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2.1 A TEORIA DE BASIL BERNSTEIN

2.1.1 Estruturação do discurso pedagógico e processos de recontextualização

O objetivo desta seção é apresentar alguns aspectos dos conceitos de estruturação do discurso pedagógico e dos processos de recontextualização formulados por Bernstein, e que

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Os sociólogos compactuam com algumas ideias, mas apresentam diferenças. Uma das principais diferenças entre Bourdieu e Bernstein, por exemplo, segundo Silva (1992, p. 133), é que “Enquanto Bourdieu tem se dedicado a estudar os mais variados campos, Bernstein tem se restringido ao campo da educação”. Além da diferença, o autor aponta, em seu artigo, algumas coincidências entre Bourdieu e Bernstein, entre elas que os estudos desses dois sociólogos partem de uma mesma motivação, que consiste nas desigualdades educacionais que ocasionam o fracasso escolar das crianças e jovens das classes trabalhadoras.

contribuíram para a realização da presente pesquisa. Antes de tudo, é importante salientar que o dispositivo pedagógico “fornece a gramática intrínseca do discurso pedagógico” (BERNSTEIN, 1996, p. 254) através de três regras hierarquicamente ordenadas (distributivas, recontextualizadoras e avaliativas), que estão relacionadas aos campos de produção do conhecimento, reprodução e recontextualização. Bernstein (1996, p. 254) fez uma síntese dessas três regras quando abordou sobre o dispositivo pedagógico:

Essas regras são, elas próprias, hierarquicamente relacionadas, no sentido de que a natureza das regras distributivas regula as regras recontextualizadoras, as quais, por sua vez, regulam as regras de avaliação. Essas regras distributivas regulam a relação fundamental entre poder, grupos sociais, formas de consciência e prática e suas reproduções e produções. As regras recontextualizadoras regulam a constituição do discurso pedagógico específico. As regras de avaliação são constituídas na prática pedagógica.

As regras distributivas estão relacionadas com o quê e o como do processo de ensino nas escolas, ou como afirmam Mainardes e Stremel (2010), essas regras regulam o tipo de conhecimento que os diferentes grupos sociais terão acesso (o quê), bem como o modo pelo qual se dará a aquisição desses saberes (o como). Por isso, os mesmos autores ora citados mencionam que as regras distributivas manifestam-se no campo da produção do discurso, atuando no contexto primário e criando um campo especializado de produção do discurso, com regras igualmente especializadas de acesso e controle do poder. A este propósito, Bernstein (1996) mencionou que a relação entre poder, grupos sociais e formas de consciência é estabelecida através dos controles sobre a especialização e distribuição de diferentes ordens de significado (discursos), que criam diferentes conhecimentos e diferentes práticas. Por isso,

Se quisermos compreender a produção, reprodução e transformação de formas de consciência e de prática, precisamos compreender a base social de uma dada distribuição de poder e os princípios de controle que, de forma preferencial, posicionam, reposicionam e oposicionam formas de consciência e de prática (BERNSTEIN, 1996, p. 254-255).

E se as regras distributivas definem e distribuem quem pode transmitir o quê a quem, e sob quais condições, então, “o discurso pedagógico consiste nas regras de comunicação especializada através das quais os sujeitos pedagógicos são seletivamente criados” (BERNSTEIN, 1996, p. 258). Desse modo, as regras recontextualizadoras regulam o processo de transformação do discurso, e as regras de avaliação qualificam os discursos produzidos e transformados nas práticas (BERNSTEIN, 1996).

Conforme Bernstein (1996), o discurso pedagógico também compreende a inter- relação entre dois discursos especializados: o discurso instrucional, expresso por DI; e o discurso regulativo, expresso pela fórmula DR. Bernstein (1996) chama de discurso

instrucional aquele que transmite as competências especializadas e sua mútua relação; e o discurso regulativo o que cria a ordem, a relação e a identidade. Neves et al. (2000) procederam a um estudo de nível macro, no qual se utilizaram dos conceitos de discurso instrucional e discurso regulador para analisar a reforma de ensino das ciências em Portugal. Os autores analisaram os programas da disciplina de Ciências Naturais dos 5º,6º e 7º anos de escolaridade, a fim de identificar e comparar em que medida as reformas de 1975 e de 1991, no Ensino Básico, introduziram mudanças nos discursos e nas competências que valorizam. Os resultados sugeriram um aumento da valorização da dimensão reguladora da aprendizagem, e mostrou que há uma recontextualização dentro dos programas, ao passar do nível curricular para o disciplinar, ou seja, do nível de discurso instrucional (o quê) para o de discurso regulador (o como).

Mainardes (2007a) destaca que o discurso instrucional caracteriza qual conhecimento deve ser transmitido, assim, refere-se ao quê da prática pedagógica; enquanto o discurso regulativo ou regulador compreende como o conhecimento deve ser transmitido. Com fundamento em Bernstein, Barrett (2009) explica que um discurso instrucional molda o conteúdo ensinado e a maneira de sua transmissão, e um discurso regulador reflete a ordem social em que o conteúdo é ensinado e a maneira como é transmitido para diferentes grupos sociais e indivíduos.

