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Ao abordar um tema tão crucial como é o da alfabetização, uma das preocupações principais é com a apropriação do conhecimento por todas as crianças que se encontram no ciclo de alfabetização. Uma das estratégias que têm sido indicada como adequada para que essa apropriação aconteça é o emprego de uma pedagogia mista (MORAIS, 2004; PIRES; MORAIS; NEVES, 2004; MAINARDES, 2007a; SANTOS, 2011). Morais (2004) defende uma pedagogia mista, pois, segundo a autora, não é possível uma pedagogia totalmente visível ou inteiramente invisível. Os contextos de interação pedagógica são múltiplos, e as relações de poder e controle na escola e na sala de aula conduzem a diferentes relações e disposições para ensinar e para aprender. Para Mainardes (2007a), a pedagogia mista inclui a diferenciação do trabalho pedagógico, de acordo com o nível e com as necessidades de aprendizagem dos alunos. Por isso ela é tão importante para a organização de salas de aulas mais igualitárias, na opinião do autor. Santos (2011) define que a pedagogia mista combina aspectos da pedagogia visível (centrada no transmissor/professor), com aspectos da pedagogia invisível (centrada no adquirente/aluno), e tem se revelado favorável à melhoria do desempenho de todos os alunos.

Pires, Morais e Neves (2004) também sugeriram a pedagogia mista como a mais propícia para uma aprendizagem de sucesso nos níveis científico, social e afetivo. Com base na teoria do discurso pedagógico de Bernstein, as autoras realizaram um estudo centrado no contexto da aprendizagem científica no 1º ciclo do Ensino Básico. A pesquisa tinha como interesse a análise da relação entre a prática pedagógica dos professores e a aprendizagem científica dos alunos. Para tal, as autoras consideraram o como do ensino/aprendizagem (contexto social da sala de aula) e o quê do ensino/aprendizagem (conhecimentos científicos e competências investigadas). Nessa pesquisa identificaram que, no contexto social da sala de aula, os professores podem fazer diferentes recontextualizações, não só com base em pressupostos epistemológicos e psicológicos, mas com base em pressupostos sociológicos, o que implica que

O professor pode implementar uma prática pedagógica com um baixo nível de exigência conceptual quando promove, fundamentalmente, uma aprendizagem de termos e factos e apela para competência investigativas de nível baixo, limitando a

criança ao desenvolvimento/aquisição de competências cognitivas simples, como é o caso da memorização, compreensão de baixo nível e observação. Contudo, o professor pode implementar uma prática pedagógica com um elevado nível de exigência conceptual, quando promove um processo de aprendizagem baseado na conceptualização e na aplicação dos conhecimentos e no desenvolvimento de competências com potencial investigativo, como é o caso da resolução de problemas e da formulação de hipóteses (PIRES; MORAIS; NEVES, 2004, p. 2).

Na perspectiva dessas autoras que integram o Grupo ESSA - Estudos Sociológicos da Sala de Aula, da Universidade de Lisboa, os resultados obtidos com seus estudos revelam que uma importante condição para o sucesso dos alunos, na apropriação de competências cognitivas mais complexas, é a competência científica do professor. E acrescentam que essa é uma condição necessária, mas não suficiente, e apontam outras condições importantes para que ocorra o sucesso dos alunos. Essas condições constituem as características principais da pedagogia mista, a saber: a) uma classificação fraca entre o espaço do professor e o espaço dos alunos; b) relações de comunicação abertas entre professor-alunos e alunos-alunos (enquadramento fraco ao nível das regras hierárquicas); c) a explicitação dos critérios de avaliação (enquadramento forte); d) fraca ritmagem de aprendizagem (enquadramento fraco); e) fortes relações intra-disciplinares (classificação fraca entre os vários conteúdos da disciplina); f) elevado nível de exigência conceitual; g) elevado nível de competência investigativa (PIRES; MORAIS; NEVES, 2004). Essas características são apresentadas na figura da página seguinte.

De acordo com as características da pedagogia mista, na relação entre professor e alunos, o enquadramento interno é fraco, o que permitiria uma comunicação mais aberta entre eles (MAINARDES, 2007a), e poderia favorecer a autonomia do aluno, bem como sua aprendizagem. Quando o enquadramento é fraco, o aluno (adquirente) “tem mais regulação sobre quais características da comunicação e da prática não-escolares podem ser realizadas no interior da sala de aula [...]” (BERNSTEIN, 1996, p. 60).

