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Quarto movimento: nova dispersão a partir da aldeia Igarapé Lourdes

Com a demarcação do território, a aldeia Igarapé Lourdes consolidou-se como “aldeia central”. Xikov Pí Pòhv, zavidjaj da aldeia Zav Póhj (Maloca Grande) reticente em deixar as terras em que sempre viveu, foi obrigado, por sua própria segurança e de sua família, a mudar-se para lá. “Antes a gente nunca tinha morado todo mundo junto, foi só no Lourdes mesmo”, explicou Xipiabihr. Este período de concentração residencial constitui-se em uma exceção. Como já apontamos acima, a dispersão dos grupos familiares autônomos é estruturante na socialidade ikólóéhj e a concentração residencial em uma grande aldeia, com acesso às desejadas mercadorias dos brancos, ao dinheiro e às bebidas alcoólicas, gerou alguns conflitos internos. Os Ikólóéhj, que já sabiam como lidar com a presença dos brancos, passaram a lidar com animosidades entre os próprios parentes, situação que contradizia o ideal de boa conduta que plasmava as relações quotidianas até então. A convivência respeitosa

entre si e com o outro¸ cultivada há gerações, estava em risco.

Neste contexto adverso, os ensinamentos dos missionários pareciam, aos olhos de muitos, uma forma de se aproximar no mundo dos brancos sem a violência do contato que haviam experienciado. A ideia de que “na época do Lourdes” – quando a maioria da população ali residia – a vida dos Ikólóéhj era repleta de brigas e conflitos e que foi a pregação missionária que trouxe uma “vida boa” para seus parentes é bastante disseminada entre os frequentadores da igreja, especialmente os mais jovens, muitos dos quais nem

haviam nascido naquele período. No entanto, nem a gentilidade dos Ikólóéhj – pela chave analítica missionária – foi a responsável pelas situações conflituosas e nem a adesão ao protestantismo fundamentalista promoveu o fim dos conflitos, na medida em que os problemas daquele período resultaram – além, evidentemente, das vicissitudes do contato interétnico – da mudança do padrão residencial.

Foi também neste período que o xamanismo se fortaleceu entre os Ikólóéhj. Ciente da gravidade da situação, Xípo Ségóhv, o vaváh tere (xamã verdadeiro), atualizou a forma de lidar com os espíritos auxiliares. Em contatos com xamãs arara conheceu os Olixixìa, povo que habita o plano celeste e com o qual passou a ter relações de afinidade. Casou-se com uma mulher olixixìa (Nabúhv) – era costume entre os xamãs casar com mulheres-espírito – e, como se não bastasse, surpreendeu seu povo trazendo sua família celeste para visitar e curar os parentes, fato que “nunca tinha acontecido antes”. Tema do capítulo quatro, é importante apontar aqui que estas “novidades” no trabalho de Xípo Ségóhv constituíram-se em uma espécie de “resposta” à desqualificação que sofria por parte dos missionários, legitimando-se como vaváh tere.

Brunelli (1986) que esteve na aldeia Igarapé Lourdes entre os anos 1983 e 1984, pouco depois dos missionários terem sido expulsos por parte dos Ikólóéhj com o apoio da FUNAI, conversou à época com Xípo Ségóhv. O vaváh lhe contou que “ele pessoalmente nunca deixara de frequentar o mundo invisível, mas acrescentou que durante os dois períodos em que os Gavião se tornaram crentes, ele foi hostilizado e a atividade xamânica objeto de desprezo. Ele voltou a ganhar status com a abjuração da religião estrangeira” (BRUNELLI, 1986, p.242).

Mais adiante, no mesmo texto, o pesquisador informou que:

Os Gavião convertidos à crença da MNTB eram diretamente controlados pelos pastores estrangeiros: mais aderiram à nova religião e mais tinham que aceitar as relações de subordinação aos pastores. Para sua auto-afirmação era então necessário se libertar deles e de sua pregação. Nada melhor do que a atualização do xamanismo para manifestar sua autonomia (parcialmente) recuperada, sendo esta a prática mais condenada pelos pastores (idem, p.257).

Esta atualização, no entanto, não ocorria na aldeia Igarapé Lourdes, em tudo muito próxima ao mundo dos brancos. Enquanto ali os Ikólóéhj se aproximavam cada vez mais do modo “civilizado” de ser através da igreja – e sua rígida moral –, da escola – e a obrigação de falar português – e do posto da FUNAI – e sua intermediação com o mundo dos brancos; era na aldeia Bobòa Váh (Lugar da Cachoeira), distante cerca de três mil metros, onde morava o vaváh tere, que os rituais de pajelança e as festas, mal vistas pelos missionários e pelos crentes, aconteciam.

