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No início da evangelização, o aprendizado do português pelos Ikólóéhj era um destes interesses. Aos missionários importava, por outro lado, dominar a língua Gavião para a posterior descrição e tradução da bíblia. A tradução da bíblia para a língua nativa, evidentemente, é o “ponto zero” de qualquer empresa missionária levada a cabo pelas agências protestantes entre povos indígenas, pois “só quando for possível expressar-se na língua nativa, será possível iniciar a evangelização e a tradução” (ALMEIDA, 2004, p.42).

Nos primeiros tempos, sem compreender objetivamente o significado da presença dos missionários – embora estes, desde o primeiro encontro, tenham atribuído sua estada ao ensino sobre Deus – parece ter havido um pequeno desentendimento em função desta disjunção de interesses, como explicou um idoso: “o pessoal queria aprender português, aí o missionário falou, ‘primeiro vocês me ensinam a língua de vocês, depois eu ensino português’”. Foi o que aconteceu. Os Ikólóéhj, que até aquele momento, impactados pelo contato interétnico, se esforçavam para aprender o português e se comunicar nos códigos dos brancos, consideraram de grande valor aquelas pessoas que se dedicaram a aprender sua língua para transformá-la em “palavra escrita” – reputada pelos índios como sinônimo de verdade – e ainda os ensinaram a lê-la. Como afirma Vilaça (2016, p.54):

Here we can understand the central importance for the missionaries of teaching the natives to read and write, which not only was intended to solve the problem of the correct transmission of

the ‘true’ facts but also was related to a basic practical contingency: making the Bible available in the native idiom only makes sense if there are readers.

Nos cultos matutinos que antecederam a festa dos cinquenta anos, como de praxe, as moças e os rapazes, sob a orientação de adultos, se dirigiam aos tapiris próximos para realizarem seus estudos separados e as crianças se reuniam com seus professores na igreja menor. Também como em todos os outros cultos que presenciei, a maioria dos fieis simplesmente escutavam atentamente as pregações e apenas duas ou três pessoas possuíam em mãos a cartilha Pamatoe, elaborada na língua Gavião a partir do material da New Tribes Mission denominado “Firm Foundations”49. De fato, eram poucos os que acompanhavam as

leituras no Pamatoe, nas porções bíblicas traduzidas (Lucas e os Atos dos Apóstolos) ou mesmo na Bíblia em português, não apenas durante as festas, mas igualmente nos cultos ordinários. A maioria se satisfazia em apenas ouvir, especialmente se fosse uma história bem interpretada pelo orador.

A presença da palavra escrita desde o início do trabalho missionário foi um elemento crucial para a evangelização. Várias pesquisas tratam sobre o poder que a palavra escrita exerce sobre os ameríndios. A associação entre palavra escrita e verdade é sublinhada por Capiberibe (2007) entre os Palikur; Queiroz (1991) e Dias Junior (2006) entre os Waiwai; Vilaça (2016) entre os Wari’; e opera entre os Ikólóéhj. Em várias ocasiões ouvi conclusões do tipo “se está escrito é porque deve ser verdade”.

As histórias do Antigo Testamento parecem ser as preferidas dos fieis. Segundo um dos missionários, é mais fácil repassar os textos históricos do que aqueles mais conceituais, de difícil compreensão para os indígenas. Penso que outro equívoco dos missionários se mostra aqui, o de que os indígenas seriam incapazes de pensamentos complexos, noção que, pelo menos desde Lévi-Strauss (2006 [1962]) está superada, mas que parece ainda sustentar a ação missionária protestante.

Cinquenta anos após o início deste processo de tradução assisti, na noite de abertura da festa, a mais um “experimento”. Pela primeira vez os Ikólóéhj traduziram para a linguagem cristã, a música de um de seus instrumentos musicais mais emblemáticos, de seu uso exclusivo50, as flautas tortoráv. Como informam Meyer & Moore (2013, p.114),

[e]ntre os Gavião de Rondônia, existem três tipos de instrumentos musicais, sempre tocados separadamente dos seus cantos associados. Os cantos são ensinados para facilitar a aprendizagem

49 Publicado por Trevor McIlwain em 1991 e desde então reeditado, constitui o material base para os trabalhos missionários da NTM e MNTB.

50 Conforme informações dos meus interlocutores. As flautas Gojándóhléhj, das quais falaremos no capítulo três, foram incorporadas a partir do contato como os Zoró.

da música instrumental, mas os tocadores raramente os usam em outras ocasiões. Ouvindo as melodias tocadas, observadores ingênuos não desconfiam da relação que elas têm com as letras associadas, nem do fato de aspectos fonológicos das letras, como são faladas, normalmente serem refletidos nas melodias. Na verdade, essas melodias instrumentais são, por grande parte, baseadas na estrutura da linguagem, e a percepção dos Gavião é a de que os instrumentos estão falando ou, mais exatamente, que estão expressando a forma cantada da fala. Daí vem a ideia de instrumentos ‘cantantes’.

Elas foram tocadas no ambiente da igreja e acompanhadas por um grupo de homens vestidos de pinturas corporais, colares, palha e cocares. Mas desta vez o som das flautas não exaltava as histórias dos Ikólóéhj ou da natureza como descrevem Meyer & Moore (2013, p.120, 121): “[...] a melodia Totoráp, a mais popular, faz referência ao evento histórico da colonização da terra Gavião. [...] Os Totoráp podem também falar poeticamente para restituir um ambiente natural”; os tons das notas musicais remetiam a Jesus Cristo.

O grupo ingressou ao templo com os três flautistas executando a canção, os demais acompanhando, com os gritos habituais e os chocalhos nos tornozelos marcando o ritmo. Foram recebidos com tímidos aplausos e curiosidade pela plateia. Por quase cinco minutos, enquanto dançavam, as flautas entoavam repetidamente: “Nós estamos gratos porque nosso Salvador nos salvou”. A ideia, com esta apresentação, era mostrar para os presentes – para os brancos em especial – que não há incompatibilidade entre o cristianismo e a “cultura” dos

ikólóéhj, sugiro, no entanto, que são os Ikólóéhj atualizando sua cultura através da religião dos

brancos assim como o fizeram em outros momentos ao absorver elementos cosmológicos de outros grupos étnicos.

Na sequência da execução desta dança, os demais missionários presentes, que atuam em outras regiões, foram chamados à frente. O dirigente do culto convidou inicialmente aqueles que pertencem ao que é classificado pelas agências missionárias brasileiras como “primeira onda missionária”, ou seja, os missionários estrangeiros, em seguida aqueles que fazem parte da “segunda onda missionária”, os brasileiros, e por fim, fez referência à “terceira onda missionária”, embora sem chamá-los à frente porque julgou que todos indígenas presentes são potenciais missionários e, portanto, estão todos incluídos nesta “terceira onda”. Depois dos discursos dos representantes das duas primeiras “ondas missionárias”, que reiteraram inúmeras vezes o tema do evangelismo, os primeiros convertidos foram chamados à frente. Dentre eles estava Xabéhr que fez uso da palavra e repetiu para o público o diálogo que entabulou com os missionários durante o primeiro encontro: “Quando vi aquele homem pela primeira vez, achei que fosse marreteiro, mas aí ele me disse: ‘não vim comprar nada não, nem seringa, nem ouro, vim falar de Deus pra vocês’, ‘ah tá’, respondi pra ele”.

A natureza da aproximação dos missionários, muito distinta da aproximação de outros brancos, seringueiros, marreteiros, gateiros e garimpeiros, é sempre lembrada pelos Ikólóéhj e, salvo as devidas proporções, encontra certa similitude com a aproximação da missionária Sophie Muller no alto rio Negro em uma época de exploração dos Baniwa pelos “patrões da borracha”, comerciantes e funcionários do SPI. Wright (1999, p. 179) observa que “[...] as estratégias que ela ofereceu para confrontar as corrupções e a violência do mundo dos brancos com certeza eram uma razão importante para seu sucesso nessa área”.

