• Nenhum resultado encontrado

Pouco se sabe na literatura a respeito dos grupos indígenas que habitavam a Amazônia Meridional, entre os rios Aripuanã (MT) e Madeira (RO) em épocas pregressas. Por conta disso, deixo claro que trago aqui muito mais questões para pensar a ocupação desta região do que dados comprovados. Habitando, desde tempos imemoriais, parte da região que é chamada de “Área Etnográfica Aripuanã” por Melatti55 (2011[1992]) ou, em uma perspectiva

mais ampliada, de “Grande Rondônia” por Vander Velden56 (2010), ou ainda, em um sentido

55 Esta pequena área sobre a fronteira de Mato Grosso com Rondônia, entre os rios Aripuanã e Ji-Paraná (também chamado Machado), afluentes do Madeira, foi traçada preliminarmente com base em duas características: quase todos os grupos indígenas aí presentes falam línguas da família mondé, integrante do tronco tupi; e todos fizeram contato com os membros da sociedade brasileira recentemente, na segunda metade do século XX, de modo mais intenso a partir da década de 1970 (MELATTI, 2011, Cap. 24, p.01) 56 Em termos geográficos, estamos nos referindo à região que compreende, além de Rondônia, também o noroeste do Mato Grosso, o sudeste do Amazonas e ainda o nordeste do Oriente boliviano – ou seja,

mais estrito, “Corredor Etnoambiental Tupi Mondé” pelas ONGs57 que atuam no local

(GÃRAH ITXA, 2012); os Ikólóéhj se encontram entre os povos cujas referências na literatura especializada são escassas.

A primeira menção a seu respeito, que já apontei alhures, é o artigo de Harald Schultz intitulado “Vocábulos Urukú e Digüt” publicado em 1955 pelo Journal de la societé des

americanistes. Este artigo resultou de cerca de dois meses de convivência do etnólogo com os

indígenas que habitavam – alguns de forma mais ou menos perene, outros temporariamente, como era o caso dos Ikólóéhj – os seringais às margens do rio Machado nos anos 1950. Schultz foi durante vários anos chefe da Seção de Estudos do SPI (OTERO, 2015) e realizou, possivelmente entre 1953 e 1954, uma expedição ao rio Machado para identificar grupos indígenas. Tentei encontrar os relatórios de tal expedição nos arquivos do Museu do Índio, mas, ao que parece, os mesmos se perderam no incêndio das dependências do SPI em 1967.

Segundo informações de Otero (2015), pesquisadora entre os Arara – que habitam juntamente com os Ikólóéhj a T.I. Igarapé Lourdes – os indígenas que Schultz travou contato e identificou como “Urukú” eram, de fato, um grupo Arara, a julgar pelas características descritas e a lista de vocábulos levantada. Segundo meus interlocutores, no período em que se deu este encontro, os Ikólóéhj costumavam acampar nas proximidades dos Arara para, junto com estes, trabalhar nos seringais do rio Machado em troca dos utensílios dos brancos, em especial os cobiçados facões.

Quanto ao etnônimo “Digüt”, registrado por Schultz, dizem meus amigos que houve um mal-entendido causado por problemas de tradução. A história deste mal-entendido é amplamente conhecida nas aldeias e foi registrada por Mindlin (2001) na coletânea de mitos produzida em conjunto com narradores Ikólóéhj chamada “Couro dos Espíritos”. Digüt – grafado como Djigúhr na escrita praticada atualmente nas escolas indígenas – era zavidjaj (lit. dono de maloca), do grupo familiar que iniciou as relações de trocas com os caucheiros e seringueiros estabelecidos na margem esquerda do rio Machado. Inicialmente estas relações

grosso modo, a área drenada pela bacia do alto rio Madeira e seus formadores – Mamoré, Guaporé e Beni

– e afluentes. Em outros termos, estamos considerando o território compreendido entre os rios Tapajós (a leste) e Madre de Dios (a oeste), o alto Madeira (ao norte) e o médio-baixo Guaporé (ao sul), zona que poderíamos denominar de “Grande Rondônia” (VENDER VELDEN, 2010, p.116 e 117).

57 “O conceito de corredor etnoambiental representa um dos aportes mais importantes do Projeto Garah Itxa à conservação da floresta amazônica. Esse conceito, assim como os de corredores ecológicos e mosaicos de áreas protegidas, postula que as políticas públicas de proteção da biodiversidade precisam de abordagens amplas em nível regional ou na escala de paisagens. A principal diferença, porém, é que os corredores etnoambientais integram as preocupações e experiências dos povos indígenas nas práticas e políticas de conservação e desenvolvimento sustentável” (GÃRAH ITXA, 2012, p.13).

foram mediadas pelos Arara que já possuíam maior proximidade com aqueles brancos. Detalharei estes fatos na sequência.