Depois de aproximadamente quinze anos concentrados na mesma aldeia, em meados dos anos 1980 o fluxo inverso passou a operar. A dispersão iniciou-se a partir da invasão de posseiros na área sul da T.I., acontecimento que levou inúmeras famílias a mudarem suas residências para a área invadida após a expulsão dos colonos e assim garantir a posse da terra. Esta mudança originou a aldeia Ikólóéhj e algumas aldeias menores nas redondezas que foram (e continuam) se multiplicando. Vejamos como isso tudo aconteceu.

Mesmo com a terra devidamente demarcada, desde 1977, colonos provenientes das regiões Sul e Sudeste do país, passaram ocupar a área sul da T.I. Agindo de má fé, pois sabiam tratar-se de Terra Indígena, algumas pessoas ligadas a órgãos públicos, marcaram lotes e venderam as “marcações” aos migrantes recém chegados a Rondônia. Em 1984 e 1985, sem que a FUNAI e a Polícia Federal resolvessem o assunto, os Ikólóéhj e Arara tomaram a iniciativa de expulsar os invasores. Diante da determinação dos índios em não perder parte da já exígua terra demarcada, os órgãos do Estado passaram a agir. O cadastro do INCRA informa que aproximadamente 400 famílias estavam ocupando irregularmente a T.I. Os colonos foram retirados e parte deles foi reassentada no município de Machadinho, no estado de Rondônia. Mas a ameaça de novas invasões nas picadas já abertas era uma constante. Diante desta insegurança, os Ikólóéhj e os Arara que também habitavam uma aldeia no interior da T.I., resolveram deslocar-se para o limite sul e assim coibir novas invasões87. Neste

processo, instalaram-se inicialmente nas benfeitorias abandonadas e com o tempo novas aldeias foram estruturadas retomando o padrão de uma aldeia para cada grupo familiar.

Em decorrência deste deslocamento, a aldeia Igarapé Lourdes foi perdendo sua importância estratégica. O acesso por estrada para a cidade de Ji-Paraná tornou a região do Ikólóéhj mais atrativa em muitos aspectos, levando-a ao status “aldeia central” em pouco tempo. Neste período, Sebirop já era reconhecido como cacique, e sua atuação na expulsão dos invasores, juntamente com a de seu irmão Padág, legitimou sua liderança que havia iniciado ainda na aldeia Igarapé Lourdes.

Antes da expulsão dos invasores, no entanto, a FUNAI retirou os missionários da T.I., como mencionei acima. Contam meus interlocutores que Apoena Meirelles, presidente da FUNAI à época, ao visitar a aldeia Igarapé Lourdes para as tratativas da retirada dos

87 Os anos 1970 e 1980 assistiram a uma violenta ocupação do Território de Rondônia. O Estado brasileiro estimulou a migração de camponeses das regiões Sul e Sudeste através de projetos de assentamento agrícola que foram insuficientes para atender a demanda. Para detalhes sobre este processo ver Felzke et.al (2014). Diante disso as terras indígenas passaram a ser alvo de indivíduos que agiam de má fé e vendiam lotes aos colonos recém-chegados.

colonos, questionou os Ikólóéhj sobre a ausência das festas tradicionais. Ao saber que estas não mais se realizavam devido à censura dos missionários, Apoena perguntou se desejavam seu afastamento. Mesmo que parte dos Ikólóéhj estivesse insatisfeita com a censura interposta pela igreja, sua etiqueta não permitia expulsar aqueles brancos que haviam, de certa forma, tomado como seus, que estavam presentes há cerca de vinte anos em seu meio e que os haviam ajudado em muitos aspectos. Não foi preciso ferir sua etiqueta, o presidente da FUNAI se encarregou de exigir sua saída.

Aproximadamente dez anos depois, os próprios Ikólóéhj solicitaram o retorno do missionário Orestes sob a promessa de que este não interferiria na sua “cultura”. No tempo que ficou proibido de entrar nas aldeias, Orestes recebia algumas famílias na sede da missão em Ji-Paraná onde continuava trabalhando na elaboração de cartilhas, na tradução da bíblia para a língua Gavião e realizava cultos e estudos bíblicos.

Com a abertura da aldeia Ikólóéhj, esta concentrou a grande parte das famílias que haviam saído do Lourdes88. Mas esta concentração durou pouco tempo e aos poucos a

dinâmica residencial pautada em grupos familiares voltou a operar provocando inúmeras subdivisões e o surgimento de várias aldeias. Uma semana antes de dar por encerrada a etapa de campo, em fevereiro de 2015, descobri, meio sem querer, uma nova aldeia chamada Bananal. Três famílias nucleares de uma mesma família extensa haviam se mudado há pouco tempo para um lugar entre a aldeia Final da Área e Castanheira (Figura 02). Atualmente são dezessete as aldeias Ikólóéhj.

