• Nenhum resultado encontrado

3 COMPAIXÃO E PROTEÇÃO: a argumentação sensibilizadora do vídeo

3.4 A TAXIS DE LULA NO DISCURSO DO VÍDEO DESPEDIDA À NAÇÃO – “o cerne

3.4.4 O Epílogo: o uso da intertextualidade como estratégia argumentativa

A intertextualidade está presente nas manifestações da linguagem e se mostra presente em textos científicos, políticos, religiosos, etc. De acordo com Koch e Elias (2008), a intertextualidade ocorre quando um texto está inserido em outro texto (intertexto) que já fora produzido anteriormente, e “faz parte da memória social de uma coletividade” (KOCH;

ELIAS, 2008, p. 86). Em nosso corpus analisamos a intertextualidade como um recurso argumentativo que busca incorporar vozes de outros enunciadores para arregimentar estratégias para a persuasão. Koch e Elias (2008) apresentam a intertextualidade como um fator de coerência de um texto e, para seu processamento cognitivo, busca-se o conhecimento de outros textos. As pesquisadoras da linguagem propõem, ainda, que todo texto é um intertexto, pois quando temos outros textos presentes nele, mesmo que sendo em formas variáveis, podem ser reconhecidos de forma acentuada ou menos acentuada dentro deles.

Para Koch (2004, p. 59), todos os textos são objetos heterogêneos, possuindo forte ligação com seu interior e exterior. Quando analisamos o lado exterior do texto, encontramos outros textos que, possivelmente, de acordo com Koch (2004, p. 59), “lhe dão origem, que o predeterminam, com os quais dialoga, que retoma, a que alude, ou a que se opõem”. Portanto, a intertextualidade apresenta-se de forma diversificada e produz efeitos de sentido variados. Como recurso linguístico argumentativo, a intertextualidade permite a utilização de algo já dito (texto), e produz um argumento significativo para sustentar uma proposta ou tese que estiver em defesa, conforme conclui Santos (2013):

Como recurso linguístico, a intertextualidade é usada numa perspectiva funcional, a partir da qual se busca realizar determinados propósitos comunicativos do autor. O texto geralmente é intertextualmente misto, pois, como vimos, é possível que um texto ou enunciado seja atravessado por diferentes tipos de intertextualidade. Isso vai depender da intencionalidade do autor e de suas respectivas escolhas. Relacionada à escolha do intertexto podem estar associados aspectos ideológicos inerentes à esfera comunicativa na qual o texto está inserido (SANTOS, 2013, p. 313).

O orador, para utilizar a intertextualidade em um discurso, leva em conta sua forma de expressão, sua escolha, além do próprio estilo do gênero. Em um estudo sobre a intertextualidade aplicada como estratégia argumentativa nos discursos políticos, Santos (2013) diz que Koch e Elias (2008) entendem a intertextualidade classificada como temática, estilística, explícita e implícita. No quadro abaixo procuramos resumir as características da classificação proposta por Koch e Elias (2008):

Quadro 2 – A Intertextualidade segundo Koch e Elias (2008).

Intertextualidade

Forma Características Exemplos de intertextualidade

Explícita Citação da fonte do intertexto Citações diretas para validar um

discurso

Implícita Presença do intertexto, sem

menções explícitas;

Direção de um discurso, considerando o conhecimento partilhado pelo leitor

Fonte: KOCH; ELIAS, 2008.

Analisando nosso corpus, entendemos que a intertextualidade implícita foi utilizada como recurso argumentativo para constituir o texto do discurso “Despedida a

Nação”. A intertextualidade implícita ocorre sem citação da fonte, cabendo ao interlocutor

recuperá-la na memória para construir o sentido do texto, conforme dizem Koch e Elias (2008, p. 92): “Nesse caso, exige-se do interlocutor uma busca na memória para a identificação do intertexto e dos objetivos do produtor do texto ao inseri-lo no seu discurso”.

A intertextualidade implícita presente no corpus desta pesquisa encontra-se nos parágrafos finais do discurso de despedida de Lula e da carta-testamento de Getúlio Vargas. Getúlio Vargas, no seu governo de 1951 a 1954, frente a pressões políticas, suicidou-se e despediu-se do povo em uma carta-testamento. Essa carta, publicada em 25 de agosto de 1954 pelo Jornal do Brasil, expõe a preocupação do “Pai dos Pobres” (como Vargas era denominado pelo seu Departamento de Propaganda) com a continuidade da vida das massas e justifica o seu suicídio como a forma de libertar o povo brasileiro da escravidão. Já no discurso de Despedida à Nação, Lula não apresenta a fonte e, de forma implícita, remete ao texto da carta-testamento de Vargas a fim de produzir determinados efeitos de sentido através de substituições e acréscimos no enunciado-fonte (no caso, aqui, a carta-testamento).

