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“Só por amor de Jesus Cristo que a gente está mais uma vez reunido”

Retomando a questão do “discurso da unidade”, notamos que tal expressão foi veementemente enfatizada nesta festa e na de comemoração dos cinquenta anos de evangelização dos Ikólóéhj, em fevereiro de 2015. Os dois eventos contaram com a presença de visitantes de outras etnias, entre as quais tal discurso fazia sentido. O argumento é que da mesma forma que “quando Jesus voltar” todos serão um único povo, hoje só é possível se reunir e fazer festa juntos porque a palavra de Deus estabeleceu a paz entre povos anteriormente inimigos. A renúncia à “cultura dos antigos” teria significado o fim das guerras de vingança e dos conflitos entre os grupos. Claramente a missão contabilizou para si uma situação influenciada por múltiplos fatores, entre os quais destacam-se a presença do Estado,

30 O conhecimento da cultura e da língua Gavião contribuiu para o missionário converter os Pangueyen (Zoró), pertencentes, igualmente, à família linguística Tupi Mondé. Foi a conversão mais fácil operada pela missão, a ponto do missionário duvidar de sua profundidade (CLOUTIER, 1988, p.16).

a demarcação das terras, a organização do movimento indígena e a consciência de que, ao fim e ao cabo, o branco era o inimigo comum.

Foi este o tom da pregação do pastor indígena suruí nesta festa de Natal. Os Suruí chegaram à aldeia no meio da manhã em um ônibus fretado. Cerca de trinta pessoas vieram prestigiar o evento e passaram o dia no local, retornando ao fim da tarde para a T.I. Sete de Setembro. Esta rápida visita foi uma retribuição à presença dos Ikólóéhj na festa de aniversário da igreja Apoena Meirelles31, dois meses antes. À tarde, antes de deixarem o local,

o pastor pregou em português: “só por amor de Jesus Cristo que a gente está mais uma vez reunido”, reportando-se aos conflitos de outrora. Missionários e indígenas repetiram exaustivamente como o perdão mútuo e a união de grupos antes inimigos tornou-se possível graças à “conversão” ao evangelho, superando o desejo de vingança. Ao fazê-lo, reforçam a centralidade desse argumento entre as missões para defender o seu trabalho. Tal ideia parece ter convencido os Koripako, que “abalad[os] pelos ciclos de vingança e retribuição, [são] agora potencialmente impactad[os] pela idéia de ‘comunhão’ cristã” (XAVIER, 2013, p. 370), a ser objetivada nas Conferências Missionárias do Alto Içana.

Associada à ideia de unidade, de perdão mútuo, de superação de inimizades e do desejo de vingança está a possibilidade de ampliar a quantidade de afins disponíveis, transformando afins potenciais em afins reais. Antes das festas da igreja, a socialidade ikólóéhj abrangia fundamentalmente os consanguíneos e afins mais próximos, tendo as festas tradicionais como momento de encontro entre esses grupos. Com a entrada da igreja em cena, essa socialidade se amplia notavelmente e as festas passam a contar com a visita de outras etnias (incluindo até inimigos de outrora). Na festa narrada aqui, por exemplo, os Ikólóéhj receberam pela primeira vez a visita dos Wari’, da fronteira com a Bolívia. A forma especial como cada grupo foi recebido no culto indica que a intenção dos anfitriões não é apenas receber irmãos, mas afinizar grupos inimigos; e para isso, o “discurso da unidade” parece ser convincente. Nesse contexto, alguns casamentos entre Ikólóéhj e Suruí, outrora impensáveis, têm se tornado frequentes. As festas da igreja, enquanto “laboratório”, têm proporcionado a desejada ampliação das redes de socialidade ikólóéhj – não apenas com outros índios, mas com outros brancos além dos que eles já estão habituados.

31 Os missionários brancos que atuam na aldeia Apoena Meirelles dos Suruí não pertencem à MNTB. Não consegui identificar ao certo sua filiação, mas tendo em vista a presença da igreja Assembleia de Deus da cidade de Cacoal em uma festa que presenciamos nesta aldeia, intuo que pertençam a esta denominação religiosa.

Enquanto acompanhava a festa, soube que há um rodízio entre as igrejas participantes da MEIRON (Missão Evangélica Indígena de Rondônia e Noroeste do Mato Grosso) para a realização dessa celebração a cada ano. A MEIRON foi criada pelos indígenas em 2009 e, segundo informações do seu blog32, “agrega os povos do corredor Tupi Mondé: Suruí, Zoró,

Gavião e Cinta Larga”. O objetivo desta organização é “alcançar outras tribos que não têm evangelho ainda, promover curso de capacitação de lideranças das igrejas, promover curso linguístico e promover estudo bíblico”. Embora os Arara não estejam citados no blog, eles também fazem parte do rodízio. Em 2013 esta tarefa coube à igreja dos Ikólóéhj; no ano seguinte, à dos Zoró e em 2015, à dos Arara. Além das festas em comemoração ao Natal, outras ocupam o calendário anual: é frequente a realização de festas no decorrer de um ano. Manter a assiduidade garante a instauração da socialidade ampliada e a transformação de afins potenciais em afins reais: o que se dá através das mesmas estratégias utilizadas pelos crentes Wari’ para a formação de uma germanidade generalizada, o “partilhar cuidados, afetos, memória e, sobretudo, comida” (VILAÇA, 2007, p.14).

Os Ikólóéhj não compreendem os vocativos zàno éhj (irmãos) e óhbaréhj (irmãs) utilizados para todos os integrantes do contexto da igreja e o partilhar de cuidados e alimentos como possível superação, ou mesmo eliminação, das relações de afinidade. Como já foi apontado acima, é precisamente o contrário que ocorre. Fazer afins reais é um dos propósitos das grandes festas da igreja. Chamar irmãos e irmãs no nível do discurso tem o mesmo efeito que desqualificar, também no nível do discurso, os vaváhéj e os entes dos planos cósmicos; ou seja, se aproximar do modo de “ser branco”, na medida em que este tratamento (irmão e irmãs) é o padrão discursivo das igrejas protestantes de toda e qualquer filiação teológica. Fora do contexto das pregações – elemento “de branco” dos cultos/festas – é o “ser índio” que opera. Neste sentido, rapazes e moças a quem se chamou irmão e irmã não se constituem como tais. Partindo-se do ego masculino, o irmão poderá se constituir em um cunhado ou um sogro (o’ohv) enquanto a irmã em cunhada, sogra ou propriamente a mulher casável (obáhrapihr). É possível que nos primórdios da evangelização tenha ocorrido o mesmo que se observou entre os Wari’, que aderiram ao evangelho almejando um mundo sem afins (VILAÇA, 1999). Estes, ao perceber a impossibilidade de tal socialidade, abandonaram o evangelho retornando nos anos subsequentes diante da possibilidade de estabilizar seus corpos na posição de humanos ao tornarem-se cristãos (idem., 2016). Os Ikólóéhj, por sua vez, somente aderiram majoritariamente a doutrina quando a dança ingressou na igreja – e,

com ela, a possibilidade de fazer afins em uma dimensão anteriormente impensável, entre outras coisas.

Em uma primeira visada me pareceu que a terminologia zàno éhj (irmãos) e óhbaréhj (irmãs) poderia indicar aquilo que Vilaça (1999, p.147) denominou “fraternidade generalizada” no caso Wari’. Um olhar um pouco mais atento, no entanto, mostrou que eu teria incorrido no mesmo equívoco registrado por Viveiro de Castro (2004) em relação ao uso do termo Txai como título de um álbum de Milton Nascimento. O cantor e compositor que visitou os Cashinahua (e era por eles chamado de txai) supunha que este termo referia-se a “irmão” no sentido de uma amizade qualificável como irmandade – quando de fato trata-se de um termo utilizado pelos índios para se referir ao “outro”, ao “afim” ou, mais precisamente, ao “cunhado”. Enquanto o artista estava vendo os Cashinahua como irmãos, estes o viam como um afim em potencial. Em ambos os casos o tratamento é respeitoso e afável. Conclui Viveiros de Castro que, neste caso, “[e]nquanto os propósitos podem ser semelhantes, as premissas decididamente não são.” (idem., p.17).