A cada ano que passa, novas famílias deixam a aldeia Igarapé Lourdes e se mudam para perto do Ikólóéhj. O principal argumento utilizado é a dificuldade de acesso. Embora haja uma estrada que ligue esta aldeia até o Ikólóéhj, ela permanece a maior parte do ano intransitável. No período chuvoso é impossível percorrer seus cinquenta quilômetros por terra, apenas a via fluvial pode ser utilizada tornando oneroso o transporte de pessoas e mercadorias. Atualmente, cerca de noventa pessoas, treze famílias nucleares ainda residem na aldeia Igarapé Lourdes. Algumas destas, no entanto, embora mantenham suas casas e constem no registro da SESAI como residentes nesta aldeia, passam a maior parte do ano em outros lugares.

A aparente estabilidade residencial nos anos em que a aldeia Igarapé Lourdes destacava-se como aldeia central, constituiu uma pausa no constante movimento das unidades domésticas e mesmo os grupos familiares que continuam nesta aldeia passaram a se

afastar no núcleo central, próximo ao porto natural do rio, e construíram suas casas mais afastadas como atesta a imagem de satélite abaixo.

Figura 14 - Configuração espacial da Aldeia Igarapé Lourdes em 2016

Fonte: Google Earth, 2016.

As pessoas que se transferiram da aldeia Igarapé Lourdes para a região da aldeia Ikólóéhj me explicaram que o fizeram pela dificuldade de acesso. Se por um lado, a presença do posto de saúde, da escola com ensino médio e da igreja – sede das festas – estimula a manutenção das residências no Ikólóéhj, a tendência é que os grupos domésticos se dispersem cada vez mais pelas redondezas. O padrão residencial em unidades pequenas e autônomas, conforme apontamos acima, é estruturante na socialidade Ikólóéhj. O que denominei de quarto movimento, portanto, está em curso.

Fonte: Mapa das aldeias da parte sul da T.I. elaborado por Thiago Xípo, filho do senhor Madjikihr, morador da aldeia Tucumã.

Como pudemos conferir acima, o padrão residencial anterior ao contato interétnico – e os primeiros anos após – constituía-se de pequenas unidades familiares autônomas, com uxorilocalidade temporária, pulverizadas pelo território, lideradas por um zavidjaj cujo prestígio estava relacionado com o seu tìh, sua grandeza, sua capacidade de realizar festas e de aglutinar em torno de si seus filhos e genros pelo maior tempo possível. Estas aldeias eram interligadas pelos laços de consanguinidade e afinidade e constituíam uma socialidade ampliada através da realização das festas.

A residência uxorilocal temporária, que pode se alongar por anos e eventualmente, tornar-se permanente, como veremos a seguir, cria tensões muito grandes. Se de um lado o sogro não deseja liberar sua filha para um genro muitas vezes considerado insatisfatório por não trabalhar suficientemente, de outro o genro julga que, por mais que se dedique, nunca será suficiente para pagar sua dívida com o sogro. Sendo assim, as divisões são frequentes. Quando não opta pela residência patrilocal, é a neolocalidade que opera. Os casos de neolocalidade são frequentes quando o genro atinge a idade de ser sogro e constituir uma aldeia para si, trazendo, por sua vez, genros para morar consigo.

Depois de tantos movimentos e transformações, os Ikólóéhj retornaram ao padrão residencial disperso, ao que era “costume” como confirmou Sebirop, dentro dos limites da terra demarcada, evidentemente. As festas, censuradas pelos missionários quando os grupos domésticos viviam concentrados na aldeia Igarapé Lourdes, voltaram a ser o espaço-tempo de realização da socialidade ampliada com a dispersão destes grupos. Desde 2007, no entanto, com a mudança das festas do terreiro para a igreja, a socialidade ampliou-se ainda mais com a presença de outros povos. Sugiro, outrossim, que as festas da igreja, além dos elementos sociocosmológicos que encerram, foram instrumentalizadas pelos Ikólóéhj para ampliar suas relações sociais para muito além dos limites conhecidos até então. Além disso, permitem a desejada aproximação com o mundo do branco, sem abrir mão do “ser índio”, assegurado pelos termos em que a festa da igreja se realiza: preparo tradicional, manutenção de aspectos da estética corporal, música e dança até o amanhecer e, especialmente, alegria e animação.

