2.1 A TEORIA DE BASIL BERNSTEIN
2.1.4 Regras hierárquicas, regras de sequenciamento e regras criteriais
Como serão apresentadas as três regras propostas por Bernstein, que compõem a prática pedagógica, faz-se necessário mencionar, primeiramente, como o autor entende a prática pedagógica. Bernstein (1998) considera a prática pedagógica como um contexto social fundamental, através do qual se realiza a produção e a reprodução de culturas, ou seja, como um condutor cultural (BERNSTEIN, 1996). Esse contexto não é apenas o da escola, mas de outras relações pedagógicas existentes na sociedade como um todo. No caso do contexto social da escola, as regras apresentadas por Bernstein (1996), segundo Mainardes (2007a), afetam o conteúdo que será transmitido, bem como atuam seletivamente para determinar aqueles adquirentes que serão bem-sucedidos.
Entre as três regras, a hierárquica é a dominante, e está diretamente relacionada com a posição hierárquica que o transmissor e o adquirente ocupam. Nesse caso, o adquirente tem que aprender a ser um adquirente, e o transmissor tem que aprender a ser um transmissor (BERNSTEIN, 1996). Nessa relação de poder que envolve a regra hierárquica, o transmissor (o formador e o orientador de estudo, no caso da presente pesquisa) atua diretamente no contexto de seleção de conteúdos, na transmissão desses conteúdos; porém, não tem o controle de como a apropriação desses conteúdos ocorrerá pelo adquirente (o professor, no caso desta pesquisa).
A apropriação desses conteúdos pelo adquirente envolve a progressão da transmissão dos referidos conteúdos. Refere-se ao que deve ser ensinado antes e o que deve ser ensinado depois, ou seja, a ordem do que ensinar, e a velocidade para aquisição. Na perspectiva de
Bernstein (1996), a transmissão não pode ocorrer de uma vez só, deve haver uma progressão (regras de sequenciamento). E as regras de sequenciamento (o que vem antes e o que vem depois) implicarão em regras de compassamento.
Para Bernstein (1996, p. 97), “o compassamento é a velocidade esperada de aquisição das regras de seqüenciamento [sic], isto é, quanto se tem que aprender num dado espaço de tempo”. Tanto a escolha do que vem antes e o que vem depois, na transmissão dos conteúdos (regras de sequenciamento), bem como o ritmo dessa transmissão (compassamento), influenciam na aprendizagem do adquirente.
Nas regras criteriais “existem critérios que se espera que o adquirente assuma e aplique às suas próprias práticas e às dos outros” (BERNSTEIN, 1996, p. 97). Desse modo, as regras criteriais estão relacionadas diretamente com a avaliação que se faz do adquirente (aluno) com base nas suas condutas, caráter e modo de comportamento, e com base na aquisição de conhecimentos e habilidades (MAINARDES, 2007a).
As três regras descritas por Bernstein podem ser explícitas (pedagogias visíveis – modelo de desempenho - centrada no transmissor/professor) ou implícitas (pedagogias invisíveis - modelo de competência – centrada no adquirente/aluno). Para compreender melhor o exposto até aqui, será utilizada a tabela 7, que apresenta as características das pedagogias visíveis e invisíveis, e explicita as regras da prática pedagógica.
Tabela 7 - Características das pedagogias visíveis e invisíveis
Regras Pedagogias visíveis Pedagogias invisíveis
Regras hierárquicas Explícitas/fortes
- A distribuição do poder é franca e explícita.
- As regras da ordem social são explícitas.
- O professor é facilmente
identificado.
- O discurso do professor é predominante.
- A classe é tratada como
homogênea.
Implícitas/fracas
- O poder é ocultado pela comunicação.
- As regras são implícitas. - O professor não é facilmente identificado.
- Os alunos têm autonomia. - As diferenças entre os alunos são reconhecidas.
Regras de
sequenciamento/compassamento
Explícitas
- As regras de sequenciamento são
colocadas publicamente no
currículo.
- As regras variam de acordo com a idade dos alunos.
- Constroem o projeto temporal da criança.
- A criança tem conhecimento do projeto temporal.
- Os rituais de transição são utilizados.
Implícitas
- Aprendizagem é tácita/invisível. - Pressupõem uma longa vida pedagógica.
- A criança não tem
conhecimento do projeto
Regras criteriais Explícitas
- As expectativas são específicas e conhecidas por todos.
Foco: produto ou desempenho. - Os alunos precisam satisfazer os critérios.
- Produz diferença entre os alunos (estratificação).
- Aprendizagem é individual e competitiva.
Implícitas
- As expectativas são múltiplas e difusas.
Foco: aquisição/competência. - Os alunos podem criar critérios. - Produz singularidades: cada um
pode progredir num ritmo
próprio.
- Aprendizagem ocorre com bastante apoio e ajuda.
Fonte: Mainardes (2007a, p. 49).
Com base em Bernstein (1996) e na tabela 7, pode-se afirmar que, se as regras hierárquicas são explícitas, as relações de poder são muito claras, o que cria uma hierarquia explícita e facilita a distinção de quem é o transmissor. Ao contrário, quando as regras hierárquicas são implícitas, o poder é mascarado, ou escondido por dispositivos de comunicação. E, nesse caso, “o professor atua diretamente sobre o contexto de aquisição, mas indiretamente sobre o adquirente” (BERNSTEIN, 1996, p. 99).
Quanto às regras de sequenciamento, se elas são explícitas, há a expectativa que, no decorrer do desenvolvimento da criança e conforme a sua faixa etária, ela apresente determinadas competências. Sendo assim, a criança sabe o que se espera dela, pois isso está explícito. “Essas regras de sequenciamento podem estar inscritas em listagens de conteúdos, em currículos, em regras de prêmio e castigo e são, com freqüência [sic], marcadas por rituais de transição” (BERNSTEIN, 1996, p. 99). E quando as regras de sequenciamento são implícitas, apenas o professor sabe o que espera do seu aluno.
Quando as regras criteriais são explícitas, a ênfase é sobre o que está faltando no produto, ou seja, se uma criança produz um texto ou um desenho, o professor poderá elogiar seu trabalho, mas apontará o que falta como, por exemplo, uma frase sem a pontuação correta, ou o chão que faltou no desenho de uma casa. E quando as regras criteriais são implícitas, as crianças não sabem os critérios que ela tem que satisfazer.
Os conceitos formulados por Bernstein e apresentados até o momento mostram que o sociólogo, ao admitir a existência de diferentes tipos de prática pedagógica (visível e invisível) e ao analisá-las por meio de suas regras constituintes, contribui para a compreensão sobre como as escolas podem reproduzir desigualdades de classe, admitindo a dualidade de ensino e diferentes tipos de práticas pedagógicas para diferentes classes sociais.
Diante disso, retoma-se o argumento central da presente tese. O PNAIC pode constituir-se em uma proposta que, do ponto de vista teórico, baseia-se na pedagogia mista, pois se fundamenta em princípios do modelo pedagógico de competência (pedagogia
invisível), e também em alguns aspectos no modelo pedagógico de desempenho (pedagogia visível). Essa argumentação será analisada no contexto da prática, apresentada no capítulo 5. A seguir, apresentamos a pedagogia mista.