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6 A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA

6.1 SENTIDOS E ANTECEDENTES DA JUDICIALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Os debates, estudos e experiências sobre a expansão do Judiciário nos processos decisórios elementares de democracias contemporâneas tornaram-se pauta candente entre profissionais do Direito e da Saúde, academias, gestores públicos e sociedade civil de modo geral, haja vista sua relevância teórica e prática. No entanto, qualquer proposta científica de compreensão do fenômeno designado de ―judicialização de Políticas Públicas‖ requer o estabelecimento dos seus antecedentes e das suas condições facilitadoras, bem ainda dos sentidos aplicáveis à expressão, dentre os quais se elegerá um corte temático.

Ernani Carvalho (2004) reconhece que a diversidade de análises sobre a judicialização de Políticas Públicas pode ser agrupada em duas perspectivas: a) ―normativa‖, centrada na predominância jurídica do catálogo de direitos fundamentais e na supremacia do texto constitucional; e b) ―analítica‖, cujo foco é o ambiente institucional de estruturação do sistema político. A primeira perspectiva reúne teorias conceitualistas; e a segunda, teorias funcionalistas (BRANDÃO, 2013). Por sua vez, Brandão (2013) reconhece a existência de uma terceira vertente que desenvolve explicações de natureza econômica292. Sem embargo da

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A análise econômica do Direito investiga, com o ferramental da Economia, o comportamento não mercadológico dos indivíduos frente às normas jurídicas, em uma perspectiva instrumental e consequencialista. Afastando-se a tradicional clivagem no conteúdo epistemológico entre Direito e Economia, a doutrina Law and Economics alicerçou o seu domínio nas áreas de temas como propriedade, contratos, responsabilidade civil e criminal, processo, família e Constituição (COASE, 1960; CALABRESI, 1968; STIGLER, 1992; POSNER, R., 2010; PORTO, 2013; TEIXEIRA, P.; SINAY; BORBA, 2014; MACKAAY; ROUSSEAU, 2015; COOTER; LEN, 2016). A teoria econômica e os métodos econométricos estão cada vez mais frequentes no exame da formação, da estrutura, dos processos e dos impactos do Direito e das instituições legais, em regra, voltados à eficiência de algum bem jurídico (otimização de alguma medida de valor, alcançando-se um resultado máximo de saída, output, com determinado valor de entrada, inputs). No que se refere à análise econômica do

complementaridade dessas perspectivas, esta pesquisa concentra-se na análise do ambiente institucional, valendo-se, igualmente, de elementos normativos, mas não optou pelo aprofundamento econômico, que demandaria reflexão e fundamentação teóricas distintas das demais.

Em linhas gerais, judicializar é ―transformar algo em uma forma de processo judicial‖ (VALLINDER, 1995, p.13)293

, culminando em uma decisão ou julgamento, com manejo de todas as técnicas, linguagem e repercussões próprias da seara jurídica. Essa atividade, que não ocasionaria maiores dilemas por ser tradicional função típica do Judiciário, desperta sérias controvérsias diante do que Vallinder (1995, p.13) chamou de ―infusion of judicial decision-making and of courtlike procedures into political arenas where they did not previously reside‖294

nas sociedades modernas, a qual, por ora, será denominado de judicialização de Políticas Públicas.

No plano conceitual, tangente às abordagens analíticas, conceituais e econômicas, Hirschl (2006, p.723) identifica três categorias amplas para o significado de judicialização de Políticas: a) ―the spread of legal discourse, jargon, rules, and procedures into the political sphere and policy making forums and processes‖; b) ―judicialization of public policy-making through ‗ordinary‘ administrative and judicial review‖; e c) ―the judicialization of ‗pure politics‘‖, isto é, ―the transfer to the courts of matters of an outright political nature and significance including core regime legitimacy and collective identity questions that define (and often divide) whole polities‖295

.

O primeiro sentido da judicialização – a ascendência do discurso legal sobre a esfera da Política – representa o nível mais abstrato do fenômeno, dada a necessidade sistêmica crescente de utilização de normas e de padrões de

Judiciário, destacam-se os trabalhos de Armando Pinheiro (2003, 2005, 2009), Andonova e Arruñada (2005), Yeung e Azevedo (2010, 2012). No tema em particular desta pesquisa, ressaltam-se: Holmes e Sunstein (2000), Gustavo Amaral (2001), Galdino (2005), Leal (2010), Gustavo Amaral e Danielle Melo (2013), Scaff (2013), Timm (2013), sobretudo quanto à discussão a respeito das limitações orçamentárias.