Figura 1 - Inter-relações entre as características da prática pedagógica do professor e o desenvolvimento científico dos alunos

Outra característica da pedagogia mista é a explicitação dos critérios de avaliação (enquadramento forte) que, segundo Mainardes (2007a), contribui para que o professor tenha informações mais precisas sobre a aprendizagem de seus alunos e, assim, possa realizar as intervenções necessárias. Uma definição clara dos critérios de avaliação exige explicitar o que vai ser avaliado, a forma como vai ser avaliado e qual o lugar das competências específicas nessa avaliação (DOMINGOS et al., 1986). Como a pedagogia mista possui características tanto do modelo pedagógico de desempenho como do modelo pedagógico de competência, é necessário destacar que, no modelo de desempenho, a avaliação enfatiza o que está ausente no produto do adquirente. No modelo pedagógico de competência, o foco é sobre o que está presente no texto do adquirente (BERNSTEIN, 2003), ou seja, o que o aluno faz é valorizado pelo professor.

Uma prática pedagógica com as características da pedagogia mista requer, de acordo com Pires, Morais e Neves (2004, p. 17), um enquadramento fraco da ritmagem, porque,

para que a explicitação do texto a ser adquirido pelos alunos seja feita com pormenor e rigor, tem de haver uma articulação sistemática entre os diferentes conhecimentos da disciplina, têm que ocorrer frequentes e abertas relações de comunicação entre o professor e os alunos e entre os alunos e, para isso, é preciso tempo.

Pires, Morais e Neves (2004) demonstraram, em suas pesquisas, que o efeito da prática pedagógica do professor pode sobrepor-se ao efeito do nível social e econômico dos alunos, o que significa que não há necessidade de baixar o nível de exigência conceitual para que as crianças da classe trabalhadora sejam bem sucedidas na escola. A análise desenvolvida pelas autoras sugere que, se a prática pedagógica for pobre ao nível do quê (competência científica), ao nível do como (competência pedagógica), e caracterizar-se por um fraco enquadramento nos critérios de avaliação, por uma forte classificação entre o espaço do professor e dos alunos, por uma forte classificação nas relações intra-disciplinares e por um forte enquadramento nas regras hierárquicas entre os alunos, o que pode acontecer é um baixo nível de aprendizagem. Mas,

pelo contrário, se a prática pedagógica possuir características favoráveis à aprendizagem de todas as crianças, elevar o nível de exigência conceptual constitui um passo crucial para que todas tenham acesso a um elevado nível de literacia científica e, conseqüentemente [sic], tenham acesso ao texto científico mais valorizado, quer pela comunidade científica, quer pela sociedade em geral (PIRES; MORAIS; NEVES, 2004, p. 20-21).

Assim, como a perspectiva apontada pelas autoras, de que a competência científica dos professores é uma condição necessária para que os alunos sejam bem sucedidos na sua

escolarização, mas não é suficiente, compreende-se, conforme já citado, que a formação continuada presencial dos professores alfabetizadores, colocada em ação por meio do PNAIC, é fator importante para a prática pedagógica, mas o sucesso dos alunos na alfabetização depende, também, de outros fatores, que serão destacados no decorrer da presente tese.

Nesse sentido, considera-se que a pedagogia mista auxilia na compreensão das ações propostas e colocadas em ação por meio do PNAIC, visto que o argumento central da tese é que o PNAIC pode possuir os elementos dessa pedagogia, pois será analisado, ao longo da tese, se ele apresenta as características, tanto do modelo pedagógico de competência (pedagogia invisível) como do modelo pedagógico de desempenho (pedagogia visível). E para compreender como as ações do PNAIC acontecem na prática (o que compreende a análise da formação continuada de orientadores de estudo e professores alfabetizadores, bem como a prática pedagógica desses professores), faz-se necessário apresentar a theory of policy

enactment (teoria da política em ação), de Ball, Maguire e Braun (2016), que são contrários à

utilização do conceito de implementação de políticas. Assim como essa discussão, serão apresentadas, a seguir, as dimensões contextuais da prática que foram fundamentais para a análise do contexto apresentada no capítulo 5.