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3 COMPAIXÃO E PROTEÇÃO: a argumentação sensibilizadora do vídeo

3.4 A TAXIS DE LULA NO DISCURSO DO VÍDEO DESPEDIDA À NAÇÃO – “o cerne

3.4.1 O exórdio (prooemion, proêmio)

O exórdio inicia o discurso e, sobre ele, Reboul (2004, p. 55) é categórico ao afirmar que sua função é fundamentalmente fática30: “tornar o auditório dócil, atento e benevolente”. Aristóteles (2005, p. 279) define o proémio como correspondente ao prólogo na poesia e ao prelúdio na música, afirmando ainda que, como estes, o exórdio é uma preparação do caminho para o que há de vir no restante do discurso.

O discurso de despedida de Lula tem um exórdio que chama a atenção do auditório para aquilo que será pronunciado nos próximos dez minutos. Apesar de versar sobre algo que o auditório já possa ter conhecimento, e, nesse sentido, conforme Aristóteles (2005, p. 283), constitui algo muito comum no gênero retórico deliberativo, Lula utiliza do exórdio como ornamento para prosseguir a apresentação de sua prestação de contas.

Lula DN - 12: O Exórdio do Discurso

Queridas brasileiras e queridos brasileiros, dentro de poucos dias, deixo a Presidência da República. Foram oito anos de luta, desafios e muitas conquistas. Mas, acima de tudo, de amor e de esperança no Brasil e no povo brasileiro. Com muita alegria, vou transmitir o cargo à companheira Dilma Rousseff, consagrada nas urnas em uma eleição livre, transparente e democrática. Um rito rotineiro neste país que já se firmou como uma das maiores democracias do mundo.

É profundamente simbólico que a faixa presidencial passe das mãos do primeiro operário presidente para as mãos da primeira mulher presidenta. Será um marco no belo caminho que nosso povo vem construindo para fazer do Brasil, se Deus quiser, um dos países mais igualitários do mundo. País que já realizou parte do sonho dos seus filhos. Mas que pode e fará muito mais para que este sonho tenha a grandeza que o brasileiro quer e merece.

O exemplo apresentado acima exibe um orador preocupado em apontar quão árdua foi a missão de fazer o Brasil andar nos trilhos do desenvolvimento e, ao mesmo tempo, estabelecer o curso da ação ao cravar a relevância da democracia brasileira que deu a vitória eleitoral à sua “pupila” Dilma Roussef. Reboul (2004, p.55) explica que, para Aristóteles, o exórdio é a parte do discurso que exige menos atenção, pois, no geral, o auditório já está

30 Em Linguística, o termo função fática soa como figura de linguagem que garante o contato entre o falante e

aquele com quem se fala ou destinatário. A função fática é aquela direcionada ao canal, e tem como finalidade prolongar o contato com o receptor, usando frases feitas, interjeições, repetições, lugar comum, etc.

atento para algo que já se tem exposto. No decorrer do discurso é comum o relaxamento, daí a necessidade de uma série de argumentos para fomentar o auditório.

Apesar de Aristóteles dizer que o exórdio de um discurso é o que desperta menos atenção por parte do auditório, temos em nosso corpus um exórdio que invoca forte apreensão. Ao relatar o fim de seu mandato e a vitória de Dilma Roussef, Lula exalta nossa democracia e o amor do presidente pelo povo brasileiro. Estes argumentos foram recursos persuasivos sempre utilizados por Lula para persuadir seus eleitores e governados. Digamos que Lula expressa algo como ‘vamos prestar atenção, pois isto diz mais respeito a vocês do que a mim’. Porém, há algo de importante nesta primeira parte do exórdio, ela apresenta a tônica do restante do discurso que sugere duas vias: a primeira, da prestação de contas dos oito anos de mandato que, conforme o presidente, “foram anos de lutas, desafios e muitas conquistas”. A segunda via, de defesa da continuidade, que, para Lula, será transmitida “com muita alegria” à presidente Dilma, tendo em vista sua “consagração nas urnas em uma eleição livre, transparente e democrática”.

Realmente não se estabelece uma novidade nas primeiras frases do exórdio, algo corriqueiro no gênero deliberativo, mas, ao analisar com mais acuidade as frases, encontra-se a aplicação de técnicas argumentativas para buscar a adesão inicial do auditório31. O orador passa agora a se identificar com seu auditório primordial, ou seja, grande parte do povo excluído. Quando emprega termos como “operário” e “mulher”, ele realça o peso do momento em que grupos outrora alijados do poder, podem, agora, sentir-se representados no primeiro operário e na primeira mulher com vitórias nas eleições presidenciais.

Na parte II do exórdio, entende-se que o gênero retórico epidíctico também está presente. Aristóteles (2005, p. 283) alega que “nos discursos epidícticos, é necessário fazer o ouvinte pensar que partilha do elogio, ou pelo menos algo deste tipo”. Aqui se descobre como o orador busca a benevolência de seu auditório. A via é apresentar, como tese de adesão inicial, a proposta da possibilidade de ascensão social, ou seja, o operário e a mulher que se tornaram presidentes são exemplos para os milhões de excluídos do Brasil que pretendem alçar melhores condições de vida. Tudo isso apresentado como um verdadeiro sonho que, de acordo com o orador, já fora conquistado parcialmente, mas que ainda pode-se

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A tese de adesão inicial é a tese preparatória. Quando o auditório concorda com ela, a argumentação ganha estabilidade, pois é fácil partir dela para a tese principal. As teses de adesão inicial fundamentam-se em fatos ou presunções. Os fatos fazem o auditório concordar com uma tese, já as presunções contribuem com a adesão inicial pois são suposições fundamentadas dentro daquilo que é normal ou verossímil (ABREU, 2009, p.44).

alcançar muito, para isso basta confiar naqueles que saíram do meio do povo excluído e fizeram história.

Baseando-nos nas técnicas argumentativas postuladas por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 298), identificamos aqui os argumentos quase-lógicos. Os argumentos quase-lógicos são aqueles que visam a fundar a estrutura do real. Apesar do esforço da demonstração formal, quem analisa percebe as diferenças entre as argumentações e as demonstrações formais, por isso recebem o nome quase-lógicos. Perelman e Olbrechts- Tyteca (2005, p. 220) expõem que “o que caracteriza a argumentação quase-lógica é, portanto, seu caráter não-formal e o esforço mental de que necessita sua redução ao formal”. Em um argumento quase-lógico, o esquema formal é apresentado inicialmente e servirá como padrão da edificação do argumento. Sequencialmente, demonstram-se as operações de redução que permitem inserir os dados no esquema formal e projetam seus semelhantes, comparáveis, homogêneos.

O argumento quase-lógico está presente logo no início do exórdio, quando é apontado o sacrifício. Buscando a aprovação do governo, Lula destaca os anos de luta, desafios e sacrifícios frente ao governo do país. O valor do fim que se persegue por meio do sacrifício transforma-se, igualmente, no decorrer da ação, por causa dos próprios sacrifícios aceitos. Chegar ao tão sonhado “país mais igualitário do mundo” depende do grau de comprometimento dos governantes. O peso do discurso de Lula funda-se na sua aceitação pelo sacrifício de mover o sonho de milhões de brasileiros. É fato que o orador em questão tem o apreço de seu auditório, que lhe confere o grau de credibilidade necessária, ou seja, a pesagem do respeito. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 282) evidenciam: “Se, no argumento do sacrifício, a pesagem compete ao indivíduo que aceita o sacrifício, o significado deste último aos olhos alheios depende do apreço por aquele que efetua a pesagem”.

O exórdio é a exibição do discurso e sua contextualização. Um momento único para captar a adesão do auditório, assim, o orador em questão parte de coisas que não promovem debate, como sonhos, sacrifícios, desejos e, até mesmo, dos amparos divinos. Estes elementos, segundo Aristóteles, relacionam-se com o auditório para obter sua benevolência.

Todos estes recursos, se se quiser, levam a uma boa compreensão e a apresentar o orador como um homem respeitável, pois a este os auditores prestam mais atenção. São também mais atentos a temas importantes, a coisas que lhes digam respeito, às que os encham de espanto, às agradáveis (ARISTÓTELES, 2005, p. 282).

Utilizando-se desses mecanismos, Lula produz um primeiro acordo com o auditório, que começa a se predispor a ouvi-lo e admitir suas conclusões.