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EVOLUÇÃO DOS PRINCÍPIOS E NORMAS SUBJACENTES AOS CATÁLOGOS BIBLIOGRÁFICOS

5.1 Introdução

A aparência externa do catálogo da biblioteca sofreu alterações consideráveis nas últimas duas décadas, decorrentes da sua inserção no ambiente informacional em transformação. Estas alterações, contudo, são essencialmente do foro tecnológico, porquanto os elementos que o compõem continuam, ainda hoje, a ser muito semelhantes aos que eram usados nos catálogos manuais. A natureza intelectual das tarefas de produção da informação no âmbito do catálogo não tem sofrido alterações substanciais, continuando a informação (com ênfase nos pontos de acesso, sejam eles de autor, título, assunto, ou outros) a ser produzida para uma apresentação linear dos dados, em longas listas ordenadas por critérios pouco esclarecedores do universo representado pelos registos recuperados e, em certa medida, limitativos da sua cabal exploração.

Numa altura em que se assiste, internacionalmente, a profundas alterações do panorama cultural e tecnológico, face às possibilidades de acesso à informação em rede, são grandes as expectativas que se geram quanto à evolução dos catálogos bibliográficos.

É num ambiente diversificado no qual as bibliotecas são solicitadas, cada vez mais, a prestar serviços de “ponta a ponta” (procurar, encontrar e obter) e num quadro de uma alteração da plataforma técnica que permite uma mais rápida e mais diversificada forma de acesso à informação, que se começam a questionar os conceitos e princípios subjacentes à construção dos catálogos. É a este nível, o dos conceitos, que a transformação se começa a desenhar, com o desenvolvimento do

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estudo que deu origem ao modelo Functional Requirements for Bibliographic Records (FRBR), que pretende constituir um passo inicial essencial na refundação do aparato técnico e normativo subjacente aos catálogos.

A estrutura descritiva do catálogo – e os princípios, códigos e normas (de informação e de dados) em que se baseia – encontra-se, assim, num ponto de viragem, desde que, com a emergência do modelo FRBR, o reexame da problemática de como devem ser organizados e estruturados os dados num registo bibliográfico passou a ser um dos principais temas da comunidade profissional, a nível internacional.

Para melhor se entenderem as questões emergentes do enquadramento teórico trazido pelo modelo FRBR, e a viragem que representam, torna-se necessário conhecer e compreender os normativos subjacentes aos catálogos, a forma como eles foram evoluindo ao longo dos tempos para responder às solicitações de cada momento e de que modo essa evolução tem contribuído para o potencial ou limitações atuais à implementação de um novo modelo conceptual.

Com esse objetivo, o presente Capítulo constrói uma leitura dessa evolução, apresentando cronologicamente os normativos mais influentes, e as suas circunstâncias e conceitos base, que constituem o que designámos de Estruturas descritivas, na Figura 9 – Componentes estruturais da produção e realização do catálogo, na Introdução à Parte II.

5.2 Fundamentos da catalogação moderna

A história da organização sistemática da informação, decorrente da necessidade de organização/arrumação dos recursos existentes nas bibliotecas, é tão longa como a das próprias bibliotecas. Os primeiros sistemas classificatórios que se conhecem surgiram no oriente, China e Índia, na sequência do desenvolvimento da escrita (Kedrov, 1974). No ocidente Platão (427-347 a.C.) e, especialmente, Aristóteles (384-322 a.C.) são uma referência para a classificação do conhecimento. Na Idade

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Média, foi grande a influência de Aristóteles, especialmente através das disciplinas do

Trivium e Quadrivium137.

Não sendo objetivo da nossa investigação fazer o estudo da organização da informação ao longo dos séculos vamos focar-nos apenas na sua história mais recente, séculos 19 e 20, desde o que se considera ser o início da catalogação moderna. Os códigos de catalogação do século 20 têm as suas raízes nas obras de alguns bibliotecários que, no século anterior, estabeleceram as bases teóricas da descrição bibliográfica, em que destacamos as obras de Anthony Panizzi (1797-1879) e Charles Cutter (1837-1903).

