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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A CONSTRUÇÃO PSICOSSOCIAL DOS PROJETOS DE VIDA

1.2 Projetos de vida na juventude

O projeto de vida é um construto que pode ser estudado em diversas fases do desenvolvimento: da infância tardia até a senilidade. De fato, alguns pesquisadores têm concentrado esforços em desvendar como se constituem e se mantém projetos de vida na terceira idade (COLBY et al., 2018; ARANTES; PINHEIRO; AMANDO, 2019). Apesar disso, a juventude6 continua sendo o campo privilegiado de estudo, aglutinando a maioria das investigações sobre os projetos de vida.

Há razões em vários campos teóricos para considerar a juventude como o período privilegiado da construção dos projetos de vida. Do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, é nessa fase que os indivíduos estabelecem os recursos mentais necessários para criar representações complexas sobre o futuro, tais como: os raciocínios hipotético-dedutivos; o pensamento abstrato, que permite conjecturar sobre o real e o possível; a coordenação de múltiplas possibilidades de escolha; e a elaboração de teorias sobre si e sobre o mundo (INHELDER; PIAGET, 1976; MOSHMAN, 2005). Sendo estas habilidades recém- emergentes nesse período, a construção de projetos de vida só poderia ser empreendida a partir dele.

Outra razão situa-se na correspondência que a construção do projeto de vida estabelece com outro conceito importante das teorias de desenvolvimento: a identidade. Há muito tempo, teóricos como Erickson (1968) e Marcia (1980) consideram a juventude como um período de autodescoberta durante o qual os jovens buscam respostas para questões sobre a vida, os relacionamentos e seu papel na sociedade. Esses teóricos defendem que é nesse momento que as pessoas começam a dedicar-se a sistemas de crença que refletem propósitos

6 Embora o termo adolescência seja mais comumente usado nos estudos em psicologia, neste trabalho adotaremos o termo juventude por ser um conceito mais amplo e menos delimitado do ponto de vista etário (FREITAS, 2005). Para uma discussão mais aprofundada sobre essa diferenciação, vide Danza (2014).

consistentes. No entanto, situados em um paradigma que compreende a juventude como um período de turbulências, eles defendem que tanto o projeto de vida quanto a identidade são tarefas críticas do desenvolvimento. Divergindo sobre esse argumento, mas concordando que a identidade é um aspecto integrante do projeto de vida (ERICKSON, 1968; SCHWARTS, 2001; DAMON; MENON; BRONK, 2003), os teóricos atuais têm superado a ideia de que o desenvolvimento da identidade dos jovens é motivado pela necessidade de serem estimados pelos outros e por motivos autocentrados, defendendo que ela também incorpora futuras esperanças, desejos, sonhos e as futuras contribuições que desejam fazer para o mundo (DAMON, 2009; BUNDICK; YEAGER, 2009; BUNDICK; JOHNSON; YEAGER, 2012). Sobre isso, Bundick (2011) chegou a afirmar que o projeto de vida é um componente predominante da identidade. Para além dessas questões, nos entusiasma saber que há estudos avançando na compreensão das relações entre os projetos de vida e a identidade, como o desenvolvido por Burrow, O’Dell e Hill (2010), que encontraram evidências de que é possível estabelecer correlações entre os projetos de vida e a identidade por meio de quatro perfis de projeto de vida que concordam com a teoria de Marcia (1966) sobre a formação da identidade: os bem-sucedidos (achieved) que exploram a identidade e estão comprometidos com um projeto de vida; os impedidos (foreclosed) que exploram a identidade mas não estão comprometidos com um projeto de vida; os descomprometidos (uncommitted) que não exploram a identidade e tampouco estão comprometidos com um projeto de vida e os difusos (difused) que exploram parcialmente a identidade e o compromisso com um projeto de vida.

Até mesmo as análises estatísticas sustentam que o projeto de vida é um fenômeno desenvolvimental, pois apontam que a idade é uma influência mais forte na articulação de um projeto do que seus suportes sociais. Esses achados não são surpreendentes, pois os jovens mais velhos têm habilidades cognitivas mais desenvolvidas e mais acesso a oportunidades e a um círculo amplo de grupos sociais (BUNDICK et al., 2012). Moran (2009) apresentou alguns dados que corroboram essa tese. O primeiro deles é que jovens em anos escolares mais avançados estavam 80% mais propensos a expressar todas as dimensões do projeto de vida do que os jovens em anos escolares menos avançados. No entanto, enquanto os jovens mais novos tendem a não ter projetos de vida, os mais velhos tendem a ter objetivos de vida autocentrados.

O conjunto desses achados de pesquisa sugere que o projeto de vida começa a se desenvolver na juventude, à medida que os jovens exploram possíveis metas de vida e consideram o que a torna significativa (KOSHY; MARIANO, 2011). Contudo, os estudos não afirmam que encontrar um projeto de vida na idade adulta seja uma tarefa impossível, apesar

de concluírem que a experiência subjetiva de iniciar um projeto de vida nessa fase da vida é desconfortável do ponto de vista psíquico e social. Esse ponto é apoiado por pesquisas que mostram que a busca por um projeto de vida está relacionada à satisfação com a vida na juventude e no início da idade adulta, mas não na meia idade, quando esta se relaciona mais com alcançar os objetivos propostos e ter produtividade social e ocupacional (BRONK et al., 2009).

Além dos pontos destacados até agora, os projetos de vida da juventude assumem uma relevância psíquica importante de ser mencionada. Considerado por Benson (2006) como um ativo do desenvolvimento, do ponto de vista psicológico, os projetos de vida parecem funcionar como um sistema de auto-orientação (McKNIGHT; KASHDAN, 2009) que garante um certo nível de coesão psicológica para os jovens (MARIANO; VAILLANT, 2011), facilitando seu trânsito em meio à diversidade e ao dinamismo cultural (MORAN, 2015). Além disso, ele tem sido significativamente correlacionado com indicadores de crescimento pessoal, autorrealização, satisfação com a vida e bem-estar psicológico (MALIN et al., 2013), fornecendo foco e motivação e evitando o tédio (KOSHY; MARIANO, 2011).

Também não podemos deixar de mencionar o papel que ele cumpre na formação da identidade moral (COLBY; DAMON, 1992; DAMON, 2004), que é formada quando uma pessoa decide que o tipo de pessoa que deseja ser depende de uma crença ou valor moral, tal como a necessidade de ser justo, generoso ou honesto, por exemplo. Esses valores, assim como o conjunto de sentimentos, pensamentos, crenças e objetivos que deles derivam, imbricam-se fortemente na construção do projeto de vida, e compõem um sistema que revela a identidade moral dos jovens. É por essa razão que qualquer prática interventiva que vise a contribuir para a construção dos projetos de vida dos jovens deve enfatizar a construção da identidade moral, a fim de que seus projetos estabeleçam uma continuidade com esses valores, sendo a verdadeira expressão de uma conduta moral.

Ainda sobre isso, Colby e Damon (1992) descobriram que pessoas que se definem em termos morais tendem a identificar problemas morais em eventos cotidianos, além de se verem implicados neles. É por isso que os projetos de vida contribuem não apenas para o desenvolvimento positivo dos jovens como também para o desenvolvimento da sociedade (DAMON, MENON, BRONK, 2003; MALIN et al., 2013), sendo um modo privilegiado de transformar a cultura a fim de que ela se aproxime de forma mais ajustada ao que se deseja para o futuro.

Contudo, em estudo feito por Malin et al. (2013), poucos jovens descreveram ter oportunidades de agir de acordo com suas preocupações empáticas e, consequentemente, suas

intenções sociais reduziram quando surgiram outros interesses. Resultados parecidos foram encontrados com jovens brasileiros que apresentaram um acentuado sentimento de impotência com relação ao seu desejo de transformar aspectos do mundo que não os agrada, sendo que a maioria deles acreditava que o fator idade contribuía para a falta de oportunidades (DANZA; ARANTES, 2019). É evidente que algumas limitações em termos de atuação decorrem da faixa etária dos jovens e da consequente falta de conhecimentos específicos para contribuir com a solução de problemas concretos. Contudo, na pesquisa realizada por Damon, Liauw e Malin (2017), os jovens encontraram maneiras de conquistar seus objetivos sociais que não eram limitadas por sua idade. Os três principais caminhos adotados foram: 1) acesso à tecnologia barata; 2) programas extracurriculares; e 3) escrita. De fato, o acesso à internet abriu novas possibilidades para os jovens se engajarem em atividades pró-sociais. Alguns descreveram usar as mídias sociais para defender questões ou se envolver com outras pessoas que compartilham suas preocupações sociais. Inclusive vários entrevistados que defenderam a importância da inovação para melhorar a sociedade relacionaram essa crença ao seu interesse por tecnologias. Outros apostaram nas atividades extracurriculares oferecidas por suas escolas e que visam a engajar os jovens em atividades de apoio à sociedade. Houve também alguns jovens que descreveram a escrita como forma significativa de expressão e como uma maneira de se conectar, inspirar ou impactar os outros.

Ainda que essas formas não sejam necessariamente maneiras efetivas de contribuir para a transformação do mundo, reconhecemos que elas podem ter repercussões para a formação da identidade moral dos jovens e que têm potencial para mantê-los interessados nessas causas até alcançarem a idade adulta e integrarem esses objetivos em seus projetos de vida, criando formas mais assertivas de contribuir com a sociedade.

Corroborando essa ideia, o estudo de Bundick et al. (2012) revela que as esferas de preocupação dos jovens se expandem de si e da família para contextos cada vez mais amplos de indivíduos e organizações, sendo que em alguns casos atinge relações abstratas com a humanidade ou com a sustentabilidade. Esses dados geram a esperança de que tais preocupações se consolidem em projetos de vida (MORAN, 2014) capazes de transformá-las.

Outra observação importante se refere ao fato de que os projetos de vida de interesse social não dependem de nenhuma disposição de caráter preexistente. Ou seja, nem sempre eles surgem de uma intenção empática ou interesse social anterior à construção do projeto. Pelo contrário, muitas vezes, é o engajamento em ações de interesse social que geram a consolidação de tendências a valores morais ou até mesmo à sua aquisição (DAMON, 2009). Em contraste com os resultados de estudos que revelaram que uma grande parcela dos jovens

trata as questões relacionadas ao futuro com indiferença, demonstrando pouco entusiasmo até mesmo em suas atividades diárias (DAMON, 2009; PINHEIRO, 2013; DANZA, 2014), apostamos que as tarefas estudantis podem ganhar significados mais profundos se estiverem relacionadas aos meios de transformação daquilo que os incomoda no mundo.

Obviamente temos que ter em mente que para alguns jovens o reconhecimento dos caminhos que podem levá-los a encontrar um sentido para a vida, que possa ser promulgado como um projeto de vida, leva um tempo mais estendido. No entanto, queremos ressaltar que essa indiferença parece-nos ter, como precursores, a ausência de reflexões sobre si mesmos e sobre o mundo, o que acarreta em impactos diretos na formação da identidade. Está claro que para se alcançar o autoconhecimento necessário para estabelecer um projeto de vida que promova satisfação e ainda contribua com os interesses coletivos, há que se percorrer um longo e, por vezes, difícil trajeto. Além disso, muitos jovens não têm êxito na integração do autoconhecimento com a criação de seu projeto de vida, alimentando ambições idealizadas que possuem pouca ou nenhuma relação com suas possibilidades reais (DAMON, 2009) ou padecendo com o sentimento de incerteza, que geralmente provém da variabilidade ambiental e da instabilidade de seus apoios sociais (MORAN, 2014).

Para combater esses sintomas da falta de reflexões sobre o futuro, consideramos que devemos envolver ativamente os jovens em torno do processo de construção do projeto de vida, a fim de que ele forneça uma estrutura tanto organizacional quanto motivacional para suas escolhas, comportamentos e formação da identidade (DAMON, 2009).

Assim, mesmo que a busca por um projeto de vida seja um processo absolutamente voluntário, automotivado e indelegável (BRONK et al., 2009), acreditamos que é dever dos educadores e dos teóricos da psicologia e da sociologia da juventude anunciar quais são as expectativas que temos para os jovens enquanto membros efetivos – e não futuros membros – da sociedade. Para isso, devemos ofertar-lhes oportunidades de engajamento e apoios, a fim de que eles rompam a crença na falta de oportunidades e criem meios de ação. Nesse sentido, defendemos que os programas e as políticas públicas prepararem os jovens para explorar os papéis que possam assumir na sociedade, fortaleçam seu compromisso com seus propósitos e ampliem o escopo de sua contribuição (BRONK, 2012; MALIN et al., 2014).

Por essas razões, apostamos que as pesquisas no campo dos projetos de vida devem se concentrar em avaliar o efeito de intervenções pedagógicas na construção dos projetos de vida dos jovens, em um período de tempo suficiente para que ocorressem mudanças que expressassem transformações em suas formas de conceber a si mesmos e seu papel no mundo. Tendo em vista nossa opção por esse recorte de pesquisa, nas próximas páginas nos

dedicaremos a traçar um panorama geral dos estudos até agora desenvolvidos, situando qual é a contribuição que nosso estudo almeja oferecer para o construto dos projetos de vida na juventude.