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4 ETIQUETAGEM E FOLKSONOMIA: A INSURGÊNCIA DO NOVO

Nos últimos anos, foram desenvolvidas novas ferramentas na plataforma web 2.0, com destaque para aquelas direcionadas à organização dos conteúdos dos recursos digitais pelos próprios usuários da rede. Esta nova abordagem tem recebido diferentes designações que guardam em si similaridades e diferenças em função do seu uso ou mesmo significado, como, etiquetagem (tagging), marcação social (social tagging) e folksonomia.

Essas etiquetagens foram criadas por Thomas Vander Wal como complemento dos sistemas tradicionais de classificação taxonômica e foram usadas pela primeira vez por sites de redes sociais, como Flickr e YouTube. Para Wal (2005), folksonomia42 é o resultado da

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Folksonomia tem sua origem em um neologismo criado por Thomas Vander Wal, a partir da junção do termo folk (povo, pessoas) com nomia (lei ou regra).

atribuição livre e pessoal de etiquetas a informações ou objetos, em um ambiente social compartilhado, visando à sua recuperação.

No Brasil, um dos primeiros trabalhos sobre o tema foi desenvolvido pelas pesquisadoras Maria Elisabete Catarino e Ana Alice Baptista (2007), que destacam três fatores essenciais da folksonomia: 1) é resultado de uma indexação livre do próprio usuário do recurso; 2) objetiva a recuperação a posteriori da informação e 3) é desenvolvida num ambiente aberto que possibilita o compartilhamento e, até, a sua construção conjunta. Assim, folksonomia é o resultado da etiquetagem dos recursos da Web num ambiente social compartilhado pelos próprios usuários da informação visando a sua recuperação.

Vob (2007) afirma que a etiquetagem tem sido apontada como uma nova organização do conhecimento que difere das tradicionais, por ser uma forma popular de indexação dos recursos da Web. Atribui à visibilidade instantânea, o incentivo para a etiquetagem e compartilhamento das palavras-chave pelos usuários, mas recomenda averiguar em quais circunstâncias pode ser necessário o controle do vocabulário e das relações. Para o autor, a principal característica dos sistemas de etiquetagem é a sua interface: “A etiquetagem colaborativa não é a sucessora de indexação tradicional nem uma tendência de curto prazo, mas (...) um catalisador para a melhoria e inovação na indexação”.

Na visão de Cairns (2011), estes princípios socialmente focados da Web 2.0 estão redefinindo a interação entre e com um número crescente de museus, suas coleções digitais e seus públicos. Na atualidade, os museus convidam seus visitantes para etiquetar digitalmente com palavras-chave seus objetos online e o conjunto destas etiquetas classificadas pelos usuários é conhecido como folksonomia e destina-se a colaboração social na rede.

Tomemos o exemplo dos “nomes vulgares”, que são os nomes com os quais o “vulgo” classifica as espécies vivas. Como já havia constatado Keith Thomas em seu livro clássico O homem e o mundo natural (THOMAS, 1988), também encontramos no Jardim Botânico do Rio “designações pitorescas de plantas, com suas fortes conotações visuais, emocionais e humanas” (p.97). Algumas são nomes bíblicos ou religiosos, herança do nosso passado católico, como a coroa-de-cristo (Euphorbia milii), a lágrima-de-nossa-senhora (Coix lagrima-jobi) e a espada-de-são-jorge (Sansevieria trifasciata). Muitas fazem referência a animais, como a ave-do-paraíso (Strelitzia reginae), o dente-de-cachorro (Smilax rufescens) e o olho-de-boi (Dimocarpus longan). Colaboram, na constituição desse sistema de classificação “vulgar”, os sentidos (chichá-fedorento, Sterculia foetida; pau-amargoso, Quassia amara), as semelhanças com o corpo humano (cabeluda, Plinia glomerata; comigo-ninguém-pode, Dieffenbachia picta) ou a itens de vestuário (bordão-de-velho, Abarema

cochliocarpa; chapéu-de-couro, Echinodorus macrophyllus) e a procedência ou origem biogeográfica da espécie (cravo-da-índia, Syzygium aromaticum; guatambú-do-cerrado, Aspidosperma macrocarpon). Há ainda “os velhos nomes vernáculos” que, depois do século XIX, passaram a ser vistos “com maus olhos por serem considerados excessivamente grosseiros” (THOMAS, 1988, p.101), tal como cocô-de-cotia (Acioa guianensis).

Como um processo colaborativo, social por natureza (HUANG & CHUANG, 2009), sem estrutura hierárquica (CAIRNS, 2011), categorizado de baixo para cima (WAL, 2007), não possuem uma organização prévia, não são controladas centralmente e apresentam informações sobrepostas e ambíguas. Retomemos os nomes vulgares das plantas do Jardim Botânico em contraposição à taxonomia científica. Há espécies associadas a mais de um nome vulgar (Bauhinia purpurea: unha-de-boi ou pata-de-vaca; Cespedesia spathulata: imburana-de-cheiro ou malafaia); há nomes vulgares que se referem a mais de uma espécie, muitas vezes de famílias diferentes (murta: Acosmium lentiscifolium ou Eugenia sprengelii; cedro: Cedrela fissilis ou Poupartia amazonica) e não são raros os nomes que cubram todo um gênero (açoita-cavalo, pata-de-vaca).

