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Reafirmação das especificidades da festa da igreja

No mês de novembro, após um dos cultos de domingo pela manhã houve uma reunião na igreja com o objetivo de discutir alguns assuntos relacionados aos preparativos do Natal. Inicialmente, os líderes, membros da diretoria, fazendo a vez do madjaj, convocaram as pessoas de todas as aldeias para ajudar nos afazeres: dobrar palha, cortar lenha, ajudar na construção e na limpeza do local, entre outros trabalhos manuais. Mas a maior preocupação neste dia repousava sobre o comportamento inadequado de algumas pessoas nas festas. Ao que parece, em momentos anteriores, alguns “bagunçaram” durante as danças. “Bagunçar” é como os Ikólóéhj chamam um comportamento inconveniente, e dançar embriagado é um deles. Um destes momentos ocorreu na festa de aniversário da igreja da aldeia Apoena Meirelles na TI Sete de Setembro, do povo Suruí, para a qual os Ikólóéhj foram convidados e muitos compareceram – de motos, de carros e na carroceria de caminhões.

A convite de meus amigos, acompanhei um grupo na carroceria de um desses caminhões. Também um grupo de uma igreja de brancos da cidade de Cacoal, Assembleia de Deus (de caráter pentecostal) se fez presente e dançou com os indígenas enquanto os músicos se revezaram no palco. Eu soube depois que em um destes grupos tocaram e cantaram algumas pessoas que estavam afastadas da igreja naquele momento – justamente pelo uso de bebidas alcoólicas, um dos comportamentos que desqualifica uma pessoa como

crente. No dia desta reunião foi possível perceber o quanto tal situação reverberou

negativamente na aldeia. Um dos membros da diretoria iniciou este assunto explicando: Nós já chegamos ao ponto de ter vergonha porque está acontecendo problemas. Vou falar primeiro sobre isso. Também vai acontecer uma grande festa na nossa aldeia. E lá a gente chega pra participar de qualquer maneira. Nas danças e os bêbados no meio, dançando, pensando que é assim mesmo. Isso é bom pra vocês? Por isso que nós que estamos na frente [líderes] vimos que não está certo, não! Por isso nós que tomamos a frente vimos que não está sendo certo, reunimos e falamos pras crianças [jovens, pessoas não casadas] que não está certo. Por isso os pamakóbáhej [missionários] passaram pra nossa responsabilidade pra gente fazer isso. Essa responsabilidade não está mais com eles. Não! Está na nossa responsabilidade agora de cuidar de nosso povo. Vocês vão falar dos problemas pra eles [missionários], dos problemas que estão acontecendo na igreja, que os bêbados vão tocar, cantar na igreja, isso não está na responsabilidade deles mais. Está na nossa responsabilidade. Vocês estão recorrendo às pessoas erradas, passando por nós, desviando de nós. Em vez de falar pra gente, eles já passaram isso pra nossa responsabilidade. Aqui estão os líderes, só que estes líderes estão dormindo. Que é que eu fiz quando eles me falaram isso? Será que eu fiquei com raiva? Não! Me senti envergonhado porque eles me cobraram. Por isso dizemos para nossos zèraréhj [neste caso: sobrinhos, jovens], vamos passar Natal assim, bons, é isso que Jesus quer pra gente. Jesus não quer a gente ruim, Jesus quer receber as pessoas dele, padjaj pár [crentes], bons, não pecadores, meus irmãos e minhas irmãs.

Os membros da diretoria – a quem foi incumbida, pelos missionários, a responsabilidade de cuidar do bom andamento das atividades da igreja incluindo zelar pelo comportamento dos crentes – mostraram preocupação diante das atitudes indevidas de alguns,

mas também pelo fato de tal informação ter chegado aos missionários. Esta “transferência” de responsabilidade é parte do que um dos missionários explicou diante do Procurador do Ministério Público Federal em uma reunião provocada pelas lideranças ikólóéhj. Segundo ele, seu trabalho “não é pastorear igrejas, mas sim implantar igrejas” – e tal objetivo aparece em seu site40. É neste sentido que a fala acima explica serem os líderes indígenas aqueles que

devem cuidar do comportamento dos seus membros. Isso torna a situação complexa, na medida em que a diretoria é uma instituição dos brancos que representa a moralidade de igreja, e mesmo que os indígenas estejam ocupando seus cargos, a comunidade ainda vê nos missionários brancos os “guardiões” desta moralidade. Não é aos indígenas que a comunidade irá recorrer em caso de “escândalo”, como foi o caso relatado acima. Além do mais, segundo a etiqueta Ikólóéhj, estes homens não irão se indispor com os parentes, consanguíneos e afins, da sua geração, ou das gerações ascendentes (+1 e +2) pelo evidente respeito aos mais velhos que é sistematicamente obedecido. No limite, chamarão a atenção dos mais jovens, das gerações descendentes (-1 e -2).