Ao depoimento dos primeiros convertidos seguiu-se uma projeção de fotografias dos tempos iniciais da missão na aldeia Igarapé Lourdes. À medida que as pessoas reconheciam umas às outras, se ouvia um burburinho na plateia. Por fim, assistiu-se a um vídeo gravado pelo pastor Orestes a partir da Alemanha, onde reside atualmente. Na língua gavião reforçou o tema da Bíblia, a palavra de Deus, como sendo a verdade:

O inimigo quer estragar que a gente aprenda a palavra de Deus, o diabo, muitas vezes ele quer atrapalhar a nossa vida de aprender a palavra de Deus, ele odeia Deus, ele odeia a palavra de Deus. O diabo não quer que vocês conheçam a Deus, não quer que vocês conheçam a verdade. O diabo quer destruir toda a obra de Deus. Assim como a gente come, se alimenta todo dia, devemos nos alimentar da palavra de Deus pra nos fortalecer. A palavra de Deus é comida boa para nós. Se a gente não se alimenta da palavra de Deus a gente pode ficar bem magrinho e fraco. Esse é um verdadeiro ensino para nós.

A ênfase no diabo é representativa da postura fundamentalista, evidentemente não apenas no trabalho com os indígenas, pois entre as igrejas não indígenas a mesma ênfase é observada. A questão é compreender o quanto isso repercutiu e repercute entre os Ikólóéhj que, como assinalamos, não concebem seres essencialmente bons ou maus e nem lugares tais como o inferno. Os entes da cosmologia, mesmo sendo reputados como demônios pelos missionários, não operam como juízes condenando as almas dos humanos a este lugar de “danação eterna”. Além disso, a vida póstuma não se reduz a uma alma como veremos nos capítulos que seguem.

Emblemática foi a associação feita pelo missionário entre os ensinamentos bíblicos e a comida. Seu argumento está baseado no que a própria bíblia fala em inúmeras passagens, do alimento como metáfora da palavra de Deus. No entanto, para os Ikólóéhj, não se trata de uma metáfora, suas relações com as gentes dos outros planos nas festas tradicionais eram inequivocamente mediadas por comida e o mesmo se aplica a Deus. Vilaça (2016, p.110,111) pontua que entre os Wari’, a comida e o ato de comer são mediadores fundamentais de relações e que, em se tratando da palavra de Deus, lê-la equivale a comê-la. Sugiro que ao se alimentar da palavra de Deus, os Ikólóéhj estão aparentando o Gorá/Paadjaj/Deus que ficava

distante, praticamente inacessível, antes da chegada dos missionários. Me dedicarei a este ponto no capítulo três.

Do lugar onde estava sentada, no fundo da igreja, pude perceber os sorrisos de todos ao verem e ouvirem o pastor Orestes. A reação mais vibrante, no entanto, ocorreu quando sua esposa, dona Annette apareceu no vídeo. Embora tenha ficado calada durante todo o tempo, a visualização de sua imagem arrancou aplausos dos espectadores. Este casal, que viveu por mais de quarenta anos junto aos Ikólóéhj é lembrado por todos com muita saudade. Como já havia observado em momentos anteriores, o melhor, o desejável é sempre o que não está aqui, o que já se foi, ou o que é do outro, ou o que virá, como no caso das festas, que constituem uma antecipação da dança ininterrupta do mundo póstumo. Por volta das 23 horas, passado este momento de “abertura” acompanhado com atenção e curiosidade por todos, índios e brancos, os músicos começaram a tocar e os dançarinos ocuparam, animadamente, não apenas o centro da igreja, mas os arredores. Desta vez a dança se estendeu para o pátio ao lado e circundou a igreja. Sob um ritmo mais eletrizante do que eu já havia presenciado, os crentes suavam e riam muito.