Comparando os discursos de despedida desses dois presidentes, identificamos as estratégias argumentativas de dois oradores políticos de grande capacidade retórica. O trecho apresentado a seguir faz parte da carta-testamento de Vargas.

Vargas CT - 1: Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma

pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado.

Na carta-testamento, encontramos as expressões “tenho lutado mês a mês, dia

jamais fugiu à luta e tudo foi feito para defender seu povo. A posição política de Vargas nos anos que antecedem o suicídio é decadente. A criação da Petrobrás e um aumento do salário- mínimo em 100% foram mais do que suficientes para alardear o coro dos que pediam sua saída da presidência da República. Somado a isto um atentado contra o jornalista e ferrenho opositor, Carlos Lacerda, incendiou a oposição que queria a renúncia. Mas Vargas relutava em concordar. Para um político que se colocava nos braços do povo, a renúncia seria humilhante. Quando as pressões eram incontroláveis, prometeu e cumpriu: do Palácio do Catete só sairia morto. Um tiro no peito e uma carta-testamento dão a tônica emocional da despedida.

Lula remete à fala de Vargas e se coloca como homem do povo, aquele que não desiste e promete ao final do mandato, conforme identificamos no trecho 11 do discurso de despedida: “Homem do povo que sempre fui, serei mais povo do que nunca, sem renegar o

meu destino e jamais fugir à luta”. Isso significa estar junto de seu povo, agora mais do que

nunca, pois este povo não pode se sentir desamparado. Diferente da posição política de Vargas, ao final do mandato, de acordo com as pesquisas da época, Lula possuía uma alta popularidade. De acordo com Lula, isso foi construído com a “força do povo” e essa força é que o alimenta para lutar sempre.

A repercussão das despedidas em questão, embora distintas na forma, apresentam o apelo às emoções do auditório. A “luta” proposta por estes líderes faz o povo acreditar que seus mandatários jamais esqueceriam aqueles que os conduziram ao cargo mais alto da nação. Ainda no trecho final da carta, encontramos uma intertextualidade implícita que substitui palavras do texto da carta-testamento.

Vargas CT - 2: Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem

sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício nos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência.

Lula DN - 22: Minha felicidade estará sempre ligada à felicidade do meu povo. Onde

houver um brasileiro sofrendo, quero estar espiritualmente ao seu lado; onde houver uma mãe ou um pai com desesperança, quero que minha lembrança lhes traga um pouco de conforto; onde houver um jovem que queira sonhar grande, peço-lhe que olhe a minha história e veja que na vida nada é impossível. Vivi no coração do povo e nele quero continuar vivendo até o último dos meus dias.

Os trechos acima soam quase como uma “Oração de São Francisco”34. Até mesmo no que se refere à história do santo, o homem poderoso que abandonou toda riqueza e ofereceu em sacrifício aos pobres. Getúlio e Lula projetaram sua liderança política baseada no clamor das massas populares. Utilizaram da cartilha populista para se colocarem como a salvação do povo. A felicidade deles dependia da suposta realização social dos pobres. Sentimentos de esperança, cuidado, amparo e promessa de não deixar o povo desamparado são encontrados e têm o objetivo retórico de despertar as emoções do auditório.

A intertextualidade está proposta nos discursos de Vargas e Lula como uma forma de argumentar ou mesmo de buscar o que fora dito, abrindo perspectivas para novas significações ou, então, para confirmar as teses anteriormente defendidas. Separando as frases dos trechos citados, justificamos nossas argumentações.

Quadro 3 – Argumentações

Emoções despertadas pela intertextualidade

Lula Vargas

Confiança/Amparo Vivi no coração do povo e nele

quero continuar vivendo até o último dos meus dias.

Escolho este meio de estar sempre convosco.

Esperança/proteção/ ternura

Onde houver um brasileiro

sofrendo, quero estar

espiritualmente ao seu lado; onde houver uma mãe ou um pai com desesperança, quero que minha lembrança lhes traga um pouco de conforto; onde houver um jovem que queira sonhar grande, peço- lhe que olhe a minha história e veja que na vida nada é impossível.

Quando vos humilharem

sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação.

Perpetuidade Saio do governo para viver a

vida das ruas.

Saio da vida para entrar na história.

34

Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz. Onde houver ódio, que eu leve o amor; Onde houver ofensa, que eu leve o perdão; Onde houver discórdia, que eu leve a união; Onde houver dúvida, que eu leve a fé; Onde houver erro, que eu leve a verdade; Onde houver desespero, que eu leve a esperança; Onde houver tristeza, que eu leve a alegria; Onde houver trevas, que eu leve a luz.

