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Evolução Histórica e social da mulher na sociedade ocidental

No primeiro capítulo deste trabalho versámos a problemática de género e o desenvolvimento da sociologia do trabalho, elencando as teorias que basilam este estudo. No segundo capítulo trabalhamos o viés teórico do conceito de empreendedorismo. Neste terceiro capítulo não poderíamos avançar para recolhas empíricas sem primeiro aprofundar o papel da mulher no passado e no presente, numa completude ao breviário das questões de género que encetou este estudo. Não se trata de retomar o primeiro ponto do primeiro capítulo, mas sim de fortalecer o enquadramento do objeto de estudo – mulheres – e preparar o caminho para a compreensão do conteúdo da recolha empírica e o papel das mulheres enquanto empreendedoras.

Procuramos neste ponto integrar a trajetória das mulheres com o objetivo de, hoje, num quadro de globalização, compreender o seu contributo no mercado de trabalho e por conseguinte o seu impacto social, económico e político.

O desenvolvimento histórico-social da luta das mulheres, quer pela igualdade, quer pelo reconhecimento de direitos não só no trabalho, mas de modo global nos diversos pilares da sociedade, tem vindo a obter avanços, embora de forma lenta e sofrida. Recorde-se, segundo Ferreira da Silva (2008), que a primeira convenção do direito ao voto da mulher surge na Nova Zelândia em 1893. Só em meados de 1944 se expande em França e de modo geral pelas nações do ocidente. Em Portugal e conforme reitera a autora, só a Constituição de 1976 garantiu o pleno direito ao voto a todas as mulheres, casadas e solteiras, maiores de idade. O direito ao voto é considerado a primeira e principal conquista dos movimentos feministas a nível mundial.

Não podemos deixar de registar neste enfoque histórico a memória de algumas figuras portuguesas que cunharam a luta pelos direitos das mulheres (Tavares,2008), e.g., Adelaide Cabete103, Ana Castro Osório104, Catarina Eufémia105, Maria Lamas106, Carolina Beatriz Ângelo107, Carolina de Vasconcelos108, as Três-Marias109 – Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho Costa e Maria de Lourdes

103(1867-1935) Médica em Elvas, reivindicou o descanso antes do parto, o direito ao voto e presidiu o Conselho Nacional de Mulheres Portuguesas.

104(1872-1935) Feminista, escreveu o Manifesto ‘Mulheres Portuguesas’.

105(1928-1954), feminista, é assassinada a tiros no Alentejo por reivindicar os seus direitos no trabalho.

106(1893-1985), ativista e jornalista que percorreu o país para conhecer e defender a melhoria das condições de vida das mulheres.

107(1878-1911), Médica, primeira mulher a votar em condições especiais (por ser viúva) em 1911, ano em que faleceu. 108(1851-1925) Escritora, primeira professora universitária em Portugal (universidade de Coimbra).

109Feministas, autoras das edições do ensaio histórico ‘Três-Marias – Novas Cartas Portuguesas’, Maria Teresa Horta (1937) chefe de redação da revista ‘Mulheres’, Maria Isabel Barreno (1939), feminista e formada em História da Filosofia e Maria Velho da Costa (1938), escritora.

Pintassilgo.110 Na região do Algarve, destacamos Maria Veleda111, Adelina da Glória Berger112 e Maria Keil113. Na sua investigação, Tavares (2008) realça o episódio caricato da prisão de Maria Lamas à chegada do Aeroporto de Lisboa, quando regressava de um Congresso Mundial em Copenhaga (1953). Juntamente com esta, foram detidas outras tantas mulheres que incentivavam marchas grevistas em prol de aumentos salariais para as mulheres, e.g., Maria Keil (já aqui citada), Maria Alice Silva, Maria Sofia Dias Coelho, Leonor Casimiro, Maria da Conceição e sua filha de quatro anos. Durante este período de repressão e por causas similares morre Catarina Eufémia, em 1954. Muitas mais personagens ficam por citar, todavia importa esclarecer que não é o propósito deste estudo, apenas se funde como base complementar neste ponto alusivo, revisitando o passado para problematizar o presente.

