• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1 – A Evolução do Sistema Multilateral de Comércio e da Solução de Controvérsias no

1.3. Evolução da solução de controvérsias do GATT à OMC

Conforme o regime internacional do sistema multilateral de comércio passou gradativamente de um regime mais principialista e flexível (com menor abrangência) para um regime efetivamente universal (tanto geograficamente quanto em escopo do comércio) e em consequência muito mais normatizado, passou a ser necessário um mecanismo de interpretação oficial e uniforme das regras (BOWN, 2009; GRIMMET, 2011).

Da mesma forma, este mecanismo deveria também procurar garantir o cumprimento destas regras de forma equânime por uma multiplicidade de atores com visões distintas e, não menos importante, ser capaz de punir comportamentos desviantes das normas acordadas.

Conforme pode-se observar no texto original do acordo do GATT 19478, foram previstos apenas dois artigos devotados ao tema da solução de controvérsias no sistema. O Artigo XXII estabelecia o mecanismo de consultas, onde cada uma das partes contratantes do GATT poderia solicitar a abertura de consulta a outra parte sobre qualquer assunto que julgasse afetar os compromissos desta no âmbito do acordo. Na impossibilidade de se chegar a um termo satisfatório entre as partes, o membro poderia solicitar aos demais membros a abertura de consultas contra o terceiro com o auxílio destes.

O Artigo XXIII disciplinava de forma pouco estruturada que caso uma parte considerasse incorrer em prejuízos ou na anulação de vantagens causados por outra parte (por falha desta na implementação de seus compromissos, por outras medidas adotadas fora do acordo quer em conformidade ou não com o mesmo, ou

por qualquer outro motivo a ser especificado) e na ausência de acordo entre ambas as partes para dirimir o conflito, a parte interessada poderia recorrer às partes contratantes em conjunto para dirimir a questão.

Não obstante estas previsões, é importante salientar que a regra básica do processo-decisório era o consenso e que, portanto, a implementação de qualquer decisão dependia também da anuência da parte afetada. Observa-se também que o texto aprovado possuía bastante ambiguidade e poucas previsões práticas sobre a real operação da solução de controvérsias no âmbito do sistema.

Por esta razão, a evolução da solução de controvérsias no âmbito do GATT foi disciplinada em grande medida por sua própria práxis. No entanto, desde o início podem-se observar conceitos fundamentais da operação do sistema de solução de controvérsias: i) as partes devem sempre procurar resolver disputas primeiramente de forma amigável por meio de consultas; e ii) apenas o GATT poderia autorizar a aplicação de penalidades contra seus membros, devendo cada parte abster-se de levar a cabo retaliações unilaterais (HUDEC, 1990).

O primeiro litígio protocolado no âmbito do GATT, Benelux (Bélgica, Holanda e Luxemburgo) contra Cuba, foi protocolado no ano de 1948. Após a falta de acordo entre as partes, o litígio foi resolvido por meio de uma decisão unilateral do presidente do grupo das partes contratantes após solicitação da Holanda (Id, 1998). A partir do segundo caso trazido ao GATT e entre 1949 e 1951 os litígios foram resolvidos, se não de forma plena ao menos em parte, através da instalação de grupos de trabalho específicos para cada caso. Os grupos eram compostos pelas partes em litígio e, em geral, por três outras partes neutras no tema. Cabia a estes grupos de trabalho emitir parecer que seria posteriormente submetido à análise de todas as partes pelo presidente (Id Ibid).

A partir de 1952, o GATT passou a utilizar o modelo de painéis na solução de controvérsias. Primeiramente apenas o presidente do painel era escolhido de forma individual e os demais membros indicados como representantes de países, excluída a participação das partes interessadas (reclamante ou acionado) como membros do painel. Posteriormente, todos os membros dos painéis passaram a ser apontados de forma individual e não como representantes estatais. O procedimento adotado nos painéis incluía ouvir ambas as partes em litígio, mas as excluía do processo decisório do painel. Após a decisão, o presidente do painel deveria submeter o relatório de recomendações à aprovação de todas as partes contratantes do GATT (HUDEC, 1998; JACKSON, 1997; STEWART, 1993).

O modelo de solução de controvérsias continuou praticamente o mesmo até o final dos anos 1970 com algumas poucas alterações. Em 1958 passou a ser permitida a participação de partes interessadas (terceira parte), não relacionadas às partes em litígio, interessadas em acompanhar o desenvolvimento dos painéis. Em 1966 houve uma alteração de procedimentos para flexibilizar o sistema de solução de controvérsias quando uma das partes em litígio fosse um país em desenvolvimento (STEWART, Ibid.).

Apenas em 1979, com a conclusão da Rodada Tóquio, o sistema de solução de controvérsias do GATT conheceria uma codificação de seus procedimentos com a implementação de sua primeira reforma consolidada no “Entendimento sobre Notificação, Consultas, Solução de Controvérsias e Monitoramento”9 e em seu respectivo Anexo, o “Acordo Descritivo de Práticas Costumeiras do GATT no Campo da Solução de Controvérsias (Artigo XXIII:2)”.

Estes acordos, no entanto, significaram apenas a codificação e transparência das práticas adotadas na solução de controvérsias e não sua modificação. A primeira reforma mais ampla do sistema de solução de controvérsias ocorreria apenas durante as negociações da Rodada Uruguai (WINHAM, 1986; JACKSON et al., 1984; HUDEC, 1990).

Antes mesmo da conclusão da rodada, um novo conjunto de disposições10 sobre a operação do sistema entrou em vigor, dentre as principais mudanças destaca-se: a necessidade de notificação das partes contratantes sobre soluções mutuamente acordadas; cronogramas e prazos para as consultas; a possibilidade de utilização de mecanismos alternativos para a solução de disputas como bons ofícios, conciliação, mediação e arbitragem; regras mais precisas para o funcionamento dos painéis e grupos de trabalho; assistência técnica; adoção de relatórios dos painéis e monitoramento da implementação das decisões (STEWART, Ibid; CROOME, 1999).

No entanto, a adoção dos relatórios dos painéis ainda necessitava do consenso positivo de todas as partes contratantes. Finalmente, durante as negociações de reforma do sistema multilateral de comércio durante a Rodada Uruguai, que culminariam na criação da OMC, o sistema de solução de

9 Understanding regarding notification, consultation, dispute settlement and surveillance. Disponível

em <https://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/tokyo_notif_e.pdf>. Acesso em setembro de 2015.

10 Uruguai Round ministerial decisions and declarations: Notification procedures – Disponível em

<https://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/33-dnotf.pdf>; Certain dispute settlement procedures for the GATS - Disponível em <https://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/45-dsvds.pdf>; Dispute settlement: application and review of the Dispute Settlement Understanding - Disponível em <https://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/53-ddsu.pdf>. Acesso em setembro de 2015.

controvérsias foi totalmente redesenhado.

O novo sistema foi codificado no “Entendimento sobre Solução de Controvérsias”11 (DSU) e foi abolido o modelo de grupos de trabalho ad hoc com a criação de um único Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) permanente responsável pela gestão operacional do sistema. No capítulo a seguir discutiremos as principais mudanças observadas no sistema e como o mesmo opera atualmente sob a égide da OMC.

11 WTO Agreement – Annex 2: Understanding on rules and procedures governing the settlement of