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3 ABORDAGEM JUDICIÁRIA NEOINSTITUCIONALISTA

4 PREMISSAS CONCEITUAIS DA JUDICIALIZAÇÃO: DIREITO À SAÚDE, SAÚDE E SAÚDE COLETIVA

4.2 SAÚDE E SAÚDE COLETIVA: ALGUMAS APROXIMAÇÕES

4.2.3 Saúde coletiva: nível agregado da saúde individual?

A titularidade do direito à saúde tanto pode ser individual quanto, ao mesmo tempo, coletiva. Para cada perfil dessa titularidade, o objeto ―saúde‖ detém características próprias, bem como desdobramentos específicos na forma de atuação estatal. No que tange à judicialização do direito à saúde, essa temática é bastante discutida, o que justifica, por conseguinte, entender o significado e o conteúdo da saúde coletiva.

Inicialmente, cabe pontuar que existem vários trabalhos que propõem diferenciar saúde pública e saúde coletiva. Para Luz (2008), a saúde pública nasce com a missão de combater e prevenir doenças coletivas, ou mesmo individuais, as

190 Neste sentido, alguns autores ressaltam a essencialidade da participação popular na compreensão

quais, por contágio ou transmissão, podem ameaçar a organização social e a ordem pública. Já a saúde coletiva seria uma forma teórica diferenciada de compreender a saúde pública, pois inclui o ―social‖ como categoria analítica (NUNES, 1996; ALMEIDA FILHO; PAIM, 1999; CAMPOS, 2000). Apesar dessa distinção, esta pesquisa manterá em algumas passagens a referência a ―direito à saúde pública‖ por estar consagrada em várias normas, sem prejuízo de entendê-la em sua acepção mais atualizada191.

Assim, para Fernando e Ana Maria Lefèvre (2013), a saúde [individual] e a saúde coletiva formam um campo social de interações recíprocas e intensas de discursos. Esses autores identificam essas interações em cinco grupos. Primeiro, há um discurso médico-sanitário, em que predominam a Epidemiologia e a Biologia orientando os discursos sanitários na Sociologia, Antropologia, Psicologia, História, Educação, Linguística, Semiótica, Economia, Administração, Direito, Filosofia, informática e na própria religião (LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A., 2013). Segundo, há o discurso público-governamental, responsável por enunciar e implementar as Políticas Públicas de Saúde em todos os níveis federativos e com intersecções supranacionais (LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A., 2013). Terceiro, há o discurso mercantil, fundado no comércio de produtos e serviços de saúde, cada vez mais abrangente, inclusive na modalidade estética (LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A., 2013). Quarto, há o discurso místico e religioso (LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A., 2013). Finalmente, há o quinto discurso, correspondente ao senso comum das representações sociais cotidianas do indivíduo em sua compreensão a respeito do fenômeno saúde-doença (LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A., 2013).

É certo, por consequência, afirmar que a saúde coletiva está relacionada ao processo de saúde e de adoecimento em uma sociedade, o que revela, desde sua origem192, a forma com que o Estado gere os interesses de seus cidadãos (AYALA, 2012). Neste sentido e atualmente, a importância da saúde coletiva para o Estado é tão expressiva no Brasil que o Constituinte estabeleceu, no artigo 197 da Constituição Federal de 1988, que as ações e serviços de saúde são de relevância pública, por isso, ficam inteiramente sujeitos à regulamentação, fiscalização e

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No direito francês, há uma distinção entre ―droit de la santé‖ (direito da saúde) e ―droit à la santé‖ (direito à saúde). O primeiro corresponde à perspectiva sanitária geral de implantação do direito à saúde; o segundo é a perspectiva individual, direito subjetivo de pessoas e grupos (MENDES, V.L.; RIOS, 2017). Essa diferenciação não é aproveitada no direito brasileiro.

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controle pelo poder público, nos termos da lei, a quem cabe executá-los diretamente ou por terceiros, pessoas físicas ou jurídicas de direito privado (BRASIL, 1988).