Conta a história que Schultz perguntou a Djigúhr, tendo um Arara como intérprete, como se chamava seu povo. O intérprete entendeu que o pesquisador perguntara o nome do chefe indígena e este respondeu: - Djigúhr! E assim, como Digüt, os Ikólóéhj passaram a constar na literatura etnológica. Voltarei ao artigo de Schultz e a este mal-entendido na sequência, mas gostaria de apontar que curiosamente, neste mesmo texto, o autor assinala equivocadamente que a tradução para Digüt é “gaviões” (p.83), ou seja, embora afirmasse que os sertanejos locais chamavam a ambos, Urukú e Digüt, erroneamente de Arara, de alguma forma ele tomou conhecimento que aqueles índios eram “gaviões”, etnônimo pelo qual ficaram conhecidos pelos locais, bem como pelos padres salesianos, missionários protestantes e funcionários do SPI que se aproximaram nos anos seguintes, tais como atestam os documentos produzidos a partir de 1966 pelo SPI e arquivados no Museu do Índio (RJ).

O cacique Sebirop conta que precisou ir pessoalmente à FUNAI, em Brasília, provavelmente no início dos anos 1980 – ele não soube precisar a data – para desfazer este mal-entendido, pois, segundo ele, até aquele momento, seu povo estava registrado pelo nome do seu pai, Djigúhr. Mais conhecido como Sorabáh ou Chiquito, Djigúhr é considerado um dos mais respeitados zavidjaj dos Ikólóéhj e como chefe prestigiado liderou seus parentes na arriscada tarefa de aproximação com os brancos que, se era desejada por um lado, era temida por outro. Lamentavelmente zavidjaj Djigúhr nos deixou em 2014. Contava com idade aproximada de cem anos.

O sentimento entre seus coaldeões e que me foi revelado por alguns é que com ele desapareciam conhecimentos inéditos sobre os Ikólóéhj. Era comum, no período que estive na aldeia, que meus interlocutores, ao titubearem diante de uma pergunta sobre a história dos Ikólóéhj, me orientassem: “Chiquito deve saber, tem que perguntar a ele”. De fato perguntei muitas coisas a ele, certamente não tudo o que desejava, mas pude, com a tradução de seus filhos Sebirop e Xipiabihr, e do seu zèrar (SS) Xijavabáh58, cada um em uma oportunidade,

gravar algumas entrevistas em situações semelhantes às que descrevi no início deste capítulo. Além de suas narrativas e de outros interlocutores, encontrei algumas informações nos dados que Brunelli (1989) coletou entre os Zoró entre 1984 e 1985. Estes dados dão conta que, assim como os Zoró, muito antes de se identificarem como um único povo diante dos brancos, os Ikólóéhj estavam divididos em diversos grupos. Os Zoró chamavam “certos

Gavião”, afins costumazes, de “Pabi” (idem., p.142). Alguns velhos e também os professores indígenas falam da existência, além dos Pàbiéhj (lit. povo dos rostos), dos Báhsèhvéhj (lit. povo das folhas) dos Mav Ságàéhj (lit. povo da base da castanheira), dos Guléhj (cuja tradução é desconhecida) e dos Ikólóéhj (lit. povo gavião). Segundo informações dos meus colaboradores, eram estes últimos que eram conhecidos como Paabíhej (lit. matadores de gente), guerreiros, pelos grupos que formaram o povo Zoró. Tais grupos tinham em comum a língua, embora com algumas variações de pronuncia e, como atestam as narrativas sobre as festas, o mesmo arcabouço mítico e ritual. Mesmo meus amigos ficam intrigados sobre a existência desta divisão. Por razões que não consegui precisar, o etnônimo Ikólóéhj, passou a ser hegemônico mesmo sendo, ao que parece, o grupo minoritário.

Depois de horas de conversas com os velhos, contando com o apoio de alguns professores indígenas59 que se interessam por este tema, poucas informações obtive a respeito

destas divisões. Embora as pessoas mais idosas sejam qualificadas como parte de um ou outro grupo, os jovens são considerados misturados e não fazem questão de se identificar. Sugiro que estas divisões sejam remanescentes de grupos patrilineares que operam ainda hoje entre os Suruí Paiter60 e os Cinta Larga61, mas que perderam sua operacionalidade entre os

Ikólóéhj bem como, suspeito, entre os Zoró (Pangeyen tere)62.