Alvim et al. (2002) recordam que desde sempre as diferenças entre homem e mulher se aliam a uma discriminação sexual de funções, i.e., numa família o pai é a autoridade e a força de trabalho e a mulher é apenas a sua sombra, limitando-se às incumbências domésticas, tendencialmente invisiveis. Na mesma linha, Santos (2010) recolhe os resultados de diversas investigações para assumir que os traços associados ao homem são dominância e à mulher dependência, resumindo-se a uma sociedade patriarcal, pensada e materializada pelo homem e para o homem de forma globalizada.

Não obstante, Almeida (1994) reforça que o que se pensava serem atributos naturais – mulheres passivas e homens ativos – vem a revelar-se apenas uma noção histórica, cultural e socialmente localizada, com tendência à sua desmistificação. No nosso enfoque conceptual já exposto, esta evolução reside no conceito de poder (Lukes, 2004; UERJ, 2013). Atendemos que este conceito tem forte presença nas análises sociológicas diante dos diversos ângulos de observação. Conforme já citado (UERJ, 2013), poder na posição weberiana é a capacidade de impor a sua vontade mesmo contra a relutância dos outros, dentro de uma relação social. Lukes (2004) elabora uma proposta para o conceito, fundamentada em três dimensões: a primeira é centrada na ação política oligárquica e nos processos decisórios (unidimensional - visível), a segunda já analisa o próprio rebatimento de algumas questões políticas, através da maestria do que denomina ‘forças sociais ocultas’ (bidimensional - escuso), já a terceira incide sobre o poder ideológico, em que prevalece a hegemonia de uns sobre outros (tridimensional- invisível). Sobre esta última dimensão encontramos conexão nesta abordagem de género, na medida em que as mulheres se sujeitam a uma cultura enraizada, dita patriarcal. Todavia cuidamos que as propostas de Lukes para conceptualizar poder processam-se em contexto isolado e localizado, não levando em conta as probabilidades da própria interação social globalizante. No complemento surge-nos Bourdieu (Wacquant, 2002; UERJ, 2013), que caminha pelos trilhos de Weber e que, rejeitando os reducionismos marxistas de classe, se propõe a desmistificar os mecanismos obnubilados do poder. Para o autor (Bourdieu, 2013) o poder traduzido nas hierarquias sociais é permanentemente confrontado pelas práticas sociais, i.e., depende de uma cultura de praxis, logo sujeito a mutação.

110Já citada no primeiro ponto do primeiro capítulo, que enceta a temática de género.

111(1871-1955) Natural de Faro, Veleda é pseudónimo de Maria Carolina Frederico Crispim, é professora, jornalista, livre pensadora e republicana, dirigente do primeiro movimento feminista português.

112(1865-1922), natural de Lagos, fundadora do núcleo de Lagos da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas. 113(1914-2012) Natural de Silves, feminista e pintora da segunda geração de modernistas.

Que fique assente que o desenvolvimento do conceito de poder neste estudo, segue a proposta de Pintasilgo (Carrilho, 2015) e diz respeito à conscientização e visibilidade das desigualdades sociais e ao empoderamento das mulheres ao colocarem em prática o seu potencial, contribuindo ativamente, no papel de empreendedoras, para uma sociedade em desenvolvimento.

Doravante, seguimos uma retórica pós-feminista na qual Magalhães e Alvarez (2013) caracterizam as repercussões mais fortes na sociedade contemporânea. Nestes trâmites, valorizam a a mulher informada, empoderada e capacitada para triunfar num mundo (ainda) dominado por homens.

Retrocedendo ao primeiro cenário (século XIX) e tal como hoje, as mudanças laborais ocorreram velozes, surgem os processos de industrialização e os avanços tecnológicos nos países europeus e com isto o progresso económico.