Durante estes movimentos, os Ikólóéhj procuraram estabelecer alianças com os outros, Zoró, Arara, brancos e, mais recentemente, através da igreja, com Suruí, Cinta Larga e Wari’. Certamente muitos outros virão, afinal, como afirma Viveiros de Castro (2000), citando Lévi- Strauss,

‘trata-se de um sistema que não se basta a si mesmo, e que precisa sempre se referir ao meio circundante’ (Lévi-Strauss 1958b: 168). O exterior é portanto um traço interno, constitutivo da estrutura como um todo — ou melhor, ele é o traço que impede ativamente a estrutura de se constituir como um todo. (VIVEIROS DE CASTRO, 2000, p.25).

Portanto, o exterior como parte da estrutura interna, leva os Ikólóéhj ao desejo estratégico de tornar afins potenciais em afins reais, e assim incorporar pessoas, o que tem sistematicamente se concretizado. A “abertura ao outro”, tem possibilitado, desde o “tempo dos antigos”, a incorporação de todas outras coisas – além de pessoas – que lhes interessa, ou seja, mitos, bens, costumes, rituais e deuses. É com este intuito que, desde o início do contato, se empenharam em “pacificar” o branco e, assim ter acesso garantido aos “donos da riqueza” de que fala um dos mitos de origem sem, no entanto, abrir mão do “ser índio” que passa, inevitavelmente, pela festa/dança, ou seja, a ibalàe. Tanto é que só abriram mão das danças com bebida fermentada no terreiro quando puderam dançar na igreja.

Assim, os Ikólóéhj se constituíram enquanto povo, se relacionando com outros indígenas, com os brancos e com as coisas que lhes são próprias, suas mercadorias, sua forma de tratar as doenças, sua educação através da palavra escrita e, por fim, sua religião, que encontrou similitudes em vários aspectos da sua sociocosmologia. Em meio a tudo isso, depois de experimentarem uma fase de concentração na aldeia Igarapé Lourdes, os Ikólóéhj

retornaram ao antigo padrão residencial com aldeias formadas por um pai/sogro e sua família extensa. Tentaremos, na sequência explorar rapidamente como se constituem as relações de parentesco que estruturam a vida e a configuração das aldeias ikólóéhj.

O parentesco e as relações sociais entre si e com os outros: reflexões iniciais

Nesta seção tratarei brevemente de alguns aspectos do parentesco ikólóéhj. Seu complexo e interessante sistema de parentesco merece uma análise mais apurada que não foi possível realizar aqui, entre outros motivos, porque demandaria um deslocamento da proposta da tese. Não me furto, no entanto, em proceder algumas reflexões iniciais especialmente atendendo aos interesses de meus próprios interlocutores que se mostraram empolgados com as genealogias e as questões sobre parentesco que lhes fazia. Apontamentos sobre algumas reflexões a respeito das categorias de parentesco estão inseridos no apêndice. Como vimos, neste périplo de deslocamentos, as alianças dos Ikólóéhj com outros grupos eram frequentes. Apontei acima que as relações com os Zoró oscilavam entre momentos de intercasamentos e guerras. O contato inicialmente pacífico com os Arara, por sua vez, sofreu um abalo pelo evento descrito há pouco. Ambos os casos, no entanto, evidenciam o interesse exogâmico dos Ikólóéhj apesar do ideal endogâmico manifestado nas falas de meus interlocutores e nas próprias regras matrimoniais que prescrevem o casamento de EGO masculino com a filha da irmã (ZD), a irmã do pai (FZ) e a filha do irmão da mãe (MBD), coerente com o que afirma Viveiros de Castro (1995, p. 12) para a Amazônia

[...] onde domina uma morfologia de grupos locais pequenos e atomizados, o casamento de primos cruzados bilaterais se realiza comumente dentro de uma moldura de endogamia local. Sinais de uma preferência matrimonial avuncular (que coexiste com o casamento de primos) marcam várias terminologias do tronco Tupi e algumas terminologias da família Caribe.

A distinção dos Ikólóéhj em relação a esta configuração amazônica ocorre pela ausência de bilateralidade, pois entre os Ikólóéhj, na geração do EGO, apenas a prima cruzada matrilateral (MBD) é considerada óbarápir, ou seja, mulher casável. A prima cruzada patrilateral (FZD) é considerada filha, ou seja, ódi, pois sua mãe é um dos casamentos preferenciais de EGO (FZ = W). Os Ikólóéhj possuem uma terminologia de feições dravidianas, mas com distinções importantes em relação ao dravidianato clássico. A similitude com a terminologia dravidiana fica por conta do uso do mesmo termo para pai (F) e irmão do pai (FB) enquanto utiliza-se termo distinto para o irmão da mãe (MB) que equivale ao WF