De qualquer forma, a identidade Ikólóéhj se destaca e subsume o pertencimento aos antigos grupos patrilinerares. “Assim como hoje o pessoal casa com Arara, Zoró... naqueles tempos os Báhsèhvéhj, Pàbiéhj, Ikólóéhj e Màhv Sága casavam uns com os outros, misturou tudo”, afirmou alguém. Alguns lembraram ainda que a redução populacional provocada pelas

59 Que também são alunos do Curso Superior em Educação Básica Intercultural da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Foram por intermédio destes professores que ouvi falar pela primeira vez desta divisão do povo Ikólóéhj. Para eles trata-se de clãs. Desconfio que algum pesquisador que passou pela aldeia anos anteriores tenha aventado esta possibilidade junto a estes professores.

60 Gamep, Gamir e Makor são os “grupos patrilineares Suruí remanescentes” como os denomina Mindlin (1985, p.35). Segundo ela “[o] casamento é permitido dentro de cada um dos grupos, havendo porém, linhagens patrilineares exogâmicas” (ibidem).

61 Mân, Kakín e Kabân são as “divisões patrilineares” dos Cinta Larga, “indicando com isso um sistema de designações que se transmitem patrilinearmente, sem contudo definir grupos de descendência corporados (“descendent groups”) ou semelhantes: até onde permitem os dados, não se verificam ações corporativas, seja econômicas ou rituais, que correspondam ao sistema de divisões. Subsiste sim um certo sentimento de identidade, e os membros de uma divisão definem-se vagamente como zâno, irmãos” (DAL POZ, 1991, p.43).

62 “Em tempos más recientes, los Pangeyen-Tere son sobrevivientes de grupos locales exterminados por las epidemias y los blancos. Em pocas palavras, son gente de origen diferente, sin autênticos lazos de unión entre sí, em caminho de diferenciarse em grupos locales mejor identificados, o em espera de hacer parte de grupos locales ya existentes” (BRUNELLI, 1989, p.144 e 145).

doenças dos brancos – que chegaram antes mesmo do contato – e, em menor número, pelas guerras intertribais63, fomentou a união entre estes diferentes grupos através de casamentos.

Identificar as pessoas como pertencentes aos grupos Báhsèhvéhj, Pàbiéhj, Ikólóéhj ou Mav

Ságàéhj se tornou objeto de pesquisa dos professores indígenas da Escola Xenepoabáh da

Aldeia Igarapé Lourdes. Há alguns anos eles fizeram um levantamento e descobriram que o grupo que cedeu o etnônimo Ikólóéhj está reduzido a uma única pessoa que não possui descendentes, trata-se do senhor Pina, conhecido na aldeia como “gavião verdadeiro” (Ikóló

tere). Os grupos predominantes atualmente são Báhsèhvéhj e Pàbiéhj. A identificação se dá pelo

auto reconhecimento, mas lembro que apenas os mais velhos conseguem se identificar porque, como vimos acima, atualmente estão todos misturados. Se houve, em épocas remotas, regras de casamento entre os grupos, estas se tornaram inoperantes. Há, no entanto, ainda hoje, pequenas diferenças na pronúncia de algumas palavras entre descendentes de

Báhsèhvéhj e Pabi em relação à língua gavião.

Tal como já mencionei acima sobre os Ikólóéhj, Brunelli (1989, p.14) compreende que “se podría difícelmente hablar de los Zoró antes del contacto”. Esta noção se estabeleceu contextualmente e contrastivamente. Neste sentido, é possível que meus amigos passaram a se identificar como Ikólóéhj quando já estavam situados na Serra da Providência e principiaram o contato amistoso com os brancos, através dos Arara. Certamente, diante da pergunta de Harald Schultz – sobre a qual povo pertencia Sorabáh e sua gente –, a auto- identificação ikólóéhj não estivesse ainda fortemente estabelecida, nem para o entrevistado, nem para o intérprete, restando a ambos referir-se ao nome pessoal do zavidjaj Djigúhr.

Naqueles tempos, e em certa medida ainda hoje, a maloca (zav), com seus consanguíneos e afins constituía a unidade social básica em que a noção de pertencimento fazia algum sentido. Além disso, momentos pontuais de socialidade ampliada eram produzidos pelos trabalhos coletivos – que demandavam festas - pelas festas promovidas pelos mais prestigiados donos de maloca juntamente com os xamãs e certamente, embora não tenha obtido dados a respeito, pelas guerras com inimigos.

