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2 O JUDICIÁRIO NA CONTEMPORANEIDADE

2.1 JUDICIÁRIO: CONCEITO E PERSPECTIVA DE DESIGN INSTITUCIONAL

Historicamente, a função de julgar remonta a própria origem e natureza gregária do ser humano. Afinal, desde o contexto dos grupamentos ancestrais de

pessoas, percorrendo toda a história registrada da humanidade11, os relacionamentos humanos, não raro, ocasionam divergências persistentes entre os desejos e os interesses, tornando necessária a solução por alguém, a fim de manter a estabilidade do grupo.

Logo, concebida a essência da figura do juiz, depreende-se que, sob a égide de uma comunidade politicamente organizada, o Estado, ao vedar, em regra, a autotutela, ou seja, a possibilidade de um indivíduo impor, unilateralmente, seu interesse, torna-se ―destinatário dos conflitos sociais‖ (TAVARES, A., 2017, p. 946), com o monopólio de uso da força (se necessário for). Para Silva Neto (2006), as soluções forjadas pelo próprio indivíduo, com recurso à força/coerção particular, somente persistem enquanto perdurar a força, o que, por certo, não tem o condão de resolver em definitivo o conflito.

Em consequência, para garantir uma forma eficaz de desenlace dos conflitos em substituição adequada à iniciativa particular, o Estado dispôs de um conjunto de órgãos públicos específicos ao exercício da função jurisdicional. Tais órgãos em sua composição e design consistem no meio institucionalizado para a solução das lides12 ou das crises jurídicas13. O Judiciário, portanto, compõe o núcleo estratégico do Estado, incumbido da função de julgar.

Esta definição de Judiciário não encontra dissenso entre os estudiosos (SILVA NETO, 2006; NOGUEIRA; PACHECO, 2009; ARAÚJO, I.; BESSA, 2010; TENENBLAT, 2011; AGRA, 2012a; TAVARES, A., 2012 a, 2017; CANOTILHO, 2013; MARINONI, 2013; DONIZETTI, 2016; MENDES, G.; BRANCO, 2016; SILVA, J.A., 2017). Todavia, o conteúdo da função jurisdicional é pauta de muitas discussões (CÂMARA, 2011) que, seguramente, interferem na sua expressão institucional, isto é, no conjunto de efeitos internos (ao Judiciário) e externos (sobre as demais instituições formais e informais da sociedade), decorrentes do exercício da função jurisdicional.

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Guimarães (1958), no capítulo I da obra ―o juiz e a função jurisdicional‖, apresenta célebre incursão histórica, desde a Antiguidade até a contemporaneidade, finalizando no Brasil, sobre a origem da autoridade da figura do juiz. Semelhante vocação histórica é encontrada em Dalmo Dallari (2008).

12 Na clássica lição de Carnelutti (1936, p.40), lide é um ―conflitto di interessi qualificato dalla pretesa di uno degli interessati e dalla resistenza dell'altro‖. Sugestão de tradução: ―conflito de interesse

qualificado pela pretensão de um interessado em face da resistência de outro‖.

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A definição de crise jurídica é alternativa à noção de lide, pretendendo ser mais ampla para abranger todo o domínio funcional da atividade-fim prestada pelo Judiciário. É tributária da obra de Dinamarco (2005, p.168), para quem ―[C]rise é dificuldade, é perigo, risco. Crises jurídicas são momentos de perigo nas relações entre pessoas ou grupos, suscetíveis de serem normalizadas pela imposição do direito material‖.

O conteúdo da função jurisdicional está diretamente relacionado ao desenho institucional do Judiciário e das demais funções do Estado. Por desenho institucional, Olsen (2014) refere-se a um processo de construção de prescrições, organogramas e planos, geralmente com regras adaptativas para lidar com circunstâncias imprevistas. De maneira mais geral e pertinente neste trabalho, o desenho institucional14 é o processo de projetar instituições, concebendo regras, procedimentos e estruturas organizacionais (ALEXANDER, 2005).

A maioria dos autores (GOODIN, 1996) atribui um forte teor de intencionalidade ao descreverem os projetos de intervenção deliberada no alcance de novas estruturas ou processos institucionais e de reorganização dos existentes, visando a alcançar os resultados pretendidos (OLSEN, 2014). Entretanto, a predição do desenho insere-se no campo do ideal e sua efetivação depende do contexto específico das dinâmicas dos fatores internos e externos à instituição (múltiplas intenções entrecruzadas).

Neste prisma, para estudar os efeitos decorrentes da atuação do Judiciário é importante ter o amparo do respectivo desenho institucional que informa suas regras funcionais. Isso não se faz sem o recurso à consideração histórica. De fato, o processo de interação duradoura pelo qual as pessoas e o Estado desenvolveram suas formas institucionais de solução de conflitos (KLIJN; KOPPENJAN, 2006) demonstra uma sucessiva mudança da função jurisdicional até o momento presente.

Saliente-se que essa mudança de regras, aplicável a uma visão sistêmica da função jurisdicional e a uma visão individual do juiz diante do caso concreto examinado, decorre de várias condições, dentre elas: a) um resultado de uma ação consciente, como, por exemplo, a instalação de uma Assembleia Nacional Constituinte para inaugurar uma nova ordem constitucional; b) um resultado de novas interpretações dos atores judiciais a respeito das regras jurídicas, a fim de trazer sintonia do Direito ao fato social subjacente, renovando-lhe o alcance normativo, a exemplo do reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro, que previa diferenças entre a participação do companheiro (união estável) e do cônjuge

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A teoria do desenho institucional (design institucional) pretende superar a teoria da institucionalização (ALEXANDER, 2005), para explicar a formação das instituições; contudo, permaneceu como ramo dos estudos institucionalistas que foca o caráter normativo e formal das instituições (instituições projetadas ou pragmáticas) em detrimento das instituições informais (instituições orgânicas ou auto-organizadas) (HODGSON, 2006). Neste caso, considerando que esta pesquisa se dedica ao Judiciário, instituição formal, é pertinente incluir esse debate.

(casamento civil) na sucessão dos bens15; e c) um resultado de natural descumprimento da norma por perda de legitimidade, sem qualquer sanção efetiva, a exemplo da descriminalização do crime de adultério com a consequente revogação do artigo 240 do Código Penal Brasileiro, ocorrida em 2005 (BRASIL, 2005a).

Nesta visão plural, se o Judiciário é uma construção social e, por isso, também é ―desenhado‖, projetado para alcançar determinados resultados, cabe investigar as potencialidades do desenho e os fatores que incidem sobre ele, tendo clareza de que esses desenhos não se autorrealizam, pois, na medida em que são concretizados, passam a ser objeto de intervenções humanas, deliberadas ou não, que incidem sobre a própria instituição criada (CUNHA, Eleonora, 2014). Esses desenhos interagem no contexto das demais instituições, trajetórias e resultados obtidos, justificando, em consequência, delimitar, ainda que de maneira não exaustiva, a evolução do protagonismo do Judiciário no painel das demais funções estatais para entender o alcance de sua função.

2.2 COMPREENSÃO HISTÓRICA DO ALCANCE DA FUNÇÃO JURISDICIONAL E