A Anthony Panizzi é atribuído o início do desenvolvimento dos códigos de catalogação modernos, e os seus axiomas influenciaram a catalogação em geral e a teoria da catalogação em particular.

A Charles Cutter é atribuída a catalogação moderna, isto é, a catalogação baseada nas quatro ideias base que constituem o seu atual corpus – axiomas, conveniência do utilizador, “obra”, normalização – e a quem se deve o estabelecimento, em 1876, do primeiro conjunto de axiomas catalográficos consubstanciados na obra Rules for a Dictionary Catalog.

5.2.1 Anthony Panizzi e as Regras do British Museum

As “Noventa e uma regras”138, elaboradas por Panizzi, representam o primeiro esforço de codificação de regras para a compilação de um catálogo de autor. Apesar de terem tido as suas raízes nas regras precedentes e, segundo Carpenter e Svenonius (1985), representarem a continuação das práticas comuns das bibliotecas dos

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O Trivium era composto pela gramática, retórica e dialética; e o Quadrivium era composto pela matemática e música, astronomia, geometria e aritmética. Este sistema de organização das disciplinas manteve-se durante muito tempo como base de organização das bibliotecas conventuais e universitárias (Ferreira, 2013).

138 As 91 regras foram antecedidas por um documento de trabalho constituído por 73 regras (apresentado em março de 1839) e intitulado Alphabetical catalogue of printed books. Rules to be

observed in preparing and entering titles, que podem ser consideradas como as regras originais de

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mosteiros medievais, elas não deixam de ser inovadoras ao apresentarem uma reformulação e extensão dos princípios então existentes, tornando-os mais úteis e fornecendo soluções para a maior parte dos problemas de catalogação então existentes – definemcomo registar nomes de autores e títulos de modo a assegurar a qualidade da descrição de cada livro e incluem também diretivas para a elaboração de referências cruzadas.

As Rules for the Compilation of the Catalogue, aprovadas em 1839 e impressas em 1841, podem ser consideradas o primeiro código de catalogação moderno e dão início a uma conceção de catálogo que vai para além de uma lista de localização: o catálogo contempla tanto o objeto material como o seu conteúdo intelectual e permite o acesso a ambos (Spedalieri, 2006). Panizzi, ao contrário de outros autores da época, entre os quais Thomas Carlyle139, um dos seus opositores, não via o livro apenas como um objeto material, constituído por uma entidade individual que não se relacionava com qualquer outra existente na biblioteca, mas antes como uma edição de uma “obra” específica, intimamente relacionada com outras edições e traduções da mesma “obra” que a biblioteca pudesse possuir. Cada livro era, assim, visto como uma componente de um conjunto de diferentes entidades individuais que representavam um conteúdo intelectual comum:

“a reader may know the work he requires; but he cannot be expected to know all the peculiarities of different editions, and this information he has a right to expect from the catalogues.”(Commissioners, 1850, Q9814, p. 695.)

Panizzi institui, assim, duas funções para o catálogo: a da identificação de edições, ou publicações individuais de uma obra de um autor, e a de reunião de todas as edições de uma obra (Lubetzky, 1979b, ed. 2001).

As discussões que se estabeleceram em torno da compilação das novas regras para o catálogo do British Museum constituíram um marco na definição dos objetivos do catálogo.

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Apesar de Pannizzi ser considerado um líder intelectual da sua época, Carlyle acusa-o de tentar melhorar a sua reputação através da construção de um catálogo que era "uma exibição de futilidade bibliográfica" (Commissioners, 1850, Q5103, p. 324).

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O foco principal no código de Panizzi é a entrada baseada na informação encontrada na página de título, considerada a fonte autorizada para os dados catalográficos, no sentido em que oferece a mesma informação a todos os catalogadores. Esta foi a primeira abordagem à normalização na catalogação e que foi continuada através dos códigos subsequentes (Fattahi, 1996a).