Cacique Sebirop, uma das primeiras lideranças de Rondônia a atuar no movimento indígena, ciente da importância dos seus parentes se apresentarem perante os brancos enquanto uma unidade étnica, não concorda com a existência destes grupos e afirma que tais divisões são muito antigas e não operam mais. Embora seja inquestionável que estes grupos

63 Segundo meus interlocutores, as últimas guerras decorreram dos rearranjos espaciais provocados pelo acercamento dos seringueiros, castanheiros, garimpeiros, exploradores, entre outras categorias, dos territórios ocupados até então, unicamente pelos indígenas.

existiram em algum momento, concordo com meu amigo que atualmente eles, aparentemente, não exercem qualquer influência. Como sublinhei a pouco, os jovens, em sua maioria, desconhecem esta divisão interna e mesmo os que já ouviram falar a este respeito ignoram seu pertencimento a um ou outro grupo. Atualmente, mesmo as pessoas que se reconhecem enquanto Báhsèhvéhj ou Pàbiéhj – não ouvi ninguém afirmar pertencer ao grupo

Mav Ságàéhj, nem Guléhj, embora alguns indivíduos fossem apontados como tal – se

consideram, notadamente, Ikólóéhj. Contudo não foi na forma povo (OTERO, 2015) que os antepassados dos Ikólóéhj chegaram até aos igarapés que desaguam no Rio Branco como atesta o conhecimento que os Zoró possuíam dessa gente. No limite, eram os grupos domésticos liderados por um dono de maloca/guerreiro que se deslocavam.

Uma narrativa de Sorabáh sobre os “guerreiros antigos” dá pistas a este respeito. Ele iniciou a história dizendo: “Assim que meu pai falava pra gente... ele conhecia o tal de Zojabáh... assim que ele fazia, ele tocava música. Ninguém sabe qual é a tribo dele”. Na sequência, cantou as canções de Zojabáh, na língua gavião. Fica evidente que Zojabáh falava a mesma língua do pai de Sorabáh. Saber a “tribo” deste homem não era uma questão, porque evidentemente ninguém se pensava nestes termos. Em seguida o narrador identificou o guerreiro como sendo ikólóéhj, “Dúnábìh era o nome de Zojabáh. Ele era guerreiro, matador de gente, era perigoso. Não era só ele que era guerreiro não, muitos Ikólóéhj eram guerreiros. Dizem que matavam gente e comiam gente”. Esta foi a única vez, durante a narrativa que o nome Ikólóéhj emergiu, enquanto guerreiros que matavam e comiam gente. Sorabáh continuou a história, sem se referir aos Ikólóéhj em qualquer outro momento, relatando uma viagem dos guerreiros antigos que nos dá algumas pistas sobre um possível deslocamento destes grupos pelo território entre o rio Aripuanã e o rio Branco (Figura 09).

Conta Sorabáh que seus antepassados empreenderam uma espécie de odisseia em canoas – fabricavam canoas leves de casca de árvore, habilidade que é dominada por alguns homens ainda hoje – até um “rio grande” com o propósito de encontrar facões e outros utensílios nos acampamentos dos brancos mais ao norte. Não é possível precisar de onde partiram estes ancestrais à época destes acontecimentos, mas um detalhe interessante me leva a crer que eles tenham chegado até o rio Madeira, inclusive há um nome em gavião para este rio, Abolov Pòhvà Xi, rio de sumaúmas enfileiradas. Nosso narrador enfatiza que, neste “rio grande”, enquanto o barco se deslocava era acompanhado por um estranho animal aquático,

ágav tìh, o boto (Inia geoffrensis ou Inia boliviensis), abundante na bacia do rio Madeira. Eis o

Quando a gente anda de barco no ‘rio grande’, ágav tìh anda junto, do lado do barco. Filhote de

ágav tìh é tamanho do tatu, ele anda junto também. Ágav tìh parece com a cabeça do tatu canastra.

Será que o branco vê quando tá andando no rio? Será que o branco usava a pena de ágav tìh?64 [Xipiabihr falou que sim]. Lá que eles andavam procurando terçado, facão, pegava coisas com eles. Eles mexiam as coisas dos brancos. Vaváh pegava as coisas dos brancos. Os índios falaram com outros parentes lá que deixaram facão, panela. Os brancos não gostaram desses índios que mexiam nas coisas deles e aí foram atrás dos índios e quando chegavam perto da aldeia deles os brancos atiraram neles. Andaram, andaram, remando, remando com remo. Nesse tempo não tinha motor, só remo. Escutaram o branco indo atrás, os índios cansaram de remar. Os índios falaram: ‘como vamos fazer?’ Começaram a atirar flecha no branco, aí branco matou os índios com arma de fogo.