Bernstein (1996) também identificou os três principais campos do dispositivo pedagógico e que, particularmente, interessam para a realização da presente pesquisa: produção, recontextualização e reprodução do discurso pedagógico47.

Mainardes e Stremel (2010) afirmam que esses campos estão hierarquicamente relacionados, de modo que a recontextualização do conhecimento não pode acontecer sem a sua produção, e a reprodução não pode ocorrer sem sua recontextualização. Conforme os autores, a produção de novos conhecimentos continua a ser realizada, principalmente em instituições de Ensino Superior e em organizações privadas de pesquisa. A respeito das relações entre os três campos citados, Neves et al. (2000) afirmam que estas relações mostram que o discurso pedagógico oficial reflete os princípios dominantes de uma sociedade, que são gerados no campo do Estado sob diversas influências, entre elas o campo internacional, os campos de produção (recursos físicos) e do controle simbólico (recursos discursivos). Para

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O discurso pedagógico para Bernstein (1996) é a comunicação especializada pela qual a transmissão e a aquisição de conhecimentos são efetuadas. Em outras palavras, Mainardes (2007a) e Mainardes e Stremel (2010) destacam que a teoria da estruturação do discurso pedagógico foi elaborada para ser um modelo de análise do processo pelo qual uma área do conhecimento, ou um domínio específico do conhecimento especializado, é convertido ou pedagogizado para constituir o conhecimento escolar (currículo, interação entre professor e alunos, materiais de ensino, etc.).

Ball e Mainardes (2011, p. 14), “o Estado é um dos principais lugares da política e um dos principais atores políticos”. Entendemos que isso é relevante, porém, não significa que o discurso pedagógico seja um simples reprodutor dos discursos oficiais, pois podem ocorrer recontextualizações que, permitindo certa mudança, fazem com que o discurso que é reproduzido e recontextualizado não corresponda exatamente ao discurso que é produzido.

No caso da presente tese, o campo da produção do discurso oficial do Programa PNAIC foi realizado no âmbito do Governo Federal, mais precisamente pelo Ministério da Educação - MEC, de modo a cumprir com uma agenda empresarial, conforme será verificado no capítulo 4, que trata da análise sobre o campo da produção do discurso oficial do PNAIC (nível macro).

Segundo Mainardes e Stremel (2010), a recontextualização do conhecimento é realizada no âmbito do Estado (como, por exemplo, em secretarias de educação) ou pelas autoridades educacionais, periódicos especializados de educação, instituições de formação de professores, entre outros. A recontextualização do PNAIC em nível meso, ou seja, em nível intermediário entre o nível micro (sala de aula) e o macro (Governo Federal) e vice versa, será analisada no âmbito da Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG, que coordena o PNAIC no município de Ponta Grossa/PR, e na Secretaria Municipal de Educação. Nesse momento serão analisadas as recontextualizações que as formadoras fizeram nas formações continuadas de orientadores de estudo, e como os orientadores de estudos recontextualizaram os materiais do PNAIC na formação dos professores alfabetizadores.

Finalmente, no nível micro, serão analisados os processos de reprodução e recontextualização que ocorrem nas salas de aula, por meio da atuação pedagógica das professoras que participaram das ações propostas pelo PNAIC.

Devido à importância dos campos de produção, recontextualização e reprodução do discurso pedagógico para a presente pesquisa, convém, neste momento, fazer uma explicação mais detalhada sobre eles. Com base em Bernstein, Mainardes (2007a, p. 17), destaca que “o discurso pedagógico é construído por meio de um processo de seleção e recontextualização de um discurso primário”. Os discursos primários formam o campo da produção do discurso (contexto primário), no qual novas ideias são criadas, modificadas e mudadas. O contexto primário cria o campo intelectual do sistema educacional. É relevante destacar, ainda, que a produção do discurso ocorre fora do próprio campo do sistema educacional (BERNSTEIN, 1996). Já na reprodução do discurso (contexto secundário), os discursos são transformados, reorganizados, de modo que são distribuídos em um campo diferente, o campo de reprodução discursiva (MAINARDES, 2007a).

No conceito de recontextualização (contexto recontextualizador), que foi formulado por Bernstein no contexto da teoria do dispositivo pedagógico, agentes e práticas estão preocupados com os movimentos de textos e práticas do contexto primário da produção discursiva para o contexto secundário da reprodução discursiva (BERNSTEIN, 1996). Em outras palavras, no contexto de recontextualização, as ideias criadas no campo da produção do discurso (que é produzido fora do contexto de recontextualização) não são simplesmente colocadas em prática ou reproduzidas, mas são repensadas, modificadas e até mesmo alteradas.