293 No original: ―turning something into a form of judicial process‖ (VALLINDER, 1995, p.13). 294

Sugestão de tradução: infusão de decisões e procedimentos judiciais em arenas políticas onde eles não residiam anteriormente.

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Sugestão de tradução: a) a expansão do discurso legal, jargões, regras e procedimentos para a esfera política e para os fóruns de decisões políticas; a) judicialização das políticas públicas por meio do controle de constitucionalidade ou das revisões dos atos administrativos; c) judicialização da política pura, [isto é], que seria a transferência às Cortes de questões de natureza política e de grande importância para a sociedade, incluindo questões sobre legitimidade do regime político e sobre identidade coletiva que definem (ou dividem) toda a política. As duas primeiras categorias também são encontradas em Tate (1995).

comportamento para segurança e legitimidade dos itinerários administrativos e políticos. De fato, a complexidade, a pluralidade e as contingências das sociedades contemporâneas, com inúmeras prerrogativas do cidadão e obrigações do Estado, ensejam a captura das relações sociais, econômicas, políticas e culturais pelo Direito (TATE, 1995; HIRSCHL, 2006). Mais que isso, a expressão de bens relevantes à vida humana e, no âmbito coletivo, ao bem comum, a exemplo dos direitos fundamentais, evidencia uma amálgama insolúvel entre os componentes jurídico e político na vida moderna.

O segundo conceito de judicialização é mais concreto que o anterior e consiste na participação do Judiciário, por meio de processos judiciais296, na determinação dos resultados de Políticas Públicas, principalmente com a jurisdição constituição ou judicial review297 e com a formação de jurisprudência sobre direitos fundamentais. Hirschl (2006, p.725) afirma que, enquanto a primeira forma de judicialização pode ser qualificada de ―judicialization of social relations‖298

, esta variação se relaciona com a justiça processual e a equidade nas tomadas de decisões, principalmente com a multiplicação de agências estatais, burocracias e novos direitos.

A terceira classe conceitual de judicialização da Política trata de questões amplas, situadas no nível da mega Política ou Política pura (HIRSCHL, 2006). São aquelas controvérsias nucleares do sistema político, envolvendo, por exemplo, o processo eleitoral, o planejamento macroeconômico, a segurança nacional, a legitimidade de regime político, a formação da identidade coletiva, bem como outros temas relativos à teoria constitucional, anteriormente excluídos da apreciação do Judiciário por serem redutos exclusivos de outros poderes estatais (―doutrina das questões políticas‖) (HIRSCHL, 2004b). A diferença entre essas duas últimas faces da judicialização é qualitativa, envolvendo, de um lado, as questões de equidade e, do outro, os dilemas morais substantivos ou dilemas políticos ímpares que a nação precisa enfrentar e os quais são levados ao Judiciário em um processo. Esta

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Considerando que o Judiciário é provocado a agir, por meio de um processo, Hirschl (2006, p.725) chama esta variante de ―judicialization from below‖.

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Última palavra sobre a interpretação do direito, inclusive em face de lei inconstitucional (controle de constitucionalidade). Para Barroso (2012), a jurisdição constitucional compreende o poder exercido por juízes e tribunais na aplicação direta da Constituição, no desempenho do controle de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público em geral e na interpretação do ordenamento infraconstitucional conforme a Constituição. Diferentemente, Brandão (2013) entende que a jurisdição constitucional envolve apenas o judicial review do controle de constitucionalidade. Neste trabalho, será acolhido o conceito de Barroso (2012).

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tendência a uma judicialização de âmbito macro é nomeada por Hirschl (2006, p.727) como juristocracy.

De outra parte, Vallinder (1995, p.16) considera existir apenas dois tipos de judicialização: ―from without‖299

, que é a atuação do Judiciário, mediante provocação de terceiro, na revisão de atos do Legislativo e do Executivo, com referência à efetividade da Constituição300; e a ―from within‖301, consistente na introdução ou expansão do ―judicial staff or judicial working methods‖302

na Administração Pública. Constata-se que essa classificação conceitual aproxima-se das ideias de Hirschl (2006), sendo que este último autor conseguiu apresentá-la de maneira mais detalhada.

