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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A CONSTRUÇÃO PSICOSSOCIAL DOS PROJETOS DE VIDA

1.3 Estudos sobre projetos de vida na juventude

Ao longo das últimas décadas, foram feitos muitos estudos sobre os projetos de vida. A maioria deles, realizados nos Estados Unidos, foram conduzidos com base em escalas quantitativas (RYFF, 1989) projetadas para verificar a presença ou a ausência de projetos e significados na vida, sem qualquer referência a seus conteúdos. Algumas pesquisas que tinham como finalidade explorar o conteúdo dos projetos de vida solicitaram aos entrevistados que avaliassem uma lista de possíveis finalidades para seus projetos (DE VOGLER; EBERSOLE, 1980). Entretanto, essas listas capturaram apenas categorias culturais gerais de projeto de vida (MASSEY; GEBHARDT; GARNEFSKI, 2008), eram pré- determinadas e tinham como outro ponto negativo o fato de que as categorias poderiam se tornar datadas e relacionadas apenas ao período histórico em que os participantes viviam (BRONK; FINCH, 2010).

Estudos qualitativos mais recentes têm sido feitos com entrevistas em profundidade (MALIN et al., 2008) ou estudos de caso em profundidade (BRONK, 2005; 2008) e tiveram o objetivo de identificar tipos de projetos no que diz respeito a argumentos pró-sociais ou autocentrados (BUNDICK; YEAGER, 2009) e ao grau de elaboração de ações de longo prazo associadas a esses projetos (MARIANO et al., 2011).

Um exemplo desse tipo de estudo é o feito por Bundick, Johnson e Yeager (2012) sobre o papel das metas de trabalho futuro no desenvolvimento da identidade. Esses pesquisadores encontraram quatro padrões gerais, sendo eles: 1) razões autocentradas intrínsecas, que correspondem a metas estipuladas para o benefício de si mesmos e que correspondem a habilidades e interesses pessoais; 2) razões intrínsecas além do eu, que são aspirações de trabalho as quais geram benefícios para o mundo além do eu, tendo um propósito moral intrínseco; 3) razões autocentradas extrínsecas, que correspondem a benefícios extrínsecos ao trabalho, como ganhos monetários ou status social; e 4) razões extrínsecas além do eu, como ter um trabalho que permita ganhar dinheiro ou respeito para serem usados para beneficiar os outros. Em pesquisa anterior, Bundick e Yeager (2009) já haviam encontrado evidências de que os jovens que mencionaram motivações além do eu

para suas metas de trabalho mantiveram consistentemente níveis mais elevados de bem-estar dois anos após o primeiro teste em relação aos jovens sem metas de trabalho.

Uma série de outros estudos tematizaram o papel dos projetos de vida no desenvolvimento positivo da juventude7 (DAMON, 2004; MARIANO, 2011). Dentre eles destacamos um estudo especialmente interessante feito por Bundick et al. (2012) sobre os suportes que os contextos oferecem para o desenvolvimento dos projetos dos jovens. Tal estudo, que refutou quantitativamente as hipóteses iniciais de que jovens com maior apoio familiar teriam o projeto de vida melhor desenvolvido e que os jovens com mais apoio dos amigos estariam mais propensos a mostrar objetivos além do self, gerou evidências de que tais suportes (família e amigos) contribuem apenas para que os jovens tenham intenções para o futuro. Mas a pesquisa diz pouco sobre como os jovens integram os suportes em uma rede de apoio e como essa rede atua no que diz respeito aos conteúdos específicos dos projetos de vida. Já na análise qualitativa, o apoio da família apareceu como fundamental, sendo o mais frequentemente mencionado como fornecedor de recursos emocionais, cognitivos e monetários. Além disso, os jovens que mencionaram que seus pais os incentivavam a ter objetivos pró-sociais, relataram projetos de vida voltados para o mundo além do eu, enquanto que os jovens que perceberam que seus pais os motivavam para o sucesso pessoal e o bem- estar, tiveram metas autocentradas.