Este relato dá abertura para supormos, embora não seja possível afirmar com certeza, que estes guerreiros navegaram pelos rios Branco, Roosevelt e Aripuanã até encontrar o rio Madeira na altura do atual município de Nova Aripuanã. No decorrer desta longa viagem encontraram as colocações65 dos djalaéhj (brancos), pegaram suas coisas e foram perseguidos

na volta. Muitos guerreiros foram mortos. A continuação da história é um pouco confusa, mas ao que parece, apenas alguns conseguiram sobreviver e retornar às suas malocas.

Sebirop contou uma história semelhante, possivelmente uma diferente versão do mesmo acontecimento, que não faz menção ao ágav tìh, mas confirma que os guerreiros navegaram até a colocação dos brancos, pois um homem havia sonhado que encontrariam facões ali. Foram buscá-los e na volta sofreram igualmente perseguição e vários guerreiros foram mortos, restando poucos sobreviventes. É de supor que as incursões até as colocações de seringueiros66 nas margens dos rios em busca dos ambicionados objetos eram frequentes.

Dados coletados por Brunelli (1989) entre os Zoró informam que estes viviam mais ao norte da localização atual situada às margens do Rio Branco. “Alguns Zoró dicen incluso que en

el pasado, hace mucho, muchísimo tiempo, sus ancestros habían fabricado unas ‘malocas’ en la zona en que el río Roosevelt afluye en el Ji-Paraná” (idem., p.128,129). Cabe lembrar aqui que o rio identificado

pelos Zoró como Ji-Paraná (Ii-wop-tchi67) trata-se, de fato, do rio Madeira (Ii-tsere-tchi). Não que seja uma confusão, mas um entendimento diferente da configuração fluvial em relação à compreensão cartográfica dos brancos. Para os indígenas o rio Aripuanã (Ambo-a-tchi) era tributário do rio Roosevelt (Ykabè pewa) e não o contrário como é indicado pela cartografia oficial, assim como o rio Madeira seria tributário do rio Ji-Paraná (rio Machado). Sob esta lógica é o rio Roosevelt que desagua no rio Ji-Paraná, ao invés de ser o Aripuanã a desaguar

64 Esta pergunta, sobre o uso das “penas” do ágav tìh indica que evidentemente estes fatos não foram acompanhados por Sorabáh, que não conheceu pessoalmente tal animal.

65 Termo utilizado na Amazônia para referir-se à moradia de seringueiros e ribeirinhos.

66 Desde as últimas décadas do século XIX os rios da Amazônia foram ocupados por seringueiros provenientes do Nordeste do país.

no Madeira como aparecem nos mapas. Estas viagens dos ancestrais dos Ikólóéhj até o “rio grande” – talvez o rio Madeira – se deram a partir do rio Branco ou quando estavam mais ao norte, nas proximidades do rio Roosevelt ou mesmo do rio Aripuanã? Não sabemos, mas suspeito que os Ikólóéhj, ao tempo das referidas expedições guerreiras situavam-se mais ao norte, tendo em vista a distância de mais de mil quilômetros entre o rio Branco e a foz do rio Aripuanã.

Figura 09 - Região dos deslocamentos dos Ikólóéhj e dos Zoró.

O que se sabe, a partir de dados linguísticos, é que em tempos remotos as línguas gavião e zoró formavam uma única língua e foram as últimas a se diferenciar dentro da família mondé (MOORE, 2005). Moore sugere que tal diferenciação tenha ocorrido entre 200 e 500 anos atrás (comunicação pessoal). Diante disso pergunto se, quando da localização destes mondé mais ao norte, eles constituíam um único grupo que foi se distanciando a medida do seu deslocamento para o sul, ou já estavam separados em grupos distintos? Por hora não há como saber ao certo. O que se sabe, a partir de dados etno-históricos é que expedições guerreiras dos ancestrais dos Ikólóéhj percorreram os rios da região até um “rio grande” em que botos acompanham as canoas e que os ancestrais dos Zoró – talvez os mesmos dos Ikólóéhj – habitavam as margens do rio Aripuanã até na confluência do rio