A partir deste cenário, a expressão ―judicialização de Políticas‖303

intensificou- se no debate público (acadêmico ou não), com diversos usos e conotações, adquirindo uma polissemia, orbitária de sentidos normativos (aumento quantitativo no ingresso de demandas em juízo) a sentidos sociais e políticos (expansão do campo qualitativo da atuação judicial) – dimensão procedimental e substantiva, respectivamente, da atuação jurisdicional (MACIEL; KOERNER, 2002; DELDUQUE; MARQUES, S.; CIARLINI, 2013). É inegável que essa mudança na organização, na cultura jurídica e na função do Judiciário amealhou respostas diversas, muitas vezes perceptíveis nas definições expostas por alguns estudiosos.

Ilustrativamente, Barroso (2009, p.2), inspirado em Tate (1995) e Vallinder (1995), assevera que a judicialização de Políticas Públicas significa que ―questões de larga repercussão política e social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo‖. Assim, há ―uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade‖ (BARROSO, 2009b, p.2) e nos métodos de solução de conflitos.

Por sua vez, Verbicaro (2008, p.390) afirma que a judicialização de Políticas Públicas representa a ―institucionalização de um espaço público alternativo –

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Sugestão de tradução: de fora; de origem externa.

300

Para o autor (1995, p.15), esta modalidade é a mais frequente e, de certa forma, coloca o Judiciário em uma posição superior frente aos demais poderes.

301

Sugestão de tradução: de dentro; de origem interna.

302

Sugestão de tradução: aparato judicial ou métodos judiciais de trabalho. Exemplo disso são os tribunais administrativos, como os tribunais de contas e as comissões parlamentares de inquérito.

303

De acordo com estudos de Brandão (2013), a maioria dos autores usa, de forma intercambiável, as expressões ―expansão do Judiciário‖ e ―judicialização da Política‖.

complementar e não excludente às clássicas instituições político-representativas‖, caracterizada pelo incremento da atividade judicial em um contexto de expansão do Direito (essência, procedimentos e linguagem) sobre a Política e a sociedade contemporâneas. Isso reverbera diretamente no relacionamento entre Estado e sociedade civil, ―permitindo uma ampliação do acesso dos cidadãos às instâncias de poder por meio da abertura do Poder Judiciário às demandas individuais e coletivas‖ (VERBICARO, 2008, p.390)304.

Poderiam ser inventariados neste tópico diversos conceitos que, em maior ou menor medida, aproximam-se das formulações anteriores. Contudo, independente de antagonismos, o que fica claro é que a judicialização de Políticas Públicas salienta que a interpenetração entre Política e Direito é heterogênea. De fato, não há uniformidade entre os estudiosos do tema quanto: a) aos métodos e técnicas de investigação; b) aos pressupostos analíticos e categoriais de pesquisa e de investigação empírica; c) aos referenciais teóricos de coleta e de análise dos dados; d) ao grau e à escala de investigação (ASENSI, 2010).

Neste ponto, discutem-se os liames entre a judicialização e o ativismo judicial. Entretanto, Barroso (2009a) esclarece que são figuras distintas. A judicialização é um fato, um fenômeno que decorre de um modelo constitucional e de outros fatores adiante enunciados. Se há uma norma constitucional305 que autoriza levar ao Judiciário conflitos sobre temas estritamente jurídicos a normas propriamente ditas ou Políticas Públicas, que, em algum grau, violem ou ameacem de lesão direitos, ao juiz cabe conhecê-las e decidir o caso.

Por seu turno, o ativismo é uma postura, um modo criativo e expansivo de interpretar o Direito, pela potencialização do sentido e do alcance de suas normas para além da hermenêutica clássica (RAMOS, 2015; NUNES JUNIOR, A., 2016). São os principais exemplos: a) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; b) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, fundada em critérios menos rígidos de violação da Constituição; c) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público,

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No mesmo sentido: Salazar e Grou (2009), Barcellos (2011), Maria Célia Delduque, Silvia Marques e Álvaro Ciarlini (2013), dentre outros.

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Refere-se aqui ao artigo 5º, incisos XXXIV (são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder) e XXXV (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito) (BRASIL, 1988).

notadamente em matéria de Políticas Públicas (BARROSO, 2009b). Em linha diametral oposta, está a auto-contenção judicial, marcada pela atuação judicial com critérios rígidos e menos abrangentes de interpretação do texto constitucional, sobretudo nas áreas de típica atuação de outras funções estatais (BARROSO, 2009b; RAMOS, 2015).