Para Tavares da Silva (1983), o movimento a favor da emancipação da mulher em Portugal, é entendido como a tomada de consciência do valor da pessoa, como definição do seu papel na sociedade, e como contestação e revisão de preconceitos e limitações até aí impostos à mulher. É uma causa que progressivamente toma corpo, subitamente respalda um vigor quase inesperado num país, onde nem lutas sufragistas - típicas de outras culturas - nem movimentos radicais pelos direitos das mulheres, jamais se tinham feito sentir de forma tão organizada, enfatizando um cenário misto de vozes femininas e masculinas (embora estas últimas em menor proporção).

Cogitamos que os movimentos das mulheres não são relevantes para a Sociologia apenas pelo facto de fornecerem material de pesquisa. Os Estudos de Género também identificaram fraquezas nos modelos estabelecidos do pensamento sociológico e procuram por tal desenvolver novos conceitos que nos ajudem a entender a relação de género e poder (Pereira e Santos, 2012). Se cruzarmos estas informações com a Sociologia do Trabalho, como é pretensão neste estudo, iremos chegar a problemáticas de análise mais aprofundadas de utilidade premente na ciência, sobretudo acerca do impacto da mulher empreendedora na sociedade civil e no que a mesma sociedade reclama para a construção do seu equilíbrio e desenvolvimento sustentável.

Conforme nos sublinha Ferreira da Silva (2008) foi, no entanto, necessário esperar pelo século XX para perceber que a ideia de que as diferenças entre homens e mulheres resultam de relações de poder, e não de quaisquer predeterminações biológicas. Compreender que a mulher, enquanto ser-humano tem direito de cidadania e se constitui como princípio de interpretação da realidade social, vem alargar o ângulo de visão da sociedade.

Para Sousa Santos (2012) a mulher do século XXI tem vindo a ganhar cada vez mais espaço no trabalho, na política, na sociedade e na economia, com o compromisso de manter a sua identidade perante uma nova forma de viver, pensar e agir. A mulher despertou e conscientizou-se de que necessita mais do que lhe era votado para se realizar enquanto pessoa, enquanto ‘eu’.

“Quando Betty Friedan falou pela primeira vez do ‘problema que não tem nome’, há mais ao menos um quarto de século’ queria dizer que ser uma esposa e mãe não era suficiente para dar a vida plena pela qual muitas mulheres, quase sem sabê-lo, ansiavam” (Giddens, 2002, p. 199).

Através da publicação de Magalhães e Alvarez (2013), entendemos o conceito de autonomia nas teorias feministas como instrumento capaz de marcar as especificidades, estímulos, oportunidades e contingências de um tempo e de um espaço social. Esta autonomia resume-se no poder resolutivo, transformador e de resistência da agência individual, pela expressão autónoma do self. Uma vez mais focamos a teoria da escolha racional marcada pelo poder do agente em decidir agir ou restringir a sua ação perante determinada estrutural social. Concentramos neste compêndio, a problematização de género no poder de decisão consciente das mulheres. Os autores acima citados corroboram que a discussão do self é uma linha estratégica nas teorias feministas, sendo que tem vindo a rejeitar as características culturalmente dominantes – em maioria provindas da filosofia kantiana – e que se reduzem a uma natureza homogénea e a uma única voz desligada das relações interpessoais.

A mulher ciente das suas capacidades, do seu ‘eu’, é muito mais do que a tradição – já ultrapassada - lhe reservou. Tavares da Silva (1983) refere que a independência económica é a vitória da propaganda feminista, uma vez que a mulher independente pelo seu trabalho adquire poder para tomar as suas próprias decisões, traçar o seu futuro, criar ambições e posicionar-se num espaço social mais vasto. A este propósito Lumier (2008) reafirma que os hábitos de esquematização ao nível dos aparelhos organizados numa estrutura necessitam de novas ideias e de novos valores, i.e., não existe a criação de um simbolismo novo sem a afirmação de novas posições que inspirem condutas coletivas efervescentes e que provoquem uma reestruturação. E mais acrescenta que a resistência à mudança é uma ‘corrente cega’. A mulher alarga o seu âmbito de atuação social e isso é cada vez mais visível. Reclama-se a mudança de paradigma, e com ele muitas outras alterações são necessárias de reajustar.

