça, peixe, mandioca) para compartilhar com os demais. Nisto consistia a festa de Natal nos anos anteriores à incorporação das danças no ambiente da igreja. E foi a este tipo de reunião que o interlocutor acima se referiu ao afirmar que os Ikólóéhj, sem saber, já tinham Natal antes dos missionários chegarem, pois tal compartilhamento era realizado em meio à festa Garpiéhj Náe. Sugiro que a festa de Natal de 2014 não tenha recebido uma atenção maior (quanto a festa de 2013) porque nos dias seguintes outra grande festa teria lugar na aldeia Ikólóéhj.

Antes mesmo do fim do ano, os missionários, juntamente com as lideranças da igreja, já estavam pensando em uma comemoração referente ao dia 25 de janeiro de 1965, data que marca o primeiro encontro com os Ikólóéhj. Todos os anos este momento era comemorado, mas em 2015 a comemoração deveria ser especial, pois marcava os “cinquenta anos de evangelização”. Tudo indicava que seria diferente deste Natal. Empolgado, um dos líderes da igreja contou que uma grande festa estava sendo preparada com muitos convidados sendo

esperados, brancos e indígenas. Certamente uma festa animada estava a caminho em contraste com o Natal de 2014.