O acontecimento na festa da igreja Suruí levantou a discussão, durante esta reunião, de que apenas aqueles que são membros da igreja deveriam tocar, dançar e cantar, pois estes “sabem o que estão fazendo”. As falas reforçavam a distinção das festas da igreja em relação a outras festas. A insistência neste ponto corrobora a impressão que tal distinção não está clara e bem estabelecida – e os líderes da igreja sabem disso; por isso reiteram nos seus discursos qual deve ser a motivação, do ponto de vista dos ensinamentos protestantes fundamentalistas, para participar das festas, tal como falou outra liderança da igreja:

Então houve a festa na aldeia Suruí, onde nós fomos participar também. Lá um reconheceu seus conhecidos, e disse, ‘ah, é aqueles que ficam bêbados’! Isso envergonha a gente, as pessoas desconfiam da gente quando a gente pratica esse tipo de coisas. [...] Perguntam se ‘é assim que a gente trabalha pra Deus?’ e isso deixa a gente ficar com vergonha. Que acontece por isso? As pessoas não acreditam [vekoj éá] em Deus. O que acontece por causa disso? As pessoas falam: ‘não existe Deus então? Cadê que Ele faz mal pra essas pessoas?’. Isso enfraquece a confiança em Deus. Por isso eles resolveram fazer isso antes da grande festa acontecer. Falo isso mesmo que eu seja pecador, meus irmãos, outras coisas que nós pensamos que é sobre festejar amanhecendo, será que isso deixa a gente firme em Deus? Será que isso faz as pessoas pensar que Deus é dessa forma? Talvez a gente está somente dançando à toa, festejando, a gente não está querendo dizer que a gente vai parar com isso, apenas queremos que a gente relembre que Paadjaj nos salvou do pecado e pensando nisso que nós poderíamos ficar dançando, não dançando à toa, somente isso.

Esta fala foi emblemática em vários aspectos, mas nos interessa, neste momento, destacar dois pontos. O primeiro é que o interlocutor concluiu que a “má conduta” de

algumas pessoas que participaram da festa embriagados coloca em xeque a atuação da Igreja Evangélica Gavião; e mais: “enfraquece a confiança em Deus”. Afinal, se alguém utilizou o espaço da igreja de forma errada e não foi castigado – “cadê que Ele faz mal pra essas pessoas?” – tal feito pode suscitar alguma desconfiança sobre o caráter poderoso deste Deus. A ênfase das missões em reforçar o caráter de um Deus castigador, quiçá vingativo, parece ter sido o tom dos ensinamentos recebidos pelos indígenas, como pudemos perceber em um estudo bíblico sobre a saída do povo de Israel do Egito, dirigido por um missionário41:

O que Deus é então? Ele é tão poderoso! Eles não tinham como passar por cima/desviar [Padjaj

pákov ábirika] porque ele é poderoso. Tem como a gente fugir por si mesmo no dia do

pagamento/castigo/vingança dos pecados [pèe sore vépíkae] (Juizo Final)? Não, não tem como escapar. Não tem como a gente fugir se a gente tentar por si mesmo. Tem como a gente se salvar do Castigo Final por si mesmo? Não, de jeito nenhum. Assim o Padjaj cobriu [de água] os guerreiros do faraó [ao passar o Mar Vermelho].