Diante desse cenário de investigações, notamos a ausência de estudos empíricos longitudinais sobre como os projetos de vida se desenvolvem na juventude. O único estudo feito até então nessa perspectiva foi o de Malin et al. (2013), que buscou descrever as transições dos projetos de vida durante a juventude, com a finalidade de criar um modelo preliminar de desenvolvimento dos projetos de vida. O estudo, iniciado com 270 jovens estudantes do Ensino Médio e finalizado após dois anos, com 146 jovens, confirmou a hipótese inicial de que as formas de projeto de vida observadas na primeira fase da coleta de dados apresentariam transições fluidas e não sequenciais para formas não precursoras, precursoras e projetos de vida plenamente realizados.

Especialmente interessantes para nosso estudo são os seguintes resultados dessa investigação:

I. O raciocínio além do self é instável no início da adolescência e se manifesta como empatia. Os jovens que deixaram de mencionar razões além do self para seus projetos

7 Campo de investigação constituído na década de 1980 para sistematizar pesquisas e intervenções relacionados com os resultados do desenvolvimento positivo na juventude (BENSON et al., 2006).

de vida, ao final do estudo, continuaram demonstrando consciência empática, mas perderam objetivos relacionados a ela. Entre esses jovens, fatores como o prazer hedônico e as relações entre pares ganharam importância e redirecionaram o projeto de vida.

II. Para alguns jovens, deixar de ter projetos de vida foi bastante problemático, pois pareceram perder toda a direção e o sentido que moviam suas vidas. Esse fenômeno parece estar relacionado a dúvidas sobre suas próprias capacidades e a percepção de que seus objetivos não eram significativos ou orientados para além do self. Para outros jovens, essa perda não foi problemática, mas sim indicativa de novas oportunidades que os permitiriam explorar outros papéis. Esses jovens demonstraram que, às vezes, “regredir” no projeto de vida é na verdade um avanço rumo a uma maior consistência e exploração de si mesmo;

III. Projetos de vida sem definição da carreira profissional são muito raros e possuem objetivos de família mais estabilizados. O comprometimento com relacionamentos parece estabilizar o projeto de vida nos momentos em que outros aspectos da vida estão em transição;

IV. O ingresso no Ensino Superior é um padrão de exploração comum aos jovens, pois oferece um percurso para suas vidas nos anos subsequentes, além, é claro, de outorgar- lhes as credenciais muitas vezes necessárias para o ingresso no mundo do trabalho. No entanto, para alguns jovens a faculdade é percebida como um padrão de retenção que atrasa seu avanço rumo ao caminho realmente desejado, como exercer profissões que não exigem esse tipo de formação ou materializar projetos sociais que configuram seu verdadeiro projeto de vida;

V. A trajetória geral de desenvolvimento dos projetos de vida foi marcada muito mais por um movimento multidirecional do que contínuo ascendente, mediante formas precursoras de projetos até o projeto de vida em si. Esse movimento multidirecional parece ter sido causado principalmente por três fatores: transições de vida, processos de formação de identidade e apoios e influências externas.

VI. Poucos participantes identificaram experiências escolares como as mais relevantes para suas aspirações importantes.

Dessa última observação decorre outra lacuna importante dos estudos sobre os projetos de vida: o papel das intervenções educativas em sua construção. Em 2011, Koshy e Mariano publicaram uma revisão da literatura de 465 artigos acadêmicos sobre como o projeto de vida é apoiado e ensinado em contextos educacionais formais e não formais. Constatando que poucos programas educativos explicitamente ensinam para esses fins, elas encontraram pouquíssimos relatos de programas escolares sobre projetos de vida, mesmo variando a terminologia da busca. Ao que tudo indica, poucas escolas consideram o desenvolvimento das aspirações dos jovens como sua missão central, embora vários programas abordem as dimensões “além do eu” por meio de atividades de engajamento cívico.

Os resultados dessa revisão revelaram que os adolescentes frequentemente mencionam objetivos relacionados a escola quando perguntados sobre seus projetos de vida. Contudo, apenas uma pequena parcela dos jovens mencionou a escola como um local para apoiar seus estudos mais duradouros. Além disso, jovens com formas precursoras de projetos de vida se sentem mais apoiados pela escola do que jovens com projetos de vida plenamente constituídos. Sobre isso Mariano et al. (2011) também encontraram evidências de que jovens com projetos de vida podem ser menos dependentes da escola como suporte para suas aspirações. Ainda assim, esses autores defendem que todos os jovens, com suas variadas formas de projetar a vida futura, devem ser contemplados e motivados por meio da experiência escolar, mesmo que alguns deles já tenham noções claras sobre o que desejam conquistar e o que devem fazer para efetivar essas aspirações.

