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Após a abertura oficial em 23 de dezembro, mais novidades me aguardavam na véspera de Natal. O cenário era o mesmo, mas desta vez os Zoró se inseriram no evento de uma forma especial. Com adornos completos de palha de babaçu e penas, cocares de festa na cabeça, chocalhos nos tornozelos, colares em abundância e pinturas corporais, entraram pelo corredor central e “puxaram” a dança que desta vez estendeu-se por mais de doze horas, até as dez horas da manhã seguinte, com as inevitáveis (mas curtas) pausas para breves pregações ou para saciar a sede.

O globo de luzes colorindo o ambiente, o som dos teclados e violões, as canções entoadas em várias línguas (gavião, zoró, wari’ e português) compunham o momento de alegria. Nas horas que se seguiram ao início da dança, aceitei ao convite de uma jovem e a acompanhei. A quantidade de gente, o calor humano, o ritmo compassado marcado pelos chocalhos provocavam uma efervescência entre os dançarinos, fazendo com que o tempo

transcorresse desapercebidamente. Alguns dançavam de olhos fechados. Talvez buscando uma conexão com Gorá? Não saberia dizer. Os mais velhos iam à frente do círculo, os mais jovens seguiam logo atrás e, por fim, as crianças dançavam rindo, cochichando entre si. Como já disse, à exceção dos casados que dançavam com seus cônjuges, todos os demais dançavam de braços dados apenas com pessoas do mesmo sexo.

Em determinado momento da noite, o cacique Sebirop, que assistia a dança ao meu lado, comentou comigo: “essa dança é dança de verdade”. Quedei-me pensando sobre este comentário. O que seria uma dança “de verdade” para meu amigo? Seu comentário indicou que, pelo menos em algum sentido, as danças da igreja constituem uma continuidade em relação às danças tradicionais, embora houvesse rupturas – sendo o consumo ì sòhn a mais evidente. Apesar de seu comentário, ele próprio apenas assistiu a dança, pois prefere participar das canções dos vaváhéj que ainda executa nas apresentações para os brancos.

Depois de encerrada esta primeira parte das danças, os pregadores subiram ao palco novamente, como na noite anterior, para explicar a palavra de Deus. Durante toda a festa, o discurso de “unidade dos povos” foi o foco das pregações, tanto de indígenas quanto dos missionários. Vários pregadores chamaram a atenção para a superação das inimizades entre os povos, proporcionada pela palavra de Deus e pela esperança da “volta de Jesus”. A afirmação de que “vamos ser um único povo, uma única língua, quando Jesus voltar” foi pronunciada por vários oradores. Mas para que isso seja possível, é preciso negar elementos considerados nocivos do que eles chamaram de “cultura antiga”. O xamanismo e o ì sòhn foram especialmente apontados. “Quem aqui quer voltar à cultura antiga, cheia de bebedeira e brigas?” perguntou um pregador indígena.

Ao mesmo tempo em que esta ruptura com a “cultura antiga” foi anunciada como passo necessário para a conversão, os pregadores indígenas insistiram que esta conversão e a igreja “não impedem a cultura”. Seria um contrassenso? Penso que não, pois os pregadores reproduziram o discurso missionário de que há “elementos bons e maus” na “cultura antiga”. Para eles os “bons elementos” devem ser “preservados”. Basicamente a língua, a dança e a cultura material são evocadas pelos oradores indígenas e missionários como argumento contra aqueles que acusam a missão de descaracterizar a cultura indígena. Elementos como o xamanismo, as festas tradicionais com consumo do ì sòhn e a relação com os entes da cosmologia, por sua vez, são considerados maléficos, associados à ação de Satanás e, portanto, devem ser eliminados do universo Ikólóéhj. Durante tais discursos a plateia ouvia atentamente e em silêncio, como pede a etiqueta ikólóéhj. Não obstante, após a festa, algumas

visitas que realizei nas casas mostraram que esta doutrina maniqueísta ensinada pelos missionários e replicada pelos pregadores indígenas – “lado bom e lado mau” – não reverbera da mesma forma entre os ouvintes. Seu entendimento a respeito é muito mais complexo.