No dia de encerramento da festa, no pátio iluminado ao lado da igreja, cada etnia presente foi chamada a dançar separadamente. Uma espécie de disputa se estabeleceu para ver quem estava presente majoritariamente. Zoró, Arara e Ikólóéhj se revezaram na coreografia. Uma pessoa que não costuma dançar justificou para mim: “eu fui porque fiquei com medo que ficassem poucos Gavião, aí ia ficar chato”. Curiosamente inúmeros homens zoró, etnia que se fazia presente em maior número na dança, carregavam a Bíblia (a palavra de Deus) embaixo do braço enquanto dançavam. Seria a Bíblia uma forma de reforçar, para si mesmo e para os demais, que está se dançando “para Deus e Jesus” como insistem os pregadores? Ou apenas uma mimetização do gestual dos crentes brancos?

Diante de tantas questões a serem discutidas à frente, algumas considerações constituem pistas importantes para compreender os sentidos das festas da igreja para os Ikólóéhj. Em alguns sentidos estas festas constituem continuidades em relação às festas

tradicionais. O êxito da festa está associado à presença de muitos visitantes. A alegria só é plena

se houver a possibilidade de se relacionar com afins. Tudo na festa se encaminha para tornar afins potenciais em afins reais. O período da festa é o “tempo dos Gojánéhj”, época de realização da festa do milho verde, dedicada a Goján. Alguns elementos nos dizem que se trata, para os Ikólóéhj, da mesma festa: música/dança, alegria, temporalidade e afinização. Em outros sentidos, sugiro que eles entendem esta festa como uma ruptura com as festas

tradicionais. O principal diacrítico, como já apontamos, é a ausência do ì sòhn e a mudança de

lugar, se antes ocorria no terreiro da aldeia, agora acontece no ambiente da igreja. Outra distinção é o formato com que se dá a relação com os seres cosmológicos. Se nas festas tradicionais a presença das gentes dos outros planos em comunicação direta com os Ikólóéhj era o evento central, nas festas da igreja a comunicação com Deus e Jesus cristo ocorre nos momentos de oração enquanto que o evento central passou a ser a dança em si. Este tornou- se o momento mais aguardado por todos.

Composta de continuidades e rupturas com as festas tradicionais, sugiro que as festas da

igreja constituem uma forma atualizada daquelas, em constante transformação, um

“laboratório” como indicaram Sáez e Arisi (2013) onde os Ikólóéhj encontraram uma forma de ampliar suas relações sociais, com pessoas e espíritos, se aproximando do “ser branco” sem deixar de “ser índio”. Neste processo de experimentação, novos elementos (dos brancos e dos índios) vão sendo incorporados, que poderão permanecer ou não. Neste sentido, hoje a igreja é um dos principais instrumentos para que meus interlocutores exerçam sua criatividade e encontrem formas de estar no mundo.

Desde os “tempos antigos” os Ikólóéhj, ao se deslocar pelas terras da Amazônia Meridional, na região dos os rios Aripuanã, Roosevelt, Branco e Machado, contataram outros grupos com os quais estabeleceram relações e absorveram elementos de toda ordem. Com os Zoró, estes contatos oscilavam entre fases amistosas – com intercasamentos – e períodos de guerra. Com os Suruí e os Cinta Larga, a guerra foi o tom dos encontros que, ao que parece, foram esporádicos. Com os Arara o contato foi mais recente, quando os Ikólóéhj se aproximaram da Serra da Providência. Ao deparar e estabelecer relações com maior ou menor intensidade com estes povos, os Ikólóéhj obtiveram alguns dos conhecimentos que compõem sua cosmologia. Neste processo, os brancos com seus instrumentos e seu modo de se relacionar com o universo, foram os últimos a compor seu mundo.

Acompanhemos a seguir o que dizem os Ikólóéhj – e também as pesquisas anteriores e a documentação arquivística – sobre seus encontros com os outros e seus repertórios sociocosmológicos e que desembocaram no modo como se relacionam hoje com os estes

Capítulo 02