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Os cinquenta anos de evangelização: a festa animada de

Há cinquenta anos, os primeiros missionários protestantes chegaram às aldeias dos Ikólóéhj. Tratava-se de integrantes da NTM, sediada em Sanford, na Flórida (EUA), que em anos subsequentes instalou uma seção brasileira, a MNTB. Já aludimos sobre a filiação teológica desta agência missionária, resta-nos complementar que foi fundada em 1942 por Paul Fleming, no contexto da expansão dos conceitos fundamentalistas conservadores que faziam frente às tendências liberais e ecumênicas de igrejas protestantes históricas. No último quartel do século XX o sentimento proselitista dos fundamentalistas se fortaleceu. A partir do slogan “a evangelização do mundo nesta geração”, se preocuparam com a criação de inúmeros Institutos Bíblicos para a formação de missionários que passaram a ser enviados a vários países. Assim a NTM dava vazão ao sentimento de urgência dos fundamentalistas, que se consideravam (e se consideram) os responsáveis pela divulgação da fé cristã antes do retorno do Cristo. Seguindo esta motivação, em 15 de outubro de 1963 o casal de missionários alemães, Horst e Annette Stute, desembarcam no Brasil. Um ano e meio depois travavam os primeiros contatos com os Ikólóéhj.

No site da Missão Novas Tribos do Brasil, é possível ler a declaração do pastor Orestes:

Um velho barco com motor os levou até lá no Posto Indígena Igarapé Lourdes46. Encontraram algumas famílias e conseguiram estabelecer um mínimo de amizade. Foram convidados a construir uma casa ao lado da deles, porém, isso se realizou somente um ano depois. O início foi difícil, mas a vida lá entre estes poucos índios e as miríades de insetos (piuns e borrachudos) começou. Alguns indígenas já falavam português, mas para os missionários começou a longa luta com a língua Gavião. É uma língua bonita, porém difícil, com sessenta (60) variações de vogais e um sistema tonal com complicados passos descendentes. Vários anos se passaram, [...] e no lado espiritual surgiram também os primeiros Gavião convertidos. Os primeiros foram batizados. (MISSÃO NOVAS TRIBOS DO BRASIL, 2012).

Perguntando aos Ikólóéhj sobre o significado do dia 25 de janeiro de 1965, muitos responderam que este é “o dia que a palavra de Deus chegou até nós”. Aquele primeiro

46 De fato não havia ainda Posto Indígena em 1965 nas margens do igarapé Lourdes. O primeiro funcionário do SPI foi designado para a região em 1966 e o Posto Indígena Igarapé Lourdes foi criado em 02 de abril de 1971 pelas portaria 06/N para “prestar uma assistência efetiva aos grupos indígenas Suruí, Arara e Gavião”.

encontro, no entanto, havia sido uma passagem rápida, uma viagem de reconhecimento, pois apenas no ano seguinte os missionários se estabeleceram de forma definitiva, fato que abordaremos em detalhes no capítulo seguinte.

A comemoração desta data diz respeito exclusivamente à “chegada da palavra de Deus” por intermédio da MNTB, pois tentativas de evangelizá-los já haviam sido empreendidas antes disso por missionários salesianos que percorriam o rio Machado e seus tributários realizando a desobriga – atividade de padres missionários para realizar casamentos, batizados, comunhões e confissões no interior da Amazônia, uma espécie de quitação de débito com os serviços religiosos – entre os seringueiros e ribeirinhos. Nestas oportunidades, os missionários falavam do evangelho de Jesus Cristo para os índios que trabalhavam nos seringais e, eventualmente subiam os igarapés até as aldeias como fez o padre Adolpho Roll, como relembra cacique Sebirop, criança na época:

Sim... primeiro foi padre o Adolpho, antes do Orestes chegar. Junto com ele tinha o exército também, dois sargentos e quatro soldados foram com padre Adolpho até no Lourdes, de lá foram até na [aldeia] Zav Pohj, a Teresa foi batizada lá. Onde ele chegava batizava, eu vi ele, tinha barba comprida, ele foi primeiro que falou de Jesus. Ele falava de Jesus, só que a gente não entendia direito. A gente chamava o padre de vaváh.