Atribuir um caráter castigador ao Deus cristão não é exclusividade dos missionários que atuaram e/ou atuam com os Ikólóéhj. Incutir o temor ao castigo divino faz parte do processo de evangelização. Entre os Koripako, por exemplo, evangelizados por Sophie Muller, prevalece a concepção que as doenças são decorrentes de castigo divino por conta do pecado humano:

A explicação apresentada pelos anciãos evangélicos do Alto Içana para o surgimento de doenças é que elas são, em primeiro lugar, sempre atribuídas a algum pecado ou afastamento de Deus. Segundo esse ponto de vista, a doença continua a ser entendida em termos relacionais. Muitas vezes, o próprio Deus torna-se mesmo o agente da doença, com o sentido de reconduzir o crente ao arrependimento. A agência do diabo, nesse caso, não tem muita importância para os crentes koripako, e não se atribui a ele um papel significativo no aparecimento de doenças (XAVIER, 2013, p.406).

Este temor de um castigo dos entes espirituais, neste caso o Deus cristão, é algo novo, disseminado pela pregação protestante? Ou já fazia parte do entendimento dos Ikólóéhj de como se dão as relações entre humanos e as outras gentes? As descrições de festas tradicionais que obtive de meus amigos dão conta de que cuidado, respeito e obediência sempre estiveram presentes na relação dos Ikólóéhj com estas gentes, e que invariavelmente quaisquer desvios na etiqueta eram punidos. É o que veremos no capítulo três; mas por ora adianto que é legítima a preocupação dos líderes da igreja diante da atitude desrespeitosa de alguns no ambiente em que Paadjaj (lit. Nosso Dono), Jezój (Jesus) e Xihxo Sarúhr (lit. Espírito Dele Brilhante, Espírito Santo) poderiam estar presentes da mesma forma que os Gojánéhj e os

Garpiéhj se faziam presentes nas festas tradicionais.

41 Não participei do estudo bíblico, mas eles foram gravados para serem distribuídos na aldeia e na forma de áudio foram repassados a mim.

Como já assinalei acima, a imposição de uma moral rigorosa aos crentes chamou a atenção de Cloutier (1988), ao acompanhar o desenvolvimento do evangelismo entre os Zoró. Acompanhando inúmeros sermões dos pregadores Pagueyen (Zoró), Cloutier (1988, p.94) observou que:

[O]s sermões tem por função garantir o respeito a uma lei moral extremamente rígida, expressa, sobretudo, no domínio concreto do comportamento cotidiano. A razão primeira dessa lei moral ser respeitada é o desejo de ser salvo no julgamento final (o não respeito a esta lei moral conduz à perdição, este é um tema complementar, esta perdição é vista com uma grande apreensão que reforça o respeito cotidiano a esta lei). (Tradução livre)

No entanto, por mais que esta moralidade seja veiculada frequentemente através dos sermões e dos estudos bíblicos, são poucos os crentes que dão conta de segui-la. Parece-me que o mesmo ocorre entre os brancos. Emblemático que esta rígida moral opera igualmente entre povos que não tiveram influência direta de agências missionárias. Os Urapmin de Papua Nova Guiné nunca foram evangelizados diretamente. Nos anos 1960 enviaram jovens para estudar com missionários batistas de comunidades vizinhas, passaram por um movimento de avivamento com feições pentecostais em fins dos anos 1970. No entanto, a moralidade e a imperiosidade de viver eticamente passaram a ser sua obsessão para evitar a incidência das mesmas humilhações do passado colonial (ROBBINS, 2004). Os Ikólóéhj, por sua vez, parecem não dar conta de seguir esta moralidade rígida, a despeito da insistência dos ensinamentos do protestantismo fundamentalista.

Retomando a fala do líder da igreja, o segundo ponto de destaque foi sua reflexão sobre os motivos que levam as pessoas a dançar. O esforço dos pregadores é sempre no sentido de dissociar a dança da igreja de qualquer outro tipo de referência e relacioná-la unicamente à adoração a Paadjaj e Jezój. Relembremos a fala do líder da igreja na reunião apontada acima:

Talvez a gente está somente dançando à toa, festejando, a gente não está querendo dizer que a gente vai parar com isso, apenas queremos que a gente relembre que Paadjaj nos salvou do pecado e pensando nisso que nós poderíamos ficar dançando, não dançando à toa, somente isso.