O processo de recontextualização ocorre em dois campos recontextualizadores: no campo recontextualizador oficial (CRO) e no campo de recontextualização pedagógica (CRP). Para Bernstein (1996, 2003), o campo oficial de recontextualização (CRO) é uma arena para a produção, distribuição, reprodução, inter-relação e mudança de identidades pedagógicas. O CRO é constituído pelo Estado com seus departamentos e sistemas especializados (BERNSTEIN, 1996). Nesse campo oficial de recontextualização, o discurso pedagógico oficial é produzido, mudado e depois distribuído, e esse discurso “é sempre uma recontextualização de textos e suas relações sociais geradoras, a partir de posições dominantes no interior dos campos econômicos e de controle simbólico” (BERNSTEIN, 1996, p. 276). No que se refere ao PNAIC, no CRO também ocorreu a participação das universidades.

O CRP, por sua vez, é constituído pelas universidades, pelas faculdades de educação, pelos departamentos e setores de educação das universidades e faculdades, pelos periódicos especializados na área da educação, entre outros (BERNSTEIN, 1996). De acordo com Mainardes (2007a, p. 19), “o CRP tem a função crucial de criar um discurso pedagógico autônomo, diferenciado do discurso oficial”, pois, conforme mencionado anteriormente, o discurso pedagógico produzido no contexto primário (CRO) é repensado, recriado, modificado e alterado.

Com base no exposto por Bernstein (2003), pode-se afirmar que um campo pedagógico de recontextualização - CRP (por exemplo, a formação continuada de professores alfabetizadores) é composto de posições, que podem ser opostas e complementares, construindo uma arena de conflito e luta por controle.

Por isso apresenta-se, nesta pesquisa, o campo recontextualizador pedagógico como o espaço das universidades e secretarias de educação e as diferentes formas de recontextualização do Programa proposto na formação de professores e no contexto da prática (salas de aula).

analiticamente distintos: autor, ator e identidade (BERNSTEIN, 2003). O autor é o discurso autorizado, que significa, na presente pesquisa, os elaboradores do PNAIC (Ministério da Educação). Os atores são os patrocinadores que, no caso, são as universidades públicas que elaboraram os cadernos de formação e coordenam as ações junto aos municípios. E as identidades são os resultados de especializações pedagógicas que, nesta pesquisa, é a formação dos professores alfabetizadores e a prática pedagógica deles.

Segundo Bernstein (1996, p. 277, grifos do autor), a atividade principal dos dois campos apresentados é constituir o quê e o como do discurso pedagógico, que ele explica da seguinte forma:

O “quê” refere-se às categorias, conteúdos e relações a serem transmitidas, isto é, à sua classificação, e o “como” se refere ao modo de sua transmissão, essencialmente, ao enquadramento. O “quê” implica uma recontextualização a partir dos campos intelectuais (Física, Inglês, História, etc.), dos campos expressivos (Artes), dos campos manuais (artesanato), enquanto o “como” se refere à recontextualização de teorias das Ciências Sociais, em geral da Psicologia. [...] Em geral, embora haja exceções, aqueles que produzem o discurso original, os criadores do discurso a ser recontextualizado, não são os agentes de sua recontextualização.

Na presente pesquisa, que tem como objetivo principal compreender as ações do PNAIC no campo da produção do discurso (nível macro), no campo da recontextualização (nível meso) e no campo da recontextualização e reprodução (nível micro), pode-se afirmar que o quê refere-se aos conteúdos48 do processo de ensino-aprendizagem. Quanto ao como, entende-se que se refere ao modo como os professores alfabetizadores recontextualizam ou reproduzem esses conteúdos, transformando-os em novos conhecimentos. que serão apropriados ou não pelos seus alunos. Diante do exposto, facilmente se presume que o principal eixo de ação do PNAIC, que é a formação continuada presencial de professores alfabetizadores, influenciará o quê e o como na prática pedagógica desses professores. Isso não quer dizer que a formação continuada seja compreendida apenas como determinante da prática pedagógica dos professores, mas considera-se que a prática é influenciada, também, pelo desenvolvimento profissional do professor, pela incorporação de elementos do contexto cultural, no qual a escola encontra-se inserida, pelas condições de trabalho, etc.

Considerando que o quê e o como estão relacionados com a classificação e o

48 A fundamentação para o currículo para o ciclo de alfabetização poder ser encontrada: a) nas Diretrizes

Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (BRASIL, 1998); b) na coleção Indagações sobre currículo (BRASIL, 2007c); c) nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 (nove) anos (BRASIL, 2010b); d) nas orientações das Secretarias Municipais de Educação; e) nos materiais do PNAIC; entre outros. Desde o ano de 2015, o MEC estava elaborando, com a participação de consultores convidados, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), visando a atender a Lei n.º 13.005/2014, do PNE. Os procedimentos adotados pelo MEC receberam inúmeras críticas e contribuições.

enquadramento, conforme apresentado na citação de Bernstein, faz-se necessário abordar esses dois conceitos, que são considerados como centrais na teoria do discurso e da prática pedagógica do sociólogo.