Retomando a pretensa constatação do desenvolvimento da representatividade da mulher na sociedade, Simmel114 (1981) tem um ponto de vista interessante e muito próximo do que pretendemos resumir no quadro evolutivo da mulher. Conforme nos transmite Ferreira da Silva (2008), Simmel defendia que a sociedade deveria reforçar-se como grande estrutura complexa e racional que é, uma vez que tende a ameaçar a liberdade de funções de um indivíduo, condicionando-o a um espaço social limitado. Entendemos desta asserção que, apesar de a mulher conquistar a sua liberdade, a sociedade tem ainda que preparar-se para a aceitar.

A este propósito e ao aproximarmo-nos do cenário contemporaneo, deparamo-nos com o facto quw as preocupações de igualdade de género se transferem cada vez mais a nível académico. A expressão feminismo dá lugar aos ‘estudos de género’. Por outro lado, um aspeto positivo é que a temática passa a ter mais reprodução académica e com valiosos contributos.

Em 1991 nasce em Portugal a APEM – Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres - que desde 1999 publica a sua revista Ex aequo com artigos científicos sobre a problemática de género. Conforme atesta Schouten (2012), no ensino português a temática de género conquista lentamente o seu lugar nos planos curriculares: nasce o primeiro Mestrado em Estudos sobre as Mulheres na Universidade Aberta, a Sociologia

114(1858-1918) Sociólogo alemão, seguidor de Weber, desenvolve a sociologia formal, integra-se no interacionismo simbólico e na perspetiva construtivista do conhecimento (Simmel, 1981).

de Género tem lugar como unidade curricular em diversas instituições, entre outras disseminações decorrentes do foro científico nas universidades.

As produções científicas ganham assim espaço para ser pensadas no masculino e no feminino. Santos (2010) chama a atenção para o facto de a sociedade ser pensada no masculino como totalidade equitativa, limitando a apreensão de significados especificamente femininos – votados às idiossincrasias de ser mulher - em contraposição com os significados masculinos, mais amplos e universais. Destarte, Pereira (2012), na sua tese, procura enquadrar novas epistemologias à importante temática de estudos de género através da prática etnometodológica de um grupo de alunos participantes, afastando deste modo a dicotomia sujeito- objeto na construção de conhecimento. Nesta continuidade Pereira e Santos (2014) defendem que o debate e a crítica são elementos vitais e generativos na produção neutra de género, postulando os dois prismas – masculino e feminino - e que a análise de temas que fujam aos cânones da produção feminista – como no presente estudo procuramos encontrar o perfil identitário da mulher no papel de empreendedora – tem contribuído muito para a atualização de conhecimentos nos estudos sobre mulheres, género e feminismo. Mais reforçam que não estamos perante um objeto de estudo acabado e é necessário a construção contínua e reflexiva sine qua non não se enriquece e preenche o conhecimento científico desta temática.

Ainda antes de terminarmos este ponto, e como o mesmo é maioritariamente dedicado ao domínio histórico, consideramos pertinente analisar a citação que enceta o capítulo, propositadamente pensada a este enquadramento. Platão115, apesar de suas boas intenções, figura a mulher como a mão esquerda da sociedade. Entre destros e esquerdinos, ou ainda ambidestros, informação que não conseguimos apurar junto de entidades de tratamento estatístico, desconhecemos a proporção representativa por sexo. Todavia, em termos de população encontramos a população feminina em maioria (Worldstate, 2015). Em termos simbólicos, entendemos que os destros se encontram como universais, os esquerdinos secundários, não estando em causa, ressalve-se, o potencial de cada qual. Logo, Platão, não desvalorizando o seu contributo e sua capacidade visionária numa época longínqua, acaba por ainda assim colocar a mulher como elemento secundário – embora necessário – numa sociedade claramente patriarcal.