Panizzi não só coloca grande ênfase no conceito de uniformidade, quer na forma do ponto de acesso (então designado cabeçalho) para autor, quer no estabelecimento da sua ordem alfabética, como alerta para as dificuldades resultantes da falta de uniformidade num catálogo. O princípio da autoridade é enfatizado como o principal elemento organizador nas entradas de um catálogo alfabético de autor e é introduzido o conceito de autoria múltipla, embora sem distinção clara entre coautoria e autoria coletiva. A abordagem a este conceito pode ser visto nas regras no que diz respeito à escolha e forma do nome, que devia ser feita: a) pelo nome (de batismo), quando fosse a designação preferida, seguido pelo apelido; b) pelo título, no caso de obras anónimas, seguido pelo nome do autor quando identificado; c) pelo pseudónimo, mesmo quando o nome verdadeiro fosse conhecido; d) pelo apelido de família, para autores pertencentes à nobreza140.

5.2.2 Charles Ammi Cutter e as regras para um catálogo dicionário

A primeira enunciação explícita dos objetivos do catálogo deve-se a Charles Ammi Cutter que verificou que a catalogação não se fazia de forma sistemática nem se procuravam princípios que guiassem a tarefa e, em 1876, publicou as suas Rules for a

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Em Portugal, encontramos catálogos anteriores às regras de Panizzi, onde são referidas as várias formas pelas quais os autores dão entrada, consoante as características apresentadas pelos nomes. Um destes exemplos pode ser encontrado em João de Santa Ana que, no seu Catálogo de Mafra, intitulado

Breve História da Real livraria de Mafra, refere um catálogo que terá sido produzido entre 1755 e 1758

que possui uma introdução, intitulada Ad Lectorem (ver reprodução da tradução para português em Ferreira, 2013, p. 227-229), onde são dadas indicações sobre a organização do catálogo, referindo as formas pelas quais os autores dão entrada. Não é caso único, igualmente encontramos outros catálogos como, por ex., o da Livraria do Ex Convento de São Vicente de Fora, de 1824 (BNP, cota COD. 7402), onde, embora de um modo embrionário e de forma simplista, são explicitadas as regras utilizadas para a organização do catálogo no “Modo de achar os livros”, especificando que os autores são ordenados alfabeticamente pelo nome próprio ou sobrenome, de acordo com a forma pela qual forem mais conhecidos, e as obras anónimas por título.

Parte II – Contexto e evolução dos catálogos e normas subjacentes 172 dictionary catalog141. Para Quigg (1966), estas regras constituem o conjunto mais abrangente de regras que alguma vez foi produzido individualmente. Os objetivos de Cutter mantiveram-se em uso e sem alterações por um período de 75 anos, até à revisão efetuada por Lubetzky em 1960 (Svenonius, 2000, p. 16).

A influência de Cutter na catalogação pode ser vista na estrutura, objetivos e princípios que regem os códigos de catalogação posteriores.

Cutter (1904, reimp. 1962, p. 12) começa por estabelecer as funções de um catálogo, como passo fundamental para determinar a redação e ordenação dos registos que o compõem, identificando três objetivos: o de localização (ou identificação), o de reunião e o de seleção ou avaliação, consubstanciados nos seguintes serviços:

1. Permitir a uma pessoa encontrar um livro do qual conheça: A. o autor

B. o título, ou C. o assunto

2. Mostrar o que a biblioteca possui: D. de um determinado autor E. sobre um determinado assunto F. de um determinado género literário 3. Ajudar na escolha (seleção) de um livro

G. por edição (bibliograficamente)

H. pela sua tipologia (literária ou de assunto)

Objetivos do catálogo Funções do catálogo

Encontrar (1)

Função localização (ou identificação) Mostrar (2)

Escolher(3)

Função reunião (ou colocação) Função seleção (ou avaliação)

Figura 16 – Correspondência objetivos/função do catálogo em Cutter

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Catálogo que reúne todas as entradas (incluindo autor, título, assunto) numa sequência ordenada alfabeticamente. Embora o catálogo dicionário tenha sido primeiramente introduzido por Andrew Maunsell em 1595, em forma de uma simples lista incluindo autores, entradas secundárias (por ex., para tradutores) e assuntos, numa única sequência alfabética, foi no séc. 19 que o conceito floresceu, especialmente através das obras de Charles Ammi Cutter.