Diversos modelos econométricos na Epidemiologia propõem a mensuração dos níveis coletivos de saúde a partir da mensuração do somatório dos estados individuais de saúde (ALMEIDA FILHO, 2000). Contudo, em uma visão crítica, os constructos supostos como expressão da saúde de sujeitos individuais (função, desempenho, qualidade de vida, bem-estar, felicidade etc.) nem sempre se harmonizam em um nível agregado. Almeida Filho (2000) esclarece que, mesmo considerando a hipótese de uma demonstração convincente da validade dessa transposição, o conceito de saúde coletiva ultrapassa a simples somatória das saúdes individuais. Então, o adjetivo ―coletiva‖ representa um nível específico de análise com suas próprias características e não necessariamente um nível de agregação (FRENK, 1992).

Porta (PUBLIC HEALTH, 2014) formula um conceito de saúde coletiva, que será adotado neste trabalho, o qual é composto de quatro dimensões. Para o autor, a saúde pública (ora entendida como coletiva) corresponde a:

a) A saúde de toda uma sociedade, medida e avaliada por meio de indicadores quantitativos e qualitativos e processos analíticos;

b) As políticas, serviços, programas e outros esforços essenciais acordados (ideal e muitas vezes, de forma democrática), organizados, estruturados, financiados, monitorados e avaliados pela sociedade para proteger, promover e restaurar coletivamente a saúde das pessoas e seus determinantes;

c) Os sistemas de saúde pública, que abrangem organizações públicas e privadas, que planejam, desenvolvem, financiam e implementam esses esforços e, portanto, são parte integrante das políticas locais, nacionais, regionais e globais;

d) As disciplinas e profissões científicas, conhecimento, métodos essenciais para influenciar os determinantes da saúde e, assim, prevenir doenças e incapacidades, prolongar a vida e promover a saúde através dos esforços organizados e coletivos da sociedade.

Neste contexto, a adoção de um conceito ampliado de saúde, especialmente considerando os determinantes sociais, aproxima os conceitos de saúde individual e coletiva193. Dessa maneira, algumas concepções de saúde coletiva correspondem a versões da saúde individual, mas com a titularidade coletiva. Czeresnia (2009) apresenta a saúde coletiva como campo de conhecimento e de práticas organizadas institucionalmente, orientado à promoção da saúde das populações. Por sua vez, Detels e Chuan Tan (2015, p.3) referem-se ao Acheson Report (1988) como o conceito mais difundido, segundo o qual: ―Public Health is the science and art of preventing disease, prolonging life and promoting health through the organized efforts of society‖194

.

Entretanto, a saúde coletiva tem objetivos específicos, a partir de sua lente de análise, os quais foram resumidos por Brülde (2011) em quatro: a) melhorar o nível médio de saúde na população relevante; b) reduzir as desigualdades de saúde entre grupos e indivíduos; c) buscar conter e controlar os fatores de risco ambientais e sociais, estabelecendo oportunidades iguais de acesso à saúde; d) melhorar o nível médio de saúde dos grupos vulneráveis.

Além da inerente preocupação macro (coletividade), os objetivos da saúde coletiva denotam uma vocação à isonomia. Mercadante e colaboradores (2002) reforçam essa essência, ao examinarem os sistemas de saúde na América Latina, em que encontraram de maneira uniforme o princípio da equidade no acesso a serviços com qualidade e eficiência, dentro de um marco de sustentabilidade econômica e participação social.

Ocorre que esses objetivos apontados por Brülde (2011) podem colidir entre si quando, por exemplo, essa perspectiva isonômica implicar medidas distributivas, visto que a melhoria no nível agregado de saúde de um grupo (relativamente homogêneo) pode ser indesejável sob uma ótica distributiva frente a grupos com diferentes inserções sociais. Por isso, torna-se relevante conceber uma teoria da saúde coletiva que ofereça instrumentos de solução de conflitos dessa natureza.

193

De acordo com Hunt (2007), o direito à saúde foi articulado pela primeira vez, em âmbito internacional, pela Constituição da Organização Mundial da Saúde, em 1946. No entanto, permaneceu pouco mais que um slogan durante muitos anos. O marco dessa aproximação entre saúde individual e coletiva foi estabelecido pelo Comentário Geral n. 14 elaborado pelo United Nations Economic and Social Council (2000).

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Sugestão de tradução: A saúde pública é a ciência e a arte de prevenir a doença, prolongar a vida e promover a saúde através dos esforços organizados da sociedade.

Alguns autores como Brülde (2011) oferecem estrutura de metas e medidas como forma de combinar distintas preocupações.

Com isso, diversos documentos internacionais, acolhidos nacionalmente, têm fixado objetivos (metas) para direcionamento da saúde coletiva. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças Norte-americano (CDC, 2014), por exemplo, indica dez serviços essenciais em saúde pública que toda comunidade deveria empreender, os quais integram o ―National Public Health Performance Standards‖195

, cujo núcleo envolve a avaliação, a garantia de acesso e o desenvolvimento de Políticas Públicas (Figura 1). São eles:

a) Monitorar o estado da saúde para identificar e resolver problemas de saúde da comunidade;

b) Diagnosticar e investigar problemas de saúde e riscos para a saúde na comunidade;

c) Informar, educar e capacitar as pessoas sobre problemas de saúde;

d) Mobilizar parcerias e ações comunitárias para identificar e resolver problemas de saúde;

e) Desenvolver políticas e planos que apóiem os esforços de saúde individuais e comunitários;

f) Aplicar leis e regulamentos que protejam a saúde e garantam a segurança196;

g) Conectar as pessoas aos serviços de saúde necessários e assegurar a disponibilidade de cuidados de saúde;

h) Garantir a força de trabalho competente;

i) Avaliar a eficácia, a acessibilidade e a qualidade dos serviços de saúde pessoais e populacionais;

j) Pesquisar soluções inovadoras para problemas de saúde197.

195

Sugestão de tradução: Padrões nacionais de desempenho em saúde pública.

196

Coker e Martin (2006) advertem ser essencial que a lei de saúde pública de uma sociedade seja monitorada para responder tanto às ameaças contemporâneas à saúde como às normas e valores culturais contemporâneos.

197

Da leitura do artigo 200 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), em que são enunciadas algumas atribuições do Sistema Único de Saúde, observa-se a similaridade de padrões. Exemplo: a formação de recursos humanos na área de saúde (inciso III), o desenvolvimento científico e tecnológico (inciso V), dentre outros.

Figura 1 – Os 10 serviços essenciais de saúde coletiva

Fonte: Centers for Disease Control and Prevention (2014).

Por fim, a saúde coletiva insere-se, atualmente, em um debate mais amplo, denominado de ―public health governance‖198 (BENNETT et al., 2009, p.207). A governança da saúde pública é o meio pelo qual a sociedade busca coletivamente assegurar as condições em que a população pode viver com o mais alto nível possível de saúde e bem-estar. Tais condições incluem amplos determinantes: esfera informacional, ambiente físico e cultural, organizacional (estruturas de regulação da saúde199) e condições socioeconômicas. Exemplo significativo, no âmbito nacional, são os Conselhos de Saúde e os Fóruns de Saúde.

Resta nítido que a governança acontece principalmente, mas não exclusivamente, no domínio governamental. Assim, necessita dos grupos de interesse em atuação coordenada: o ramo empresarial (indústria farmacêutica e de insumos e prestadores de serviços), a academia (pesquisa de soluções), as entidades filantrópicas, a mídia, a sociedade civil organizada (BENNETT et al., 2009)200. A esse respeito, a Lei n. 8.080/90 esclarece que o dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade (BRASIL, 1990c).

198

Sugestão de tradução: governança da saúde pública.

199

Atuação direta do Estado sobre as pessoas (vacinação, campanhas de segurança no trânsito etc.) e sobre a atividade de grupos (fiscalização sanitária de estabelecimentos comerciais, normas de segurança no trabalho etc.)

200

Essa característica do conceito de governança é muito pertinente ao debate sobre judicialização da saúde, pois revela um conjunto de diversos atores que, geralmente pela via indireta, levam, fomentam ou orientam as circunstâncias antecedentes ao acionamento do Judiciário.

Logo, se o direito à saúde é inclusivo, pois abrange uma série de determinantes, a saúde coletiva é inclusiva quanto aos protagonistas201 nesse nível.

Em linhas gerais, há muitas intersecções entre saúde individual e coletiva. Compreender o significado delas (ao menos, o recorte estabelecido nesta pesquisa) contribui para que o debate sobre a judicialização desenvolva-se em bases (premissas) manifestas. Neste particular, os objetivos gerais, estabelecidos no artigo 196 da Constituição Federal, de promoção, proteção e recuperação da saúde são aplicáveis em ambas as perspectivas, cabendo dissertar sobre seus conceitos, repita-se, para mais uma vez deixar claras todas as premissas em que se assenta o debate da judicialização da saúde.