Entre aqueles que não frequentam a igreja há uma unânime defesa das festas tradicionais, dos vaváhéj e do xamanismo. Entre os frequentadores há dois posicionamentos. Há as pessoas mais envolvidas, que fazem parte da liderança da igreja, que auxiliam os missionários, acompanham mais de perto suas atividades e ensinam a palavra de Deus durante os estudos e os cultos. Estas são as que geralmente desqualificam a “cultura dos antigos” e lançam mão de um discurso de ruptura – mesmo porque se não o fizessem, estariam contrariando um dos estatutos primordiais do protestantismo fundamentalista. Tal estatuto foi observado por Caco Xavier ao pesquisar a conversão dos Koripako do Alto Içana, evangelizados por Sophie Muller nos primórdios da atuação da NTM no Brasil, em fins dos anos 1940.

Por analogia, o cristão é também chamado a uma drástica ruptura, devendo renunciar e a deixar para trás ele mesmo (sua ‘velha natureza’, a ‘carne’), este mundo (o ‘cosmos’) e esta vida, em direção a uma ‘nova criatura’, a um novo mundo (seja o paraíso futuro, seja o corpo da Igreja de Cristo), e a uma nova vida junto a Deus (Romanos 6). (XAVIER, 2013, p.209)

A despeito de esta ser, de fato, a meta da evangelização protestante, não se percebe esta “drástica ruptura” entre os Ikólóéhj. Não que os indígenas sejam incapazes de compreender conceitos abstratos tais como “velha natureza”, “corpo da Igreja de Cristo”, mas para eles o mundo espiritual sempre fez e, ao que parece, continua fazendo parte da natureza e das experiências. Isso fica claro nas falas daqueles que conheceram, conviveram com os xamãs e participaram das festas e dos rituais de pajelança que não concordam com estes discursos, embora não expressem isso publicamente – o que é compreensível e até esperado, pois como poderiam se posicionar contrariamente aos parentes? Em público não o fazem. No âmbito privado, no entanto, vários são os posicionamentos divergentes. Em uma destas visitas, ao perguntar ao meu interlocutor sobre os discursos proferidos durante a festa, que desqualificaram os xamãs, considerando-os “servos de Satanás” e os rituais como coisas do Diabo, como afirmou um jovem pregador, ele lembrou que “estes jovens não sabem o que estão dizendo, eles não conheceram Xípo Ségóhv e não viram como ele trabalhava”.

Portanto, mesmo entre os crentes não há unanimidade sobre o quanto devem se afastar da “cultura dos antigos” para seguir esta nouvelle religion, como denominou Sophie Cloutier (1988) ao analisar a conversão dos Zoró nos anos 1980, que ocorreu sob influência direta dos

crentes Ikólóéhj. Ocorre para a maioria dos crentes o mesmo que Vilaça (2008, p.177) observou

entre os Wari’:

Sendo assim, a adoção do cristianismo como algo novo e externo não contradiz a afirmação de continuidade entre essa religião e a cultura nativa, se tomarmos como ponto de partida a premissa básica do interesse deles e de outros povos ameríndios na captura da perspectiva do outro, seja ele animal, inimigo ou branco.

Ao enfatizar a ruptura com aspectos da cultura que, na perspectiva dos missionários, não são dignos, a pregação missionária tenta, desde o princípio, inaugurar aquilo que Wright (1999) chama de “um novo social”. Este “novo social” se objetivaria em uma vida de moral muito rígida, sem pecados ou conflitos e com uma forte ênfase escatológica, como observou Cloutier (1988) junto aos Zoró30 e como ouvi abundantemente nas pregações dos Ikólóéhj:

“quando Jesus voltar!”.

Apesar das insistentes pregações ao contrário e dos discursos de negação, os entes cosmológicos, os Outros, os que foram vistos, ouvidos e/ou sentidos por eles próprios, pelos xamãs e pelos seus ancestrais, continuam sendo respeitados em alguma medida. Esta aparente contradição não parece preocupar meus interlocutores, que não veem problemas em manter sua perspectiva ao mesmo tempo que “capturam” a perspectiva dos brancos – neste caso, o cristianismo protestante fundamentalista.