Particularmente aos fins desta pesquisa, o enfoque será a judicialização, suas características e sentido institucional, sem cuidar necessariamente do ativismo, ou seja, dos nexos deliberados de atuação do magistrado quanto à forma expansiva da interpretação constitucional. Assim, a judicialização de Políticas Públicas, neste primeiro momento, apresenta-se como a atuação do Judiciário na solução de conflitos de morfologia plural, isto é, situações ou bens da vida relativos ao campo sanitário, educacional, moral, bioético, ambiental, da segurança pública, dentre outros objetos do conhecimento humano estruturáveis em Políticas Públicas, são questionados e traduzidos sob um modelo de solução de crises jurídicas, consoante aparato, escopo e procedimentos específicos do Judiciário no regime constitucional.

Por certo, o protagonismo do Judiciário não elide a integração das demais instituições essenciais à justiça, vez que a atuação do juiz não é, em regra, espontânea, mas provocada, seja pelo advogado particular (Ordem dos Advogados do Brasil), pelo promotor de justiça (Ministério Público), pelo defensor público (Defensoria Pública estaduais e da União) e pelos advogados públicos (Procuradorias estaduais, distrital e municipais e Advocacia da União306).

Diante desse giro conceitual, insta esclarecer que a temática da judicialização de Políticas Públicas não é exclusiva ao Brasil. Conquanto tenha se estabelecido como perspectiva teórica a partir da década de 1990 no Brasil, os estudos da judicialização da Política não são recentes em outros países, remontando o início do século XX, mormente entre os anglo-saxônicos (ASENSI, 2010). Tate e Vallinder (1995) traçam as características desse fenômeno global, a partir de pesquisa empírica comparada sobre a atuação do Judiciário nos Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, Canadá, Itália, França, Alemanha, Suécia, Países Baixos, Malta, Israel, Rússia, Filipinas, sudeste da Ásia e Namíbia, tendo como referência a expansão global do Judiciário com as técnicas de controle de constitucionalidade ―exportadas‖ dos Estados Unidos em seu modelo democrático.

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Nesta expressão, estão inclusos todos os órgãos de assistência judicial e extrajudicial da União e suas autarquias federais.

Hirschl (2006) cataloga a presença do fenômeno da judicialização da Política no sul da Europa, América Latina, Ásia, Canadá, Israel, Índia307, Nova Zelândia, África do Sul308 e Alemanha, decorrentes de reformas constitucionais que trouxeram uma dependência cada vez mais acelerada dos tribunais e dos meios judiciais para abordar as dificuldades morais fundamentais, as questões de Política Pública e as controvérsias políticas. Em outro trabalho, Hirschl (2004b) traz os resultados de uma extensa investigação empírica, comparando quatro países (Canadá, Nova Zelândia, Israel e África do Sul), com decisões das cortes constitucionais no período anterior e posterior à chamada ―revolução constitucional‖.

Cumpre advertir que, em cada país, a judicialização adquire suas singularidades, a rigor da maior ou menor abertura constitucional e de regime político, bem como da amplitude do catálogo de direitos e do design das instituições democráticas. Por isso, Flood e Gross (2014) identificaram tendências, por exemplo, de países com massivas quantidades de demandas individuais, como o Brasil, e outros com foco nas demandas coletivas, como a África do Sul.

No que diz respeito à judicialização das Políticas de Saúde ou, mais precisamente, do direito à saúde pública, Perlingeiro (2014) e Skaar e García-Godos (2016) ressaltam a presença do fenômeno em grande escala na América Latina309 (Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai, Colômbia, Equador, Venezuela, Bolívia, Peru, México e Brasil)310. Gloppen e Roseman (2011) assinalam a dramaticidade da judicialização da saúde na Colômbia e na Costa Rica, explicando que esses países foram os primeiros, na América Latina, a experimentar um grande número de pessoas reivindicando no Judiciário seu direito à saúde, no início da década de 1990, após a reforma constitucional. Em 2008, por exemplo, os tribunais da Colômbia receberam mais de 140 mil casos sobre direito de saúde e, em um julgamento histórico, o Tribunal Constitucional ordenou uma reestruturação radical do sistema de saúde (GLOPPEN; ROSEMAN, 2011).

307

Igualmente, destaca-se o trabalho de Parmar e Wahi (2011).

308

Igualmente, destaca-se o trabalho de Cooper (2011).