Esta abordagem colaborativa da informação difere das classificações formais de cima para baixo de objetos de museus. Na classificação e identificação dos seres vivos e objetos, as estruturas taxonômicas tradicionais, como por exemplo no Systema Naturae de Carolus Linneaus, são constituídas de linhas hierárquicas e em árvore, em grupos criados com base na percepção das semelhanças e diferenças e suas relações, e na sua articulação linguística em afirmações gerais sobre as classes de objetos que buscam, em última instância, a universalização das suas regras. Neste sentido, um sistema de classificação constitui-se num conjunto articulado de regras e regulamentos pelos quais os objetos são agrupados em relações definidas, de forma a facilitar a recuperação de informações (SOKAL, 1974 apud CAIRNS, 2011).

A “naturalização” do ato de classificar é uma consequência da necessidade de criar e se apropriar de referências que funcionem como uma bússola no mundo. Como afirma Pombo (1998, p.19), “Elas constituem os pontos estáveis que nos impedem de rodopiar sem solo, perdidos no inconforto do inominável”. Contudo, na qualidade de "códigos ordenadores”, como evidenciado por Foucault (2007, p.18) e referendado por Pombo (1998, p.20), as classificações são solos epistêmicos “onde o olhar minucioso, descritivo, hierarquizador e relacional que torna possível a constituição de todos os saberes encontra o seu próprio princípio de instituição”. Assim, delimitando fronteiras epistemológicas para configurar seus objetos de pesquisa, a classificação tradicional dos museus agrupa, a partir de estruturas

hierárquicas de conhecimento, os objetos segundo seus assuntos, temas ou atributos simbólicos.

O final do século XVII marca, segundo Keith Thomas (1988, p.100), o início da hostilidade da comunidade científica inglesa em relação à “doutrina das assinaturas”, ou seja, a crença bem documentada nos nomes vulgares e na folksonomia botânica de que “toda planta tinha um uso humano e que sua cor, forma e textura seriam destinadas a dar alguma indicação externa desse uso”, e o autor cita exemplos como “as ervas sarapintadas curassem manchas”, “as amarelas sanassem a icterícia” ou “a língua-de-cobra fosse benéfica para picadas desse réptil”. Desta forma, o que antes era “natural” no ato de classificar assume contornos específicos para configurar aprioristicamente uma forma codificada de ordenação, política e social, que recorta o real e insere seus fragmentos em modelos “mentais” a serem disseminados na sociedade.

As novas condições de geração de informações pelo compartilhamento online, pela negociação de conceitos e pela apreciação social de diversos tipos de conteúdos através da plataforma e ferramentas da Web 2.0, fazem da folksonomia um instrumento contemporâneo de classificação e organização das informações, com forte característica social, na medida que esta permite a formação de grupos de interesse em comum que se fortalecem em identidades constituídas socialmente (REIS, 2012, p.57) e, nos museus, possibilita a representação destes grupos no âmbito das atribuições simbólicas conferidas aos objetos das coleções.

Se a recuperação da informação lógica e linear é uma característica das taxonomias formais, nas quais as classificações de cima para baixo informam as propriedades dos que estão abaixo, as folksonomias são inerentemente sociais e relacionais. Assim, grande parte do valor que os museus podem obter a partir de sua integração nos bancos de dados online, advém da compreensão do público pela reflexividade de sua atuação nas redes. Segundo Cairns (2011), a sua incorporação junto aos sistemas de classificação tradicional do museu pode, não somente ampliar os termos para recuperação da informação ou do objeto, mas fomentar o uso da linguagem na construção de valor e sentido do patrimônio. Assim, em um ambiente interativo e colaborativo, os visitantes têm a oportunidade de fazer uso social da linguagem através de criação ou alteração de etiquetas digitais associadas a objetos, gerando novos metadados que representam conteúdos diversos, os quais podem ser usados no acesso interno e externo a coleção (CAIRNS, 2011).

Na visão da autora, os principais esquemas de classificação adotados pelos museus, utilizam a abordagem politética43 e facetada na estruturação de suas taxonomias. Motivo pelo qual, a informação em museus deve evidenciar “as relações entre os objetos de museu e grupos de objetos com base em seus contextos sociais e na esfera da atividade humana com a qual os objetos estão associados" (2011). O caráter político e ideológico das decisões do curador na aquisição, classificação e exposição de objetos tem implicações significativas para a leitura contextual do objeto e, consequentemente, na facilidade com que os objetos de coleção podem ser localizados. Apesar de serem de origens diversas, estes são classificados em novos quadros de significado baseados em um vocabulário pré-determinado para atender às estratégias da instituição. Desta forma, a polissemia dos objetos, com suas mais diversas interpretações, se dobra as decisões institucionais, ainda que esses objetos estejam em várias interseções nas chaves de classificação (CAIRNS, 2011, ALBERTI, 2005).

Por outro lado, os visitantes de museus trazem consigo as suas próprias interpretações dos objetos, lendo-os dentro do contexto relacional de suas experiências, uma vez que são "agentes autônomos com suas próprias agendas" (ALBERTI, 2005). E neste sentido, Alberti (2005) e Cairns (2011), consideram os objetos catalisadores de uma série de relações, que podem ser refletidas através das práticas de etiquetagem e folksonomia.