• Nenhum resultado encontrado

3 ABORDAGEM JUDICIÁRIA NEOINSTITUCIONALISTA

4 PREMISSAS CONCEITUAIS DA JUDICIALIZAÇÃO: DIREITO À SAÚDE, SAÚDE E SAÚDE COLETIVA

4.2 SAÚDE E SAÚDE COLETIVA: ALGUMAS APROXIMAÇÕES

4.2.5 A evidência científica como limite móvel para as práticas em saúde

A literatura examinada até o momento é inequívoca quanto ao dinamismo do conceito de saúde208, historicamente situado, sobretudo pela limitação do conhecimento disponível em uma determinada sociedade. Ademais, confirmou-se que o direito à saúde não significa acesso a qualquer prática de saúde, mas sim àquelas que efetivamente promovam o bem-estar ou estejam aptas a sanar os agravos à saúde, conforme os objetivos de promoção, proteção e recuperação.

Entretanto, os limites – geralmente estipulados pelo Estado-regulador – entre as ações e serviços de saúde que alcançam fins satisfatórios e aqueles que são deletérios (ou indiferentes) à saúde, recordando-se da prevenção quaternária, são extremamente sutis em diversas ocasiões. Tanto fatores de ordem subjetiva quanto a superposição de interesses conflituosos podem tornar acirradas algumas decisões em saúde. Exemplo recente no panorama nacional foi a edição da Lei n.

desempenho de todas as funções da vida e desenvolvam seu máximo potencial (HEALTHY CITIES, 1998).

207

Aith (2009) inclui nesse rol ações e serviços de saúde propriamente ditos (vigilância em saúde, hospitais, atendimentos médicos etc.) como também ações e serviços que possam acarretar riscos à saúde (produção, distribuição e comercialização de bens, produtos e serviços, pesquisas etc.).

208 No âmbito jurídico, esse dinamismo é contemplado com o ―diritto vivente‖, mencionado na primeira

13.269/2016209, autorizando o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, em decorrência do forte apelo dos meios de comunicação de massa, ainda que sem a realização de pesquisas clínicas antecedentes ao registro sanitário.

Desta forma, o conceito de saúde individual e de saúde coletiva requer a identificação de um critério que vise à segurança do indivíduo e das populações contra intervenções que acentuem os riscos. Esse preceito tem sido identificado como a evidência científica disponível que viabiliza a probabilidade de saúde. A evidência consiste em um tipo de informação empírica que é relevante de alguma maneira para uma investigação (LEWIS, 2003)210; no caso, a informação empírica resultante de métodos científicos.

O conceito de prática baseada em evidências científicas está bem estabelecido em diversas disciplinas, incluindo Psicologia, Enfermagem etc.; por isso, seria compreensível referir a ―saúde baseada em evidências‖. Todavia, foi na medicina que essa ferramenta melhor se desenvolveu (BROWNSON; FIELDING; MAYLAHN, 2009). Quanto a isto, a doutrina da medicina baseada em evidências (MBE) foi formalmente introduzida em 1992 pelo trabalho seminal de Cochrane (1972), que observou que muitos tratamentos médicos não possuíam eficácia científica. No entanto, suas origens filosóficas estão em Paris de meados do século XIX (SACKETT et al., 1996)211.

Um dos principais teóricos a respeito da ―medicina baseada em evidência‖ é Sackett (1997), para quem a medicina baseada em evidências é ―the conscientious, explicit, and judicious use of current best evidence in making decisions about the care of individual patients‖212

. A prática de medicina baseada em evidências significa integrar conhecimentos clínicos individuais (resultantes da proficiência e da

209

Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal, em sede liminar, suspendeu a eficácia de referida lei, na ação direta de inconstitucionalidade n. 5501, ainda pendente de julgamento final (BRASIL, 2017l).

210

Parkhurst (2017) afirma que o termo "evidência" pode se referir a muitas coisas, que vão do conhecimento tácito e da experiência pessoal a descobertas mais sistemáticas de investigações profissionais organizadas. Esse mesmo autor (2017) reconhece que a utilidade da evidência não é exatamente um fenômeno novo, apontando influências da Antiguidade Clássica até, mais precisamente, a década de 50, refletida no trabalho do cientista político norteamericano Harold Lasswell, que trabalhou para identificar os papéis que a pesquisa pode desempenhar no enfrentamento de problemas políticos

211

Para aprofundamento sobre a trajetória histórica do tema: Mulrow e Lohr (2001) e Metzdorff (2013).

212

Sugestão de tradução: o uso consciencioso, explícito e judicioso das melhores evidências atuais na tomada de decisões sobre o atendimento de pacientes individuais.

experiência prática) com a melhor evidência clínica externa disponível de pesquisa sistemática, sem prejuízo dos valores do paciente (SACKETT, 1997).