Ó Mestre, Fazei que eu procure mais consolar, que ser consolado; compreender, que ser compreendido; amar, que ser amado. Pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado, e é morrendo que se vive para a vida eterna. ORAÇÃO DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS. Oração. Disponível em: <http:// www. bahai. org.br/oracoes/oracao-de-sao-francisco-de-assis>. Acesso em: 07 jan. 2015.

Os trechos apresentados evidenciam que Lula, em seu discurso de Despedida à

Nação, aparentemente de forma intencional, remeteu implicitamente à carta-testamento para

evocar o mito do “Pai dos Pobres”. O auditório mais expressivo de Lula talvez nem compreenda tal referência, mas as partes da carta testamento evocadas por Lula suscitam sentimentos populares que contribuem para aumentar a credibilidade do orador. A religiosidade presente nas palavras de esperança, proteção e ternura evocam emoções que colocam os líderes como verdadeiras santidades. Uma massa popular fiel e crédula crê nas garantias oferecidas por Lula e Vargas, inclusive na perpetuidade destes relatada nos trechos finais dos textos citados. Considerando o exposto, entendemos, conforme destacam Koch e Elias (2008, p. 95), que o “efeito de sentido provocado pelo deslocamento ou transformação dos ‘velhos’ textos e o propósito comunicacional dos novos textos constituídos” revela a presença da intertextualidade entre a carta testamento de Vargas e o discurso de despedida de Lula.

3.5 A ELOCUÇÃO E AS FIGURAS RETÓRICAS DE ACUMULAÇÃO E COMUNHÃO

Examinando o discurso de despedida, encontramos também algumas figuras de retórica. Fiorin (2014, p. 27) instrui que a palavra argumento é formada pela raiz argu-, que significa “fazer brilhar, cintilar”, ou seja, “o argumento é o que realça, o que faz brilhar uma ideia”. As figuras são estudadas na retórica como traços, formas onde o discurso afasta-se do corriqueiro. A figura de retórica, para Fiorin (2014, p. 28), “é um desvio, que incide sobre a palavra, a frase ou discurso. (...) é uma construção livre, que está no lugar de outra”.

Nas últimas duas frases do exórdio do discurso, temos o uso figurativo da palavra sonho relacionado à grandeza e ao desenvolvimento do povo brasileiro. Nas frases já citadas, no trecho 12, Lula destaca que o “país que já realizou parte do sonho dos seus

filhos”, mas “que pode e fará muito mais para que este sonho tenha a grandeza que o brasileiro quer e merece”.Encontramos aqui a figura de gradação ou clímax. Fiorin (2014, p. 147) expressa que esta figura expande o enunciado “numa intensificação crescente, com palavras ou grupo de palavras de significado relacionado”. A palavra sonho é construída como mote principal da motivação do orador ao seu auditório. Dispostas em ordem progressiva de proporção, as palavras indicam a transformação. Parte do sonho já fora realizado, porém o

país é capaz de promover mais e dar a grandeza que o brasileiro deseja e é digno. O sonho de grandeza do povo brasileiro está disposto numa ordem ascendente e expõe um pouco mais que os sonhos já realizados.

Analisando o restante do discurso, apresentam-se as figuras retóricas de comunhão. O discurso político publicitário de Lula, amparado no marketing político, cria a comunhão com o auditório através de procedimentos literários. Para Perelman e Olbrechts- Tyteca (2005, p. 201-202), “a comunhão cresce igualmente por meio de todas as figuras pelas quais o orador se empenha em fazer o auditório participar ativamente de sua exposição, atacando-o, solicitando-lhe ajuda, assimilando-se a ele”. No caso específico do nosso corpus, identificamos a figura retórica de comunhão através da enálage da pessoa ou do número. Através da permutação do “eu” pelo “nós” e de “povo” pelo “sofredor”, o orador procura assimilar ao seu auditório, conforme observamos na frase citada no trecho 13: “hoje cada

brasileiro e brasileira acredita mais no seu país e em si mesmo. Trata-se de uma conquista

coletiva de todos nós”; ainda, na frase do trecho 14: “foi com essa energia no peito que nós,

brasileiros e brasileiras, afugentamos a onda de fracasso que pairava sobre o país quando assumimos

o governo”.

As expressões utilizadas por Lula reforçam sua comunhão com o auditório, pois ele se coloca como um dos brasileiros que lutam para ter um país onde as pessoas acreditem na coletividade, igualdade e esperança. Para que isso ocorra, é preciso que o presidente caminhe junto aos governados, e Lula propõe-se a fazer isso, até mesmo porque esta é uma garantia da futura governabilidade de Dilma Roussef, conforme as recomendações do orador feitas em seu discurso. Lula exorta que ser mais um dos milhões de brasileiros é comungar com suas dores, alