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O debate estrutura/agência

Este ponto de trabalho visa equacionar um dos dilemas centrais da Sociologia e que está profundamente implícito na análise de todas as desigualdades sociais e como tal também nas de género: o debate Estrutura/Agência. Por agência entende-se a capacidade de os atores sociais gerirem a sua própria conduta de forma autónoma acionando o seu livre arbítrio. Já a estrutura consubstancia todos os condicionamentos que a sociedade como um todo colocam ao e à agente (Giddens, 1991).

Introduzimos nesta abordagem o conceito de poder enquanto capacidade do indivíduo em afirmar a sua vontade, em concomitância com a definição da primeira dimensão de poder (Lukes, 2004) ou com a sociologia compreensiva weberiana que defende que este conceito atribui a qualquer um ou uma a posição de impor a sua vontade numa determinada situação, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa vontade (Weber, 2010). Já o conceito bourdiense de poder simbólico (Bourdieu, 2013) traduz uma posição detida na sociedade por determinados grupos, que atuam na estrutura segundo a posição em que se encontram, podendo na presente investigação ser aplicado ao grupo de empreendedoras em estudo que manifestam os seus comportamentos em sintonia com os seus objetivos e de acordo com as condições estruturais locais, nacionais e globais. A abordagem de poder de Bourdieu, abarca tanto a agência como a estrutura e transcende a dicotomia, respeitando as suas lógicas que poderão ser integrantes ou antagónicas.

8Importa desde já desmistificar o conceito de liberdade de agência utilizado ao longo de todo este trabalho, evitando confundi-lo com o paradigma de individualismo, uma vez que esta liberdade que tratamos no estudo só tem o seu propósito no coletivo da ação do e da agente, i.e., na sua interação social e não na sua individualidade por si só.

O estudo do poder e a forma como os indivíduos se sobrepõem a outros, tem relevo para compreendermos as metamorfoses estruturais. Para Marx (1974), as divisões clássicas de poder e posição social residem nas divisões de classes capitalistas. O conceito de classe para o autor presume estratificação social. Durante muitos anos este conceito não teve em conta a variante de género. Não se analisavam divisões de poder, riqueza e prestígio entre as pessoas de acordo com o seu sexo ou com a sua identidade de género. Na verdade, as mulheres estavam à partida arredadasdestas análises porque não detinham posições de poder, riqueza ou status. Este é por tal, um exemplo de segregação. Não se avaliavam as mulheres e a posição convencional com que eram identificadas era com a posição de classe do marido. Goldthorpe (1983) alarga esta posição de classe para o agregado familiar, i.e., a mulher pertenceria à classe do seu agregado familiar. Este tipo de análise da estrutura social encontra-se atualmente ultrapassada e carece de novas introduções visto que o papel social das mulheres se alterou profundamente.

A teoria da escolha racional (Scheefer, 2013) vem, na nossa opinião, complementar a interpretação da posição do poder do e da agente e sua determinação reflexiva na tomada de decisões que condicionem as suas escolhas de vida, i.e., os seus comportamentos passam a ser reflexo de suas motivações pessoais e de um processo de seleção racional perante as possíveis opções ou caminhos que se apresentam ao individuo. Entramos assim no permanente debate entre estrutura e agência.

Segundo Baert e Silva (2014), ao identificarmos atores sociais como agentes, assumimos que estes e estas são capazes de agir de acordo com a sua vontade, ultrapassando os condicionamentos da estrutura envolvente. Eles e elas podem decidir intervir ou não na estrutura em que se integram. Têm assim poder de ação ou capacidade transformadora, no sentido de Giddens (2000a). Acentuamos que este poder a que nos referimos pode ser exercido em todos os níveis de interação social, em todas as instituições e por todas as pessoas embora em diferentes graus.

Um forte condicionante a elencar nesta reflexão e que despoleta novos contornos no debate entre agência e estrutura, prende-se com a posição do e da agente na interação social, i.e., num cenário de mundo globalizado e interligado digitalmente. Castells (2002) veicula que a sociedade em rede pelo alargamento das vias de comunicação, proporciona um maior conhecimento da identidade pessoal, uma maior abertura e capacitação aos e às agentes.

Para Giddens (2002), viver na era da informação significa um aumento da reflexividade social dos atores sociais. O processo de socialização é o principal meio de transmissão da cultura através do tempo e gerações. Este mesmo processo leva a que os atores sociais se tornem agentes, com sentido de identidade própria, capacidade de pensar e agir de forma independente. Distinguimos assim a identidade pessoal que se prende com a noção intrínseca de nós próprios, da identidade social que identifica as características que os outros nos atribuem (Amâncio, 1993b).

Neste trabalho, pretendemos trabalhar a identificação social das agentes - mulheres empreendedoras - atendendo às suas motivações e à sua identidade pessoal, bem como a uma identificação da estrutura envolvente em busca de compreender a problemática do fenómeno do empreendedorismo. Neste ensejo, impele-nos procurar uma resposta cabal acerca dos princípios geradores da prática do empreendedorismo no feminino residente na estrutura social e multicultural da região algarviense.

Após conceptualizarmos a agência, recordemos que ela corresponde ao indivíduo enquanto ser com capacidade de ação. Contrapondo, uma “estrutura” corresponde aos factores de organização social que exercem influência sobre o indivíduo, tais como os sistemas de estratificação social, as instituições sociais, o sistema político (Giddens, 2002).

A agência pressupõe liberdade e autonomia, já a estrutura pressupõe uma estabilidade de padrões comportamentais entre os membros que nela coabitam. O grupo de atores sociais identifica a sua pertença ontológica numa estrutura pela forma como atuam e reproduzem as normas vigentes na mesma. Entendemos deste modo a estrutura como um sistema que tem que ter um significado para o exterior, bem como uma significância para os membros que a integram (De Castro, 2012).

Importa conhecer as forças de socialização que integram uma estrutura, e.g., família, escola, amigos, instituições, media, local de trabalho, entre os diversos elementos que podem ser alvo de uma rigorosa observação analítica. O processo de socialização é vitalício, contudo não é estanque, permitindo que os indivíduos, sob uma ótica de construtivismo social (Liu e Chen, 2010) se (re)ajustem ao sistema.

A estrutura é composta por um conjunto de valores sociais, culturais, económicos e simbólicos, os quais Bourdieu denomina como ‘campos’, tendo em vista uma observação analítica e sociológica dos mesmos (Bourdieu et al., 2004). O autor propôs o conceito de campo simbólico, identificando-o como o espaço em que ocorrem as interações entre os membros de um grupo social. Bourdieu ainda aplica o conceito de habitus que traduz a reprodução de ações inconscientes e padronizadas por parte dos indivíduos (coletivo), mas nas quais o individuo (singular) expressa a sua individualidade e personalidade. Assim, através deste processo de prática interiorizada, os membros de um grupo social apreendem os seus papéis sociais, i.e., as expectativas socialmente definidas para a sua conduta na estrutura em que se inserem. Segundo Setton (2002) é necessário considerar o habitus como um sistema flexível e em permanente construção, uma vez que se altera com o tempo. Assunção (2012) corrobora esta linha de pensamento quando refere que o habitus tem um efeito durável mas não é mecânico, é antes reproduzido através da prática e desenvolvido em torno da vida do indivíduo e segundo as suas disposições cognitivas.

Por outro lado, o conceito de capital - também de Bourdieu (2000) - quer económico, cultural, social ou simbólico identifica o acervo de forças do e da agente e a sua posição no campo - estrutura social -, i.e., o capital de um e de uma agente corresponde à sua capacidade cognitiva e dá-lhe o poder de ação. No quadro conceptual, confrontamos Bourdieu e os seus conceitos centrais – campo, habitus e capital – e a agência que tem capacidade de modificar estruturas.

Giddens (1989) insere neste debate uma dualidade de estrutura que consiste num modelo de comportamento humano e social que refere que a ação é motivada e está dependente de consequências desconhecidas e não intencionais. Assim a ação com influência estrutural é realizada de forma inconsciente tal como o habitus em Bourdieu. Este tipo de comportamento tácito é vital para a segurança ontológica do indivíduo. Todavia, esta rotina quebra-se pela vontade de mudança do indíviduo, produzida pelo conteúdo explosivo do inconsciente e a monotorização reflexiva da sua ação.

O teorema da dualidade da estrutura proposto por Giddens (2000a), remete-nos para uma abertura de interpretações em diversos domínios científicos, encadeando contributos das ciências sociais – da

panóplia de autores e autoras acima citados – de filosofia, de psicologia, de antropologia, das mais variadas correntes sociológicas, e.g., fenomenologia, etnometodologia, interacionismo simbólico, construtivismo simbólico, despoletando uma articulação constante entre níveis micro e macro da análise sociológica e relacionando os planos analítico e normativo do pensamento social.

Ressalve-se que a teoria da estruturação surge nas sociedades modernas numa perspetiva macrossociológica e é a base para o pós-estruturalismo. No pós-estruturalismo a realidade é uma construção social contínua, despertando uma pluralidade de sentidos, e todos os elementos que a integram participam. O prefixo ‘pós’ não significa necessariamente contraposição, mas sim abertura de horizontes e perspetivas de análise.

A teoria da estruturação identifica um processo ativo e contínuo da construção e reconstrução da estrutura social. Tal como o e a agente depende da estrutura, a estrutura também depende das regularidades do comportamento humano. Estrutura e ação estão implicitamente recíprocas, pois a ação só é possível na medida em que o e a agente possui o conhecimento socialmente estruturado. Esta interação, na observação sociológica, torna-se previsível e por efeito passível de ser controlada. Giddens (2002) enceta este paradigma através do conceito de reflexividade. Reflexividade pressupõe liberdade e autonomia para analisar as realidades sociais, quer pelos próprios agentes que as integram, quer pelo olhar sociológico que procura proposições válidas para explicar os movimentos da sociedade (Baert e Silva, 2014).

Giddens (1989) aprofunda a compreensão do conceito de agência, relacionando-o com a natureza da ação humana e com o self9 atuante (Mead e Morris, 1934). O autor recorre à sapiência hermenêutica e à

corrente fenomenológica trabalhada por Heidegger, para melhor explorar o seu posicionamento teórico. Para Giddens (1989), as inovações de Wittgenstein aliadas às premissas de Heidegger constituem os dois principais marcos para a construção de um novo caminho no trabalho sociológico. A ação refere-se às atividades de um e de uma agente, não se podendo por tal separá-la de uma teoria mais ampla do self atuante. “O conceito de agência tal como o defendo, envolvendo a ‘intervenção’ num mundo-objecto

potencialmente maleável, relaciona-se directamente com uma noção mais generalizada de praxis.”

(Giddens, 2000a, p. 15)

Tavares (2008) recorre-se dos postulados de Giddens para abordar o conceito de agência sujeito a um indeterminado número de condicionantes estruturais que o dominam, e.g., sexo, classe social, etnia, orientação sexual e região de origem. Segunda a autora (Tavares, 2008), esta perspetiva permite-nos abordar um feminismo de agência atendendo a um sujeito coletivo de mulheres que estão abertas à diversidade de experiências, capazes de gerar novos significados sociais. Tavares considera o feminismo de agência adequado à pós-modernidade, assim como o pós-estruturalista. Estes trazem novas questões, uma vez que presumem uma maior abertura de pensamentos críticos, mantendo, contudo, em simultâneo as mesmas preocupações anteriores acerca dos conceitos sistémicos de poder, estrutura e classes.

9O conceito de ‘self atuante’, entende-se como o ego do indivíduo e emerge na sua interação social, i.e., este conceito só faz sentido no coletivo, pois só desta forma se coloca a descoberto a particularidade de significações (significados - globais- e significâncias -individuais) - atribuídas pelas estruturas cognitivas do indivíduo - que o individuo toma perante os diferentes contextos – estruturas - em que se insere (George Herbert Mead, 1863-1931).

Para Fernandes (2011), que expressa as mesmas preocupações, “no pós-modernismo (…) o discurso

assume-se como constitutivo do exterior (social) e do interior (individual).” (2011, p. 33). A autora sublinha

que compreender o conceito de poder na sua perspetiva significa incorporar as práticas específicas de conhecimento que enformam a compreensão do mundo e de nós enquanto sujeitos sociais. Na dimensão constitutiva do ‘poder’ como capacitação e do ‘eu’ como agente ativo, Fernandes introduz que “(…) o ‘fazer

género’, deste ponto de vista, lança o convite para que se reflicta sobre a forma como as pessoas pela interacção se implicam e se realizam nos actos sociais (…)” (2011, p. 85).

Contextualizando a nossa temática de trabalho, a interação que a autora analisa envolve, pois, o percurso pessoal de cada mulher e relaciona com o coletivo nos diversos espácio-temporais. Caminhamos assim para a influência da rotinização na ação do sujeito – ator social.

Desta feita geram-se as discussões para conciliar estrutura (ou sistema) e agente (ou sujeito). Debateremos sobretudo a partir de um enfoque do poder do e da agente e a sua relação com os condicionantes da estrutura. O conceito de agência vem atribuir aos atores sociais a capacidade de agir e de delinear formas de enfrentar a vida, até então negada nos quadros teóricos funcionalista e estruturalista. Por um lado, o e a agente interpreta o mundo segundo as características de sua própria experiência de vida, por outro lado, para se viver em sociedade há que adotar um comportamento de aproximação aos parâmetros de condutas vigentes. Por este motivo se compreende que as sociedades nunca deixam de estar em processo de contínua (re)estruturação.

Partimos do pressuposto que os e as agentes são detentoras de conhecimento que lhes conferem a capacidade de ação. Para Giddens (2000a) é essa capacidade de agir e não a intencionalidade que gera a ação. Um conjunto de atores de um mesmo grupo social, com os mesmos objetivos, pode exercer um determinado tipo de poder social. É este poder que tem a capacidade de causar mudanças em relação a um estado de coisas pré-existentes. É este poder que pode aproveitar, alterar ou acrescentar novas aceções a uma determinada comunidade. Mas para que ocorram essas mesmas interações, é necessário que cada indivíduo tome consciência das suas capacidades e aja de acordo com os seus propósitos, vencendo deste modo a atribuição de significados da estrutura em que se insere, quando estes não favorecem os seus objetivos e ou usufruindo de contingências estruturais para suas concretizações.

Sem embargo, poderemos encontrar obstáculos na estrutura assim como também incentivos, os quais podem ser encarados pelos e pelas agentes como oportunidades de que podem tirar partido. Baert e Silva (2014) observam que Giddens entende as estruturas não somente como constrições mas também como facilitadoras. A estrutura não terá que constituir unicamente uma barreira à ação, pelo contrário, poderá até estar implicada na produção dessa mesma ação.

Na sua reflexão crítica, Ferreira (2005) analisa como Giddens aborda o processo de desrotinização de forma a estimular a mudança social, elencando como motivações dos e das agentes as relações antagónicas de autonomia e dependência do indivíduo, as relações de poder e o desenvolvimento de diferentes setores dos sistemas sociais. Estes são elementos geradores do processo de mutação.

A reflexividade (Giddens, 2002; Beck et al., 2006), coopera para que nos consciencializemos de nós enquanto indivíduos e de igual modo nos consciencializemos do mundo que nos envolve, encarando as

fronteiras dicotómicas e sabendo como agir perante as mesmas. O conceito de consciência pressupõe o conhecimento reflexivo das coisas e o modo como elas nos afetam, quer em termos individuais, quer em termos coletivos. Enquadramos este conceito no contexto temático em estudo, seguindo os postulados de uma sociologia compreensiva (Weber, 2010). Neste patamar importa que consigamos interpretar e compreender o mundo a nossa volta, para refletirmos de modo consciente acerca do nosso papel e da nossa posição enquanto atores sociais, tornando justificáveis as nossas escolhas de vida. Por outro lado, importa esclarecer que o conceito de consciência é também fortemente representado neste estudo no sentido de conscientização do empoderamento feminino, defendido por Lourdes Pintasilgo (Carrilho, 2015) e postulado na educação de Freire (2006), no quadro teórico de educar para o empreendedorismo e não sobre o empreendedorismo, conforme iremos desenvolver ao longo do trabalho.

Penna (2012) estuda o espectro da capacidade de agência e reflexividade na teoria sociológica contemporânea, constatando que Giddens se encontra no centro dos autores que dão primazia às capacidades cognitivas dos e das agentes (dentro dos seus limites gnosiológicos) e concomitantemente à organização social promovida por determinada estrutura social. Segundo a nossa perspetiva, Giddens apresenta-se numa dupla hermenêutica entre as validades heurísticas e a experiência dos e das agentes. Para o enquadramento da nossa análise temática, esta é a posição adequada a adotar no espectro teórico.

Importa relacionar toda esta conceptualização paradigmática com o foco do nosso trabalho,

Empreendedorismo no Feminino na região do Algarve, onde nos propomos analisar a problemática de género

e a realidade do mercado de trabalho na região. Este ponto de desenvolvimento teórico vincula-nos a premência de investigar até que ponto as mulheres empreendedoras desta região são autónomas, criativas e detêm o auto-controlo de suas vidas, ou se a maioria das suas ações resulta de forças sociais exteriores e até que ponto são influenciadas por factores estruturais. Estes factores estruturais estão relacionados com as condições de vida e de trabalho contemporâneas, que vamos de seguida debater.

1.3. A flexibilidade e a globalização do mercado de trabalho