309

Igualmente, destaca-se o trabalho de Ottar Mæstad, Lise Rakner e Octavio Luiz Ferraz (2011). Outros trabalhos se dedicam ao fenômeno localizado: a) na Argentina: Bergallo (2011); b) no Chile: Couso e Hilbink (2011); c) na Colômbia: Yamin, Parra-Vera e Gianella (2011); d) na Bolívia: Castagnola e Pérez-Liñán (2011); e) no México: Arianna Sánchez, Beatriz Magaloni e Eric Magar (2011); f) na Costa Rica: Wilson (2011).

310

André Tavares (2012a) explica que esse papel do Judiciário tem crescido cada vez mais em países de modernidade tardia, que ainda não alcançaram na plenitude a realização de um Estado social mínimo, fazendo, assim, com que normas constitucionais não se tornem promessas inconsequentes e enganosas.

Já no Brasil, as primeiras manifestações da judicialização da saúde pública iniciaram-se na década de 1990, com pedidos de medicamentos antirretrovirais para o HIV/AIDS, tendo sido importante veículo para modificações no Sistema Único de Saúde (SUS) (VENTURA, 2003; SCHEFFER, 2009; PEPE et al., 2010; VENTURA et al., 2010; BALESTRA NETO, 2015). Quanto aos primeiros trabalhos nacionais de pesquisa empírica, Vianna e colaboradores (1999) realizaram estudos sobre as implicações do fenômeno no cenário de efetivação de direitos e implementação de Políticas Públicas. Já quanto à evolução quantitativa, de acordo com informações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2014b), tramitavam, em 2011, no Judiciário brasileiro cerca de 240 mil processos relacionados a alguma necessidade de prestação de serviço de saúde (pública ou suplementar), enquanto que, em 2014, este número aumentou para cerca de 392 mil.

Esse crescente número de processos judiciais e a própria inserção desse debate nas Cortes estão associados a um conjunto de antecedentes e de condições facilitadoras similares em quase todos os países acima mencionados. Brandão (2013) reúne essas circunstâncias em dois grupos: condições políticas e condições institucionais. As primeiras referem-se à forma de organização do Estado, ao regime político e ao sistema de governo; as segundas exprimem os elementos característicos do Judiciário e do ordenamento jurídico.

Capitaneando o primeiro bloco de condições, observa-se significativo consenso doutrinário de que há um vigoroso elo entre a afirmação da democracia, a partir da Segunda Grande Guerra, e a expansão contemporânea do Judiciário (TATE, 1995; ARANTES, 1999; CARVALHO, E., 2004; HIRSCHL 2004a; BARROSO, 2009b; CASTRO, I., 2012; BRANDÃO, 2013). Sadek (1999) pontua que o desenvolvimento dos Estados Democráticos com políticas voltadas para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos forçou alterações na engenharia institucional, culminando na transformação do Judiciário em um poder ativo na vida coletiva. Afinal, a implementação de regimes democráticos, após longos períodos de governos ditatoriais, por exemplo, na América Latina, no Leste europeu e na África do Sul, necessitou de um Judiciário forte para garantir os novos arranjos democráticos (BARBOZA; KOZICKI, 2012).

Nesse contexto democrático, a divisão vertical (federalismo) e horizontal (separação de poderes) do poder político tem sido concebida como ponto nodal de frequentes conflitos de atribuições entre as instituições estatais e de coordenação

entre as mesmas, geralmente convolados em litígios no Judiciário (TATE, 1995; CARVALHO, E., 2004). Brandão (2013) ainda destaca que as estruturas administrativas mais descentralizadas são fatores relevantes à judicialização de questões políticas, pois a judicialização dessa temática seria sensível ao fracionamento do poder.

Verbicaro (2008) complementa no sentido de que essa descentralização caminha com uma progressiva atividade normativa de cunho hipertrófico, paradoxalmente voltada a sanar a variedade de conflitos sociais, mas que não consegue se estabelecer no mesmo ritmo e forma. A autora (2008, p.400) elucida que a tentativa de solucionar os mais contingentes, antagônicos e nunca conciliáveis ―conflitos e aspectos da vida em sociedade, em vez de cumprir sua função de aumento da certeza e segurança jurídicas, resolve-se em um esvaziamento da eficácia da própria lei‖, com risco à coerência interna do ordenamento jurídico.

Essa situação é realçada na judicialização de Políticas de Saúde. Jorge (2017b) identifica no federalismo sanitário a existência de atos normativos de diferentes graus hierárquicos (decreto, portarias, resoluções) e sobreposição de normas, tornando mais difícil a compreensão das incumbências de cada ente político ou órgão público, bem como da norma incidente sobre o caso concreto.