Credito a elisão deste período pregresso de evangelização a três motivos: inicialmente a ausência de registros mais concretos e informações mais precisas a respeito das datas em que os encontros com os salesianos aconteceram; em segundo lugar está o fato de que os indígenas não viam grandes distinções entre a atuação daqueles homens e de seus xamãs, a ponto de chamá-los de vaváhéj, os xamãs dos djálaéhj, alguém que mediava as relações dos homens com os seres de outros planos cósmicos. Por fim, e talvez o principal motivo da omissão da passagem dos salesianos, seja o interesse da MNTB em deter a primazia do anúncio da palavra de Deus entre os Ikólóéhj já que foi esta agência missionária que, de fato, deu continuidade e sistematizou a doutrinação cristã nos anos subsequentes.

Tendo como enredo o meio século de atuação da missão, uma nova festa teve lugar na aldeia Ikólóéhj quarenta dias após o Natal. Marcada para os dias 06 a 08 de fevereiro, com a presença de brancos – missionários de diversas regiões, SESAI, FUNAI – e das igrejas partícipes da MEIRON, as comemorações iniciaram para os índios antes mesmo do dia 25 de janeiro. O pouco investimento e mobilização para a recente festa de Natal foram compensados pelo entusiasmado em torno dos festejos dos cinquenta anos de evangelização. Novamente efervescência, movimentação, trabalhos coletivos, reuniões preparatórias, ensaios de grupos de louvor, danças nas noites. Uma novidade, no entanto, passou a ser comentada nas rodas de conversa nos dias que antecederam esta festa. Havia sido formada uma comissão

de cinco homens ikólóéhj que passaram a percorrer as aldeias realizando reuniões de avaliação sobre a atuação da igreja.

Como apontamos acima, diversamente da “comunigreja” dos Koripako, cujas regras e formato de atuação são seguidos escrupulosamente desde o tempo da missionária Sophie Muller, sem qualquer tipo de alteração ou questionamento, pelo medo de que qualquer mudança trouxesse prejuízos ao evangelho no alto Içana (XAVIER, 2013); entre os Ikólóéhj há uma clara distinção entre os assuntos que pertencem ao âmbito da igreja e aqueles que pertencem ao âmbito da comunidade e, neste sentido, a igreja, tanto quanto as outras entidades que atuam nas aldeias, são objeto constante de avaliações críticas por parte dos indígenas. Sua presença é estimada, mas há limites na sua interferência.

A partir da instalação dos missionários na aldeia, os Ikólóéhj passaram por diferentes fases de relacionamento com eles e com o próprio evangelho. Estas fases se alternaram entre a conversão quase unânime (anos 1960), o abandono igualmente quase consentâneo (década de 1980) após a expulsão dos missionários (1979), a solicitação para seu retorno à aldeia (1992), a adesão massiva depois da implantação das festas na igreja (2007), a frequência alta nos dias que antecedem a festa, sua redução nos dias seguintes aos festejos, ou seja, relações dinâmicas operam desde o princípio do trabalho missionário.

Os Ikólóéhj, portanto, não fogem à inconstância observada nos “anos iniciais de proselitismo missionário entre os Tupi” (VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p.188). Nos deteremos neste ponto a frente, mas é sintomático que meus interlocutores tenham indicado apenas um casal que permaneceu fiel desde que aderiram ao evangelho pelas mãos do pastor Orestes nos anos 1960. Todos os demais, incluindo os mais próximos auxiliares dos missionários, haviam “caído”, se afastado, em algum momento. Alguns retornaram, outros não. A festa dos “cinquenta anos” foi o pretexto para o retorno (abirixàe) de dezenas de pessoas que estavam afastadas da igreja.

A comissão percorreu a maioria das aldeias. Assisti a uma destas reuniões. Naquela oportunidade estavam presentes algumas das principais lideranças políticas Ikólóéhj, totalizando cerca de vinte pessoas. Foi um momento em que todos puderam expor sua opinião sobre diversos assuntos relacionados à igreja. O esforço da comissão se deu no sentido de ouvir as reclamações das pessoas para tentar aproximar grupos divididos e iniciar uma nova fase em que lideranças da igreja e lideranças tradicionais, categorização utilizada pelos próprios Ikólóéhj trabalhassem unidas, afinal encontravam-se às portas de completar cinquenta anos de evangelização e, segundo eles mesmos argumentaram, “parece que os

Gavião foram evangelizados ontem”, ou ainda, “parece que nunca vão aprender”, detectando a volatilidade das conversões e as constantes cisões de grupos.

A proposta da comissão era ouvir cada aldeia e, na sequência, realizar uma reunião ampliada para debater os assuntos levantados e chegar a um consenso de como seria a condução da igreja daquele momento em diante. Deixei a aldeia pouco depois da festa dos 50 anos, mas soube que esta reunião ampliada acabou não acontecendo. De qualquer forma, duas constatações podem ser inferidas diante da formação e atuação desta comissão. A primeira diz respeito aos posicionamentos divergentes acerca do trabalho realizado pela igreja, a segunda refere-se às expectativas dos indígenas em relação ao sentido mesmo de sua adesão. Vamos à primeira.

Em inúmeras oportunidades observei manifestações públicas e privadas de insatisfação em relação à atuação da igreja. A mais emblemática foi uma audiência no Ministério Público Federal em Ji-Paraná que comentei brevemente acima. Esta audiência teve lugar nos primeiros meses de pesquisa entre os Ikólóéhj. Compareci ao MPF convidada pelas lideranças indígenas. Minha presença na reunião repercutiu negativamente entre os missionários que se sentiram incomodados. Este incômodo replicou dentro da aldeia. Fui questionada por uma liderança da igreja sobre esta audiência onde expliquei que enquanto pesquisadora era importante acompanhar as situações que envolvessem os Ikólóéhj. Este evento despertou o interesse de compreender o lugar da igreja entre este povo, pois deixou claro que havia fraturas nas relações entre indígenas e missionários que, a priori, me foram apresentadas como harmônicas.

Naquela oportunidade, ficou claro que havia distintos posicionamentos em torno do trabalho da missão. A queixa principal do grupo de indígenas que solicitou a audiência dizia respeito à ausência de articulação dos trabalhos da igreja com os outros setores da aldeia, tais como saúde e educação. As lideranças presentes reclamaram que as constantes e longas saídas de professores e agentes de saúde para festas da igreja em outras aldeias e terras indígenas prejudicavam os trabalhos da educação escolar e o atendimento de saúde.

Homologamente, a reunião da comissão apontada acima tratou sobre a necessidade de um trabalho conjunto entre igreja e lideranças tradicionais, os zavidjajéhj. O cacique Sebirop refletiu sobre o fato de alguns líderes crentes ignorarem sua autoridade ao planejar as atividades, “[...] isso eu reclamo pra vocês, eu queria que vocês falassem para mim, eu que sou

pazágà [esteio, referência], eu queria que vocês me comunicassem sobre quando chegarão as

que seu envolvimento implicaria, por exemplo, em acionar as equipes de saúde para realizar um atendimento diferenciado nos dias de festa. Seguiu sua fala utilizando um exemplo dos brancos:

[...] o turismo não chega sem comunicar o prefeito, mesma coisa os nossos parentes não devem vir invadir a nossa aldeia, isso que eu quero dizer. Se o zavidjaj fica sabendo ele vai participar, se o convite foi dado pro zavidjaj que tal horário vai acontecer festa, o zavidjaj vai participar da festa. A comissão concordou com a fala do zavidjaj e um de seus membros reconheceu a falha da igreja em valorizar os líderes tradicionais e aqueles indígenas que desempenham funções nas diversas esferas do Estado e das ONGs e que são atualmente considerados

zavidjajéhj:

Parahr [bom]! Assim nos sentimos como gente, nós precisamos seguir essa regra, é bom que o

líder da igreja considere esse tipo de pessoa [zavidjaj] quando acontece o evento. Ele tem que dizer que agradece e se apresenta para as pessoas dizendo que aqui estamos nós e aqui está o cacique: ‘este é o pavebir’ [pessoa sob a força de quem a gente vive]. É nessas coisas que a igreja desvia [...].

A despeito da autoridade não tão incisiva dos chefes tupi, apontados pela literatura (CLASTRES, 2012 [1974]; LÉVI-STRAUSS, 2005 [1955]), os chefes tupi mondé ocupam um lugar menos difuso na organização social. O zavidjaj é o dono da maloca e como tal é o “esteio” de seus parentes e afins. Zavidjajéhj de prestígio, com a capacidade manter seus genros por perto em uma organização social cuja residência mais comum é a uxorilocalidade temporária, ou seja, capacidade de realizar muitas alianças, são respeitados em um âmbito maior do que sua própria maloca. Tal era o caso do zavidjaj Djigúhr, pai do cacique Sebirop e do zavidjaj Xikov Pí Pòhv, seu sogro, ambos já falecidos. Não reconhecer as pessoas que são “esteios”, referências, aqueles “sob a força de quem se vive” antagoniza diretamente com o entendimento Ikólóéhj sobre o significado de uma “boa conduta” previsto na sua sofisticada etiqueta. Ser gente de verdade passa pela cordialidade e pelo respeito no trato com o outro, que é o ideal de educação dos meus amigos, a educação para a boa conduta. Se neste aspecto houve, a priori, um “encontro de sociologias” (VILAÇA, 1999) entre os Ikólóéhj e o cristianismo protestante, em algum momento a igreja tomou caminhos distintos das práticas

ikólóéhj. Apontei acima as orientações de líderes da igreja e dos missionários para que as

lideranças políticas não ocupassem o lugar de fala nas festas. Tal decisão não satisfez a todos (ou a muitos). Não por acaso, a última fala enfatiza o “assim nos sentimos como gente”. Sentir-se como gente está relacionado ao respeito aos “esteios”. A rígida moralidade imposta pela missão – e sua concepção fundamentalista do evangelho – desqualifica estes líderes e promove ambiguidades na forma como os índios devem agir em relação aos seus “esteios”.

A segunda constatação referiu-se precisamente a este ponto. Cinquenta anos após as primeiras conversões ao cristianismo, os Ikólóéhj ainda buscam atingir o ideal de socialidade anunciado pela pregação cristã. Se entre os Wari’ este ideal se traduzia em uma sociedade sem afins (VILAÇA, 1999) e na estabilização do universo dos Wari’ enquanto humanos (idem., 2016) entre os Koripako em uma sociedade livre de vinganças (XAVIER, 2013), pergunto qual seria para os Ikólóéhj este ideal?

Assim que todos opinaram neste encontro com a comissão – como é de praxe nas reuniões, onde a palavra é sempre franqueada a todos os presentes – um dos zavidjajéhj presentes solicitou a um dos líderes da igreja que encerrasse o momento com uma oração. Tal prática tem sido frequente nos encontros de diferentes naturezas. Este mesmo procedimento foi adotado no encerramento da reunião de Revisão do Plano de Gestão da T.I. Igarapé Lourdes em setembro de 2013. Como já afirmei acima, todos na aldeia, independente de frequentarem a igreja ou não, de beberem ou não, de namorarem ou não, de “bagunçarem” ou não, se consideram crédulos em Deus e Jesus Cristo, embora não necessariamente crentes no sentido estrito do termo.

A festa dos “cinquenta anos de evangelização” constituiu um apelo irresistível para que muitos “afastados” retornassem à igreja. O desejo de ser autorizado a dançar em uma festa tão concorrida fez com que muitos não quisessem permanecer apenas como espectadores. Por conta disso, nos cultos que a antecederam, sobreveio uma abundância de “conversões” (amapé) e “retornos” (abirixàe) de jovens e adultos. Estes cultos ocorreram com a igreja lotada, tanto de fieis costumeiros quanto de famílias que eu ainda não havia encontrado neste ambiente desde que chegara à aldeia.

Desde o dia 21 de janeiro pequenos grupos, de dez a vinte pessoas, começaram a dançar todas as noites, após os trabalhos diários em preparação à festa. Ao que parece, tais danças equivalem ao Táhná, pequenas festas prévias ao acontecimento principal. No Táhná das festas tradicionais, muita macaloba era oferecida pelo madjaj. Nas festas da igreja, o Táhná é realizado com uma rápida pregação, música e danças madrugada à dentro.

O culto matutino do dia 25 de janeiro foi o mais prestigiado. Com a igreja lotada, um dos missionários pregou sobre a prova que Deus fez com Abraão, ao ordenar que este sacrificasse – novamente nos deparamos com a questão do sacrifício – seu filho Isaque para testar sua fé. A performance do missionário responsável pela pregação foi absorvente, a entonação de voz, o gestual, tudo contribuiu para atrair a atenção dos ouvintes. Em seguida formou-se um coral improvisado de homens e mulheres que cantaram um dos primeiros

hinos compostos na língua gavião. Tal gesto relembrou o tempo do pastor Orestes que os adultos sentem saudades. Ao final do culto, algumas pessoas mais velhas vieram conversar comigo sobre sua nostalgia, da mesma forma que já haviam falado antes sobre a saudade dos xamãs e das festas tradicionais. Os Ikólóéhj são saudosos, tanto das festas do vaváh Xípo Ségóhv e dos zavidjajéhj Sorabáh Diguhr e Xikov Pí Pòhv, quanto das canções entoadas em conjunto na igreja na “época do pastor Orestes”. Desconfio, no entanto, que a saudade maior é da pessoa do missionário Orestes e da sua esposa Annette, os brancos com quem estabeleceram a relação mais duradoura e que foram, de certa forma, aparentados.

Ao final deste culto, aproximadamente dez jovens foram recebidos novamente como membros da igreja. “Estavam desviados, estão voltando, pedindo perdão”, explicou o homem ao meu lado. O procedimento usual, nestes casos, implicava que as pessoas se dirigissem até a frente e, um após o outro, falando ao microfone, demonstrassem seu desejo de corrigir seus “pecados” e retornar para a igreja. Cada confissão era apoiada pelos aplausos da plateia. Inúmeras pessoas, mas especialmente jovens, passaram por este momento de retorno, pàábirixàe (nossa volta, nossos retorno). O volume de conversões e retornos suscitou comentários variados. “Viu só quantos jovens voltando pra igreja?”, observou alguém. Outros são mais desconfiados: “isso daí é só porque tem a festa chegando, é da boca pra fora”. Nos cultos seguintes outras dezenas tomaram o mesmo caminho. Este procedimento é precedido de uma manifestação de intenções à diretoria da igreja – que se reúne nas tardes de domingo para deliberar sobre vários assuntos –, quando confessam seus pecados, pedem perdão a Deus e ouvem as exortações e conselhos dos líderes da igreja.

O fato de falar abertamente dos “pecados”, parte constitutiva do processo de abirixàe, (retorno, no singular) antagoniza substancialmente com a ética ikólóéhj em torno do valor do segredo. A eventual publicização de namoros secretos provocam mal estar e polêmica na aldeia. Esta prática de confissão pública não é bem aceita por todos. Mesmo alguns crentes consideram um exagero e afirmam que o importante é “se resolver com Deus” e não para a diretoria da igreja. Este é mais um ponto que os críticos das práticas da igreja tem apontado como prejudicial, como um aspecto que traz divisão entre as famílias. Por conta disso, ouvi muitas vezes que “na igreja tem muita fofoca”. Um homem que estava pensando em retornar (xibirixàe) reiterou o mal estar provocado por esse tipo de confissão: “Eu vou falar com o líder da igreja, eu vou ter que ir à frente também, mas não vão me obrigar a falar coisas que eu não quero, que eu tenho que resolver com Deus”.

Esta prática é antiga e, em oportunidades anteriores, provocou a mudança de famílias de uma aldeia para outra, pois a convivência havia se tornado insustentável após determinados segredos terem sido revelados. Os “pecados” relacionados aos namoros são sempre os mais polêmicos. Mesmo a imposição de regras morais rígidas parecem não surtir muito efeito, “nessa parte de namoro os Gavião nunca vão se converter”, afirmou veementemente uma liderança.

Os casos de crentes que constantemente “pecam”, se afastam, se arrependem, retornam, voltam a “pecar” e se arrependem novamente e assim sucessivamente são bastante comentados: “fulano está voltando pela décima vez, ninguém mais acredita”. É corrente nas conversas que tantas conversões e retornos são motivados unicamente pela festa. “Ninguém quer ficar de fora” é o argumento mais utilizado neste caso, mas tal atitude sofre severas críticas dos mais velhos, como um amigo ikólóéhj me explicou:

[...] muitos desses jovens que vão à frente ‘se entregar pra Jesus’ não sabem direito o que estão fazendo. É uma brincadeira. Orestes me ensinou, quando eu era jovem e queria aceitar Jesus, ser

crente, que eu já era de Deus, mas que essa decisão exigia maturidade e, por isso, eu devia pensar

melhor. [...] Esse pessoal fica brincando com Deus, não levam a sério não.

Ao perguntar sobre quais atitudes são passíveis de afastar uma pessoa da igreja e que