Sua preocupação é que fique claro para todos que a dança na igreja só tem sentido se for para relembrar “que Paadjaj nos salvou do pecado”. O “dançar à toa”, ao que parece, refere-se muito mais ao desrespeito às rígidas normas morais, como dançar “bêbado”, dançar estando afastado da igreja por ter bebido ou namorado, utilizar a dança como instrumento para procurar namoro, dançar apenas para rir e se alegrar, sem pensar em Deus ou na salvação, ou ainda associar a dança da igreja com a das festas tradicionais. Estes motivos se enquadram no “dançar à toa” abordado pelo orador. A priori, toda intencionalidade na dança

que não seja especificamente agradecer e homenagear a Deus e a Jesus é considerado “dançar à toa”. Dançar com as motivações erradas certamente trará consequências como indicou a fala de uma mulher em um dos estudos bíblicos que me foram repassados em áudio:

O Paadjaj sempre tem pena da gente, ele não quer que a gente brinque com ele. Por que a gente brinca com Deus? Ele não é brincadeira, por isso não devemos tratar com brincadeira [pavédjiv]. Por isso devemos tratar o Paadjaj como o Djì Tere [senhor, pessoa de verdade]. O Paadjaj não é brincadeira, quando nós viemos pra igreja pra ouvir a palavra dele a gente não tá nem aí com ele. Se a gente não obedecer a palavra dele, ele não receberá a gente [no céu], se a gente não obedecer, ele não receberá a gente.

Portanto, Deus não é passível de brincadeiras, assim como não eram as gentes que agiam de imediato quando alguém desrespeitava a etiqueta esperada nas festas tradicionais. Ainda durante esta reunião, vários líderes da igreja levantaram para discursar a respeito da festa. A plateia ouvia e alguns balançavam a cabeça em concordância. As falas dos oradores seguintes reforçavam o mesmo tema, qual seja, o sentido que a festa deveria ter para os crentes, como reafirmou outra liderança:

[...] quero dizer a vocês que está chegando a grande festa. O que está chegando? Como vocês entendem? É o dia que Paadjaj veio nos salvar quando nós estávamos longe dele, é aquele que chegou como homem, veio nos salvar do pecado quando nós estávamos longe dele. É esse dia que está chegando, hoje nós queremos ver isso, nos alegrando [mátérétá]. Baseados nisso vamos dançar, diga: ‘é por causa dele que eu estou vivo, por causa dele que eu me alimento, por causa dele que meu filho está nascendo’. Vamos entender isso, é isso que ele quer ver na gente [...]. Somente isso quero dizer antes de acontecer a grande festa, que venham com cuidado, com consciência, sabendo que você veio pra adorar a Deus. A gente não sabe o pensamento de Deus, meus irmãos, última vez, será que Deus é bom toda hora? Será que o homem faz o que é vontade dele? O que ele faz por isso? Será que não faz nada? Ele castiga a gente, é por isso nós falamos, vamos viver direito, bem.

Os dois temas já analisados acima são replicados aqui, a motivação “correta” para a dança e o Deus castigador. A necessidade de reafirmar com frequência, nas pregações, o sentido que a festa deve ter e a razão pela qual se deve dançar é sintomático que as lideranças da igreja são conscientes de que nem todos os participantes dançam pensando em Deus e Jesus. Sugiro que o desejo de ampliar a socialidade e de antecipar a imortalidade através de momentos alegres sejam as principais motivações, independente de ser Jezój, os

Gojánéhj ou os Garpiéhj a se fazerem presentes no evento. Sua fala afirma ainda que é Deus o

responsável pela vida, “por causa dele que eu me alimento”, ou seja, ele ocupa lugar homólogo ao que ocupavam anteriormente os Gojánéhj e os Garpiéhj, os donos do milho e das queixadas, respectivamente. Poderíamos afirmar que houve uma substituição de um deus por outro? Uma complementariedade entre eles? Uma gente a mais na cosmologia ou se trata do mesmo ser ressignificado?