Denizar Araújo (2012) enumera as seguintes etapas de construção de conhecimento com base na medicina de evidências científicas:

a) Formular uma questão clínica (tipo de paciente/tipo de intervenção/tipo de desfecho);

b) Pesquisar sistematicamente a melhor evidência disponível na literatura científica;

c) Analisar criticamente a evidência científica quanto a sua validade e aplicabilidade clínica e gerar o sumário de forma objetiva e pragmática; d) Integrar essa análise crítica com a experiência clínica e com a

individualidade do paciente quanto a sua biologia e seus valores; e) Avaliar seu desempenho.

Esta abordagem, portanto, requer novas habilidades, como a pesquisa eficiente da literatura (crescente em progressão geométrica), uma compreensão dos tipos de evidência na avaliação da literatura clínica e uma sensibilidade para apurar os valores e as características do paciente. Na expressão de Brownson, Fielding e Maylahn (2009, p.177), ―a complex cycle of observation, theory, and experiment‖213

. A evidência científica é igualmente aplicável ao conceito de saúde coletiva. Guardadas as peculiaridades, a evidência, neste âmbito, é toda forma de dado, especialmente epidemiológico (dados quantitativos) ou resultante de avaliação de programas ou políticas públicas (dados qualitativos), que serve de base para a tomada de decisões em saúde coletiva (BROWNSON; FIELDING; MAYLAHN, 2009)214. Assim, a evidência na saúde coletiva difere da evidência na saúde individual, basicamente, pelo tipo e volume de informações, pelos projetos de estudo utilizados para informar pesquisas e práticas, pela configuração ou o contexto em que a intervenção é aplicada e pelo treinamento e certificação de profissionais (BROWNSON; FIELDING; MAYLAHN, 2009).

213

Sugestão de tradução: um complexo ciclo de observação, teoria e experiência.

214

Brownson et al. (2009) exemplificam que a evidência quantitativa pode assumir várias formas, que vão desde informações científicas em periódicos revisados por pares, até dados de sistemas de vigilância de saúde pública, avaliações de programas ou políticas individuais; já a evidência qualitativa é exemplificada por observações não numéricas, coletadas por métodos como observação participante, entrevistas em grupo ou grupos focais.

De todo modo, sem embargo de consistir em um instrumento importante para orientar as práticas clínicas e as Políticas Públicas, a medicina baseada em evidência científica não é um ―cookbook medicine‖215

(SACKETT et al., 1996, p.72). A evidência é imperfeita216 e seus adeptos necessitar buscar a melhor evidência científica disponível e não a melhor evidência possível. Além disso, existe um fosso considerável entre o que a pesquisa mostra que é efetivo e a incorporação na prática clínica ou nas Políticas Públicas, bem como existem dificuldades dos formuladores de Políticas e dos profissionais individualmente em distinguirem a ―boa‖ da ―má‖ evidência sem sofrerem influências dos grupos de interesses.

Para Detels e Chuan Tan (2015), um dos principais problemas em saúde coletiva (espaço mais problemático do tema) tem sido traduzir os avanços das pesquisas científicas em práticas de saúde efetivas e em políticas no tempo hábil. Destarte, a formulação de Políticas baseadas em evidências tem sido em grande parte uma progressão incremental (BROWNSON et al., 2009), pois condiciona-se à disponibilidade da informação e à evolução da ciência. Ademais, Lewis (2003) reconhece haver uma aparente disjunção entre evidência e Política, haja vista serem baseadas em racionalidades distintas – compreensiva217 e incremental, respectivamente e afirma que a Política baseada em evidências é ―a technocratic wish in a political world‖218

(LEWIS, 2003, p.250).

Em extenso levantamento bibliográfico, Parkhurst (2017) identificou que, apesar da ubiquidade do conceito de evidência científica, há um crescente corpo acadêmico contrário à ideia de que as políticas sociais possam ser simplesmente baseadas em evidências científicas. Explica-se que a elaboração de Políticas Públicas não é o mesmo que a tomada de decisões técnicas, pois envolve trade- offs219 entre múltiplos valores sociais concorrentes e a complexidade desse

215

Sugestão de tradução: livro de receitas na Medicina.

216

Pereira (1995) traz uma série de vieses metodológicos (tendência ou fator que influencia o resultado da pesquisa ou sua interpretação, sobre um evento ou sua observação). Além do mais, outro argumento dessa imperfeição é que uma evidência científica atualmente favorável pode ser totalmente superada, adiante, por meio de novos estudos.

217

Que busca entender e explicar.

218

Sugestão de tradução: um desejo tecnocrático em um mundo político.

219

Em economia, expressão que define situação de escolha conflitante, isto é, quando uma ação econômica que visa à resolução de determinado problema acarreta, inevitavelmente, outros. Por exemplo, de acordo com as concepções keynesianas modernas, em determinadas circunstâncias a redução da taxa de desemprego apenas poderá ser obtida com o aumento da taxa de inflação, existindo, portanto, um trade-off entre inflação e desemprego (TRADE-OFF, 1999, p.612).

processo costuma ser ignorada pela lógica da ―melhor solução‖ das abordagens científicas.