Ainda em 2011, Brown, Kanny e Pizzolato publicaram um estudo cujo objetivo era avaliar um programa de intervenção para melhorar as percepções de controle interno sobre o sucesso acadêmico e o projeto de vida da juventude, sob o argumento de que a conquista acadêmica serve como direcionador para a conquista de objetivos mais amplos, principalmente para aqueles que têm poucos recursos e necessitam da escolarização como suporte para uma vida melhor. Esse estudo foi feito com pequenos grupos de estudantes do Ensino Médio de uma comunidade na Pensilvânia por meio de nove sessões ao longo de dezoito semanas. Os resultados indicaram que é possível contribuir com o desenvolvimento dos projetos de vida dos estudantes por meio de intervenções de curto prazo, já que a intervenção foi eficaz para desenvolver planos e habilidades para que eles pudessem alcançar

suas aspirações e para lidar com ameaças à sua realização, como a falta de apoio e a ridicularização de suas intenções.

Por fim, Bundick publicou em 2011 um estudo com o objetivo de testar se a reflexão profunda e a discussão do projeto de vida podem ter efeitos duradouros para a elaboração do projeto de vida. Na contramão do apelo de Koshy e Mariano (2011) para que as intervenções sobre os projetos de vida sejam contínuas e não pontuais, esse estudo optou por uma única entrevista individual como instrumento de intervenção, orientada para induzir a reflexão e o pensamento profundo sobre o projeto de vida, os valores centrais e os objetivos mais importantes da vida nos jovens participantes. O argumento que sustenta a escolha desse instrumento é que a entrevista pode ser um evento desencadeador para predispor a exploração da identidade e reconsiderar a própria trajetória de vida. Nesse sentido, ela seria usada como um catalisador de mudanças de longo prazo através de uma restruturação da identidade. Bundick ainda defendeu que esse é um método simples, que não exige recursos e que qualquer professor pode aplicar com seus alunos. A pesquisa foi feita com 38 estudantes do Ensino Superior do estado da Califórnia, por um entrevistador que os convidou a explorar as razões de seus projetos de vida, discutir maneiras pelas quais eles estavam buscando essas metas e a considerar como essas metas estavam relacionadas a outros aspectos de suas vidas. No entanto, os resultados não apoiaram a hipótese de que a reflexão profunda e a discussão sobre projeto de vida em uma única seção aumentam o grau com que alguém elabora seu projeto de vida, nove meses depois da intervenção.

No Brasil, as investigações feitas sob a orientação da Profa. Dra. Valéria Arantes, buscaram, mediante uma via de análise qualitativa, investigar o papel das escolas nos projetos de vida dos jovens (KLEIN, 2011; ULLER, 2012); o papel dos sentimentos e das emoções nos projetos de vida (PÁTARO, 2011); a integração e a regulação dos valores nos projetos de vida (PINHEIRO, 2013); os conteúdos e as estruturas dos projetos de vida (DANZA, 2014); o papel da felicidade nos projetos de vida (GOMES, 2016; GONÇALO, 2016); e, mais recentemente e seguindo uma tendência norte americana, os projetos de vida dos idosos (ARANTES; PINHEIRO; AMANDO, 2019). De modo geral esses trabalhos contribuíram para o entendimento do construto de projeto de vida e sua aplicação ao contexto brasileiro, representando avanços importantes no que tange aos conteúdos dos projetos de vida, sua estrutura e ao sistema de valores que os sustentam.

Uma vez feita a revisão teórica do principal construto desse trabalho, o projeto de vida, anunciamos que somos as primeiras pesquisadoras a fazer um estudo longitudinal para verificar a dinâmica dos projetos de vida sob uma intervenção com duração de três anos no

campo da educação em valores. Enfatizando que a necessidade de um estudo com esse caráter já havia sido comentada por Han (2015), antecipamos que o próximo capítulo será dedicado a clarificar aspectos do funcionamento psicológico que permitem o dinamismo entre a mudança e a conservação dos projetos de vida ao longo de sua construção.

CAPÍTULO 2

FUNCIONAMENTO PSICOLÓGICO E OS PROCESSOS DE CONSERVAÇÃO E