De qualquer forma, independente do estatuto que o Deus cristão assume, o mesmo respeito dispensado às gentes durante as festas tradicionais deve ser franqueado a ele durante as festas da igreja. Um dos dançarinos mais empolgados me afirmou que da mesma forma que Goiánéhj, “Jesus também fica brabo quando as crianças não respeitam”. “Crianças” aqui é a categoria utilizada para se referir aos solteiros, independente da idade. “Respeito”, por sua vez, reporta-se à etiqueta prescrita, que no caso de Jesus se refere especialmente ao não beber e ao não namorar. Ao perguntar retoricamente se “Deus é bom toda hora?” o orador alertou aos ouvintes sobre o caráter castigador/punitivo de Deus e responde, “ele castiga a gente, é por isso que nós falamos, vamos viver direito, bem”. Nesta sua fala, o “viver direito, bem” está relacionado a uma ordem moral rígida imposta pela pregação protestante e que em muitos pontos se distingue do que meus interlocutores entendem como viver bem, como discutirei à frente. Adianto por enquanto que este “viver direito, bem” está relacionado ao que os Ikólóéhj chamam de pazo ta mene parar, “educação para uma boa conduta”, segundo tradução do professor Iram Káv Sona. Este é um conceito mais abrangente e profundo e que passa longe de proibições como não beber ou não namorar.

Seguindo-se as discussões sobre os preparativos, levantou-se a questão do lugar das lideranças tradicionais e políticas42 ikólóéhj durante a festa. Neste sentido outro líder da igreja

se manifestou, “e os líderes, caciques, passar por nós e pegar microfone, é bom? Tá certo? Não! Só se os líderes da igreja chamar, eles podem vir apenas agradecer, fazer agradecimento. Não falar qualquer palavra mal, não falar das coisas da terra43, só das coisas boas que esse

tipo de pessoas pode vir falar”.

Esta fala foi complementada por um dos missionários presentes:

Será que qualquer pessoa vai entrar no lugar do professor? Quando professor chega ele vai dizer ‘ué, a SEDUC colocou outro pra trabalhar como professor’? A gente fica com vergonha. Será que uma pessoa chega no agente de saúde dizendo: ‘eu vim te ajudar, pode ir embora descansar’? Nenhuma pessoa faz isso, só se for doido, vamos aprender que aquele lugar é do professor, que aquele lugar é do agente de saúde, aquele lugar é das lideranças pra não sermos misturados, os Ikólóéhj falam que a igreja é de todos. Não é de todos, é somente dos crentes [...].

A primeira manifestação indica uma situação muito comentada entre as lideranças políticas, o não envolvimento dos crentes e missionários nas lutas políticas dos Ikólóéhj e, em um contexto ampliado, no movimento indígena. Reservar aos crentes o espaço de fala da

42 As expressões “lideranças políticas” e “lideranças tradicionais” são utilizadas pelos indígenas para distinguir tais pessoas dos membros da diretoria da igreja que são chamados por alguns de “líderes da igreja”, mas que não são legitimados enquanto representantes dos Ikólóéhj nos diversos fóruns de atuação política do movimento indígena.

43 Sobre a estratégia das missões fundamentalistas de não envolvimento com as lutas políticas dos povos indígenas, ver o trabalho de Ribeiro (2015) sobre tais missões e o povo Zo’e.

igreja, não falar “das coisas da terra”, “não misturar as coisas” como disse o missionário, foram instruções seguidas à risca nesta festa, como já sublinhado.

Ao que parece, esta postura surgiu em decorrência de um fato que me foi relatado e que aconteceu no Natal de 2012. Uma liderança ikólóéhj chamou a atenção dos missionários durante a abertura daquela festa exatamente sobre sua ausência nos momentos em que o apoio das instituições que atuam entre os indígenas fazem-se necessárias. Isso gerou um desconforto que foi se arrastando por meses, até desembocar na reunião, referida acima, no Ministério Público Federal (MPF), em Ji-Paraná, em novembro de 2013 em que se sentaram, de um lado, os representantes da MNTB e, de outro, as lideranças ikólóéhj e arara.

Diferentemente do que ocorre entre os Koripako do Alto Içana em que igreja e comunidade são uma coisa só e as lideranças de uma e de outra são as mesmas pessoas, uma “comunigreja” como denominou Xavier (2013), há entre os Ikólóéhj uma disjunção entre assuntos que competem à esfera da igreja e aqueles que competem à esfera da “comunidade” (educação, saúde, atividades produtivas, defesa territorial, política indigenista no geral). As falas acima reforçam esta distinção. De fato não existe um englobamento da “comunidade” pela igreja, por outro lado, como estudaremos ao fim desta tese, a igreja, que antigamente não se imiscuía das reivindicações políticas ikólóéhj, passou a ser um polo de tais reivindicações. Para algumas pessoas, no entanto, não é possível conciliar as duas posições, como me