Neste sentido, Kemm (2006) salienta a compreensão insuficiente (pelas abordagens científicas) sobre a natureza do processo político e as preocupações normativas inerentes à tomada de decisões políticas. Aqui, inclusive, há o aporte dos estudos neoinstitucionalistas (DURIC, 2011), pois as Políticas não são elaboradas no ―vazio institucional‖; a posição dos decisores na instituição e as regras subjacentes ao processo modulam as escolhas e condicionam preferências (LIMA, L.; MACHADO, C.; GERASSI, 2015).

Em perspectiva diversa, Parkhurst (2017) oferece um argumento conciliatório. Para o autor, uma Política Pública em saúde informada pela evidência científica tem como premissa a existência de múltiplas preocupações sociais e, provavelmente, respectivas bases de evidências relevantes para cada uma. Ao invés de ser apolítico, o apelo à evidência, ou a formas particulares de evidência, pode ser decididamente político promovendo uma escolha de fato entre os valores concorrentes (PARKHURST, 2017). O caráter político desse processo decisório corresponde à priorização dos resultados igualmente válidos resultantes da evidência científica. Neste aspecto, a Lei n. 8.080/90, aderindo ao uso político do resultado da medicina baseada em evidências, traz critérios para ordenação e julgamento político da evidência220.

A importância prática do uso de evidências é percebida cotidianamente. Para qualquer decisão e para qualquer ação, o ser humano inclina-se a buscar informações que indiquem o alcance dos objetivos ou informem a seleção de estratégias possíveis. A evidência é, por definição, o que dizem essas informações,

ainda que não haja consenso quanto aos objetivos perseguidos.

Consequentemente, na elaboração de Políticas Públicas, a evidência pode ser útil para qualquer decisão, desde aquelas mais corriqueiras, como a mudança do tempo dos semáforos, para aquelas mais profundas como a declaração de guerra (PARKHURST, 2017). Nota-se, inclusive, uma expansão do uso generalizado da

220 Art. 19-O, parágrafo único: ―Em qualquer caso, os medicamentos ou produtos de que trata

o caput deste artigo serão aqueles avaliados quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e custo-

efetividade para as diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde de que trata o

protocolo‖ (BRASIL, 1990c) (Grifos nossos). Em seguida, o art. 19-Q, §2º: § 2o

―O relatório da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS levará em consideração,

necessariamente: I – as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão

bandeira da ―‗evidence-based policymaking‖221

(EBP) nas legislações, como forma de sanar a lacuna entre pesquisa (academia) e Política.

Contudo, três cautelas são necessárias frente à sedução da evidência científica em seu slogan ―what works‖222

(PARKHURST, 2017, p.18). Inicialmente, a evidência por si só pode não representar a desejabilidade social do que está sendo medido, lembrando-se que, no conceito de saúde, há o componente da aceitabilidade. Em segundo, a linguagem ―what works‖ assume uma generalidade de efeito que, embora comum em medicina clínica, é muito menos comum em outras intervenções relevantes para políticas que devem singularizar as populações-alvo (PARKHURST, 2017). Em terceiro, mesmo na área da medicina, o estudo de doenças raras, em que a população acometida é bastante diminuta, e de doenças de longa latência, o rigor do nível de evidência precisa ser compatibilizado com as limitações da pesquisa.

Assim, é necessário compreender e explorar as origens políticas do viés técnico e do viés de problemas dentro das configurações de formulação de Políticas. Parkhurst (2017) recomenda essa parcimônia no uso de evidências científicas para a formação de uma governança da evidência, em que a fidelidade científica acompanha a representação democrática e o ―bom uso de evidências‖ permite alcançar mudanças sustentáveis.

Em linhas finais, este capítulo buscou em uma perspectiva transversal223 analisar uma das riquezas medulares do ser humano que é a saúde. Neste sentido, foram apresentados conceitos de saúde individual, saúde coletiva e de direito à saúde, os quais nortearão a análise empírica proposta neste trabalho. A próxima etapa teórica consiste no exame do sistema público de saúde brasileiro, seus princípios e diretrizes. Afinal, consoante estabelecido no capítulo anterior, as regras institucionais condicionam as preferências e a ação dos indivíduos, bem como modelam a ação política. A forma de organização dos entes políticos no esquema federativo, de distribuição de responsabilidades para promover a saúde coletiva e individual e o papel do Município neste contexto de respaldo constitucional é indispensável para discutir a judicialização da saúde pública.

221

Sugestão de tradução: formulação de políticas baseada em evidências.

222

Sugestão de tradução: o que funciona.

223

Alexandre Elias (2008) e Aith (2009) defendem que a transversalidade entre campos do conhecimento para os estudos sobre o direito à saúde é garantia de integridade do objeto jurídico.