• Nenhum resultado encontrado

C APÍTULO II E NQUADRAMENTO TEÓRICO

2.2 A Proposta da Teoria da Flexibilidade Cognitiva para a construção de conhecimento

2.2.4 O desenvolvimento da flexibilidade cognitiva

2.2.4.3 Estratégias para a aquisição da flexibilidade cognitiva

Considerando a complexidade e irregularidade inerentes a um domínio conceptual, assim como os objectivos da aprendizagem num nível avançado de conhecimento, a TFC perspectiva uma abordagem do ensino baseada em casos com vista a atingir uma compreensão mais apurada e flexível do domínio em causa.

No entanto, para que se promova a flexibilidade cognitiva indispensável para a resolução de problemas complexos, é necessário que os indivíduos tenham um contacto prévio com o domínio a estudar, a partir do qual reconheçam as características próprias que situem esse domínio numa dimensão complexa e com pouca estruturação. Segundo os autores da TFC (Spiro et al., 1987), antes de se efectivar qualquer combinação flexível de ideias, torna-se imprescindível familiarizar os indivíduos com a complexidade do material com que se irá trabalhar. No seu entender (Spiro et al., 1987:192):

“A mixture of well- and ill-structuredness in the early stages of learning should allow sufficient prerequisite material to become well learned prior to operating in a complicated fashion on that material, and at the same time avoid the establishment of an overly rigid representation that would be difficult to dislodge.”

Deste modo, os sujeitos ficarão preparados para lidar com a complexidade e irregularidade inerentes a um domínio de conhecimento, facilitando uma abordagem que implicará, não só uma desconstrução inicial do assunto, como ainda uma posterior

reconstrução do mesmo, conforme já fizemos referência atrás.

As estratégias para a aquisição de conhecimento complexo num nível avançado da aprendizagem passarão, portanto, por uma abordagem de ensino baseada em casos, à qual estará subjacente, também, a metáfora da travessia da paisagem conceptual de Wittgenstein.

2.2.4.3.1 A desconstrução do domínio conceptual

É devido aos princípios que caracterizam o conhecimento complexo e pouco estruturado que a TFC enfatiza uma orientação teórica apoiada na multiplicidade para o ensino e aprendizagem. Ou seja, em vez de ser utilizada uma única estrutura de conhecimento, ou um protótipo, ou uma analogia, serão necessárias múltiplas fontes de conhecimento para aplicar em novas situações (Spiro et al., 1987). Assim, a análise do domínio de conhecimento a partir de casos constitui um dos pilares fundamentais da TFC.

De acordo com os mentores desta teoria (Spiro et al., 1987, Spiro et al., 1988, Spiro & Jehng, 1990), os casos representam exemplos do mundo real, ilustrações concretas da realidade e, nessa medida, não podem ser vistos como meras ilustrações de um tema abstracto, como acontece em domínios bem estruturados. A noção de “caso” é claramente definida por Moreira (1996:77) ao afirmar que “todos os casos representam uma situação experimentada que, quando evocada, estabelece o contexto que delimita os conhecimentos nele incluídos e que a ele se presumem aplicáveis.”

A representação do conhecimento complexo e pouco estruturado deve, pois, incluir diversos casos, para demonstrar o carácter multifacetado de cada um deles e, acima de tudo, as diversas interrelações que se podem estabelecer entre si. Quanto mais irregular e heterogéneo for o domínio a estudar, maior será a necessidade de o desconstruir em casos que reflictam essa variabilidade decorrente quer do contexto de aplicação, quer das suas próprias características.

Os princípios gerais que eram aplicados na compreensão de conceitos em domínios bem estruturados deixam agora de ser uma referência, pois não conseguem evidenciar suficientemente as múltiplas diversidades existentes em cada caso, as quais se vão tornando cada vez mais irregulares à medida que se estabelecem relações entre os casos. Preconizando uma abordagem centrada nos casos, a TFC considera que “increased flexibility in responding to highly diverse new cases comes increasingly from reliance on reasoning from precedent cases.” (Spiro et al., 1988:380).

Por outro lado, partindo do pressuposto de que os casos possuem uma complexidade e significado próprios, é essencial a decomposição destes em unidades mais pequenas – os mini-casos7 – não só para facilitar a compreensão da multiplicidade das

7

situações em que se aplicam os casos, como também para evitar a compartimentação de conceitos que conduziria a uma abordagem demasiadamente simplificadora (Spiro et al., 1988). Na verdade, os mini-casos apresentam-se como uma miniatura dos casos, uma vez que, tal como estes, são pouco estruturados e irregulares. Enquanto elementos ilustrativos da complexidade conceptual de um determinado caso, os mini-casos constituem o ponto de partida para a organização que se deve estabelecer para o ensino. Tal como defendem Spiro & Jehng (1990:185), “instruction starts with complex treatments but situates them in cognitively manageable mini-cases.”

É neste momento que retomamos a metáfora do “cruzamento da paisagem conceptual” elaborada por Wittgenstein, para melhor perceber o processo de desconstrução dos mini-casos em múltiplas perspectivas de análise.

Tal como referimos anteriormente, é fundamental “visitar” a paisagem em momentos diferentes e a partir de diversos locais para obter o melhor entendimento sobre ela. Em termos semelhantes, a TFC propõe que a desconstrução dos vários casos, para além dos mini-casos, se efective por intermédio de temas, ou seja, análises conceptuais que adquirem relevância, conforme o contexto de aplicação de cada caso ou mini-caso. Ou seja, cada tema (igualmente designado pelos autores como conceito ou perspectivas

temáticas e simbólicas) apresenta-se de modo irregular ao longo dos casos, assumindo

formas distintas de instanciação. Nesta medida, Spiro et al. (1988) advertem que estes conceitos não deverão ser encarados como “capítulos” isolados, uma vez que, ao estabelecerem ligações entre os casos, estas perspectivas construirão uma vasta rede de interconexões, interligando múltiplas fontes de conhecimento, a partir das quais a flexibilidade cognitiva será favorecida. Assim, quanto mais temas se associarem aos mini- casos, menor será o risco de limitar a compreensão e posterior aquisição do conhecimento por parte do aluno a uma única perspectiva de análise.

De novo, o objectivo resume-se à representação da complexidade inerente a um domínio avançado do conhecimento que ajudará o aluno no processo de transferência de conhecimento para novas situações. Segundo Spiro & Jehng (1990:190),

“by presenting the same case information at different times, in the context of various other cases, and with different conceptual elements stressed, a web of case and context interrelationships of the kind necessary for flexible knowledge assembly and transfer in ill-structured domains is established.”

O processo de desconstrução dos mini-casos contempla, ainda, um outro tipo de informação especializada detentora de complexidade conceptual: os comentários temáticos (Spiro & Jehng, 1990). Estes elementos ajudam a perceber como os temas são aplicados a cada mini-caso, além de explicarem a aplicação do mesmo tema a diferentes mini-casos, durante as travessias temáticas. Funcionando como orientações conceptuais, os comentários temáticos auxiliam o aluno a entender a relação de um dado tema com outros temas no mesmo mini-caso, contextualizando-o e, simultaneamente, a compreender as conexões temáticas ao longo dos mini-casos, decorrentes da instanciação do mesmo tema em diferentes mini-casos.

Atendendo ao que foi exposto, podemos afirmar que a TFC centraliza o processo cognitivo na combinação das diversas características que compõem cada caso e não no caso, como elemento representativo do domínio de conhecimento. Daí que Spiro et al. (1987:186) sustentem que

“instead of a single case being the basis for case-based cognitive processing, aspects of different cases need to be combined, and it is the resulting assemblages, made up of fragments of different cases, that underlie an important part of case-based reasoning”.8

Efectivada, assim, a desconstrução do domínio de conhecimento a analisar, é chegado o momento de pensar na sua reconstrução.

2.2.4.3.2 A reconstrução do domínio conceptual

Se, por um lado, a aquisição de conhecimentos de nível avançado em domínios complexos e pouco estruturados implica um processo de desconstrução em casos, mini- casos e temas, por outro lado, segue-se-lhe um outro processo, de igual importância, e que diz respeito à reconstrução conceptual do domínio. Em causa está, portanto, a promoção da flexibilidade cognitiva necessária para que um aluno seja capaz de transferir conhecimentos para novas situações.

8

Conforme temos vindo a mencionar, a TFC considera essencial o “cruzamento da paisagem conceptual”. No entanto, os seus autores chamam a atenção para o facto de, embora utilizarem um processo onde se repete a informação casuística, este não pretende replicar a mesma informação (Spiro & Jehng, 1990). Ou seja, um domínio de conhecimento de estruturação holístico-integrativa só será correctamente compreendido se se efectuar uma exploração multidireccional, de modo a salientar aspectos diferentes de cada mini-caso, consoante o seu contexto de apresentação. Deve-se, assim, facultar ao aluno a possibilidade de construir várias travessias do domínio de conhecimento que coloquem em evidência perspectivas conceptuais relevantes que não tinham ocorrido na desconstrução temática sequencial dos mini-casos. Tratam-se, assim, de reedições do mesmo domínio, a partir de múltiplas dimensões temáticas que possibilitam ao aluno uma análise não linear, e por isso mais flexível, da complexidade e irregularidade específica de um domínio pouco estruturado. O ideal seria uma vasta gama de reedições do conteúdo para que o aluno se encontre adequadamente preparado para lidar com eventuais situações que não tenham sido ainda experimentadas. Com a devida pertinência, Spiro & Jehng (1990) lembram-nos que um médico nunca terá experiência “suficiente”.

Para além deste tipo de cruzamentos conceptuais, motivados pelo interesse pessoal do aluno em aprofundar um ou outro tema que considera mais pertinente, poderão verificar-se outras travessias propostas pelo especialista. Nestas, não obstante tratar-se de um percurso previamente orientado, os mini-casos não seguem a sequência presente nos casos, pois, como é sugerido por Carvalho (2000:177),

“ [A] finalidade dos mini-casos nestas travessias temáticas é ajudar a compreender melhor o tema seleccionado e mostrar como um mesmo tema surge em diferentes contextos proporcionados pelos casos.”

Desta forma, a análise do domínio é altamente enriquecida, dado que a múltipla representação do conhecimento aliada a uma exploração, também ela, multifacetada, favorece a aquisição da flexibilidade cognitiva fundamental num nível avançado de aprendizagem. Por outro lado, a preocupação não deve residir apenas em atravessar o domínio conceptual; importa, sobretudo, considerar a forma como realizamos essa travessia, para dela se destacarem contrastes úteis para a construção de conhecimento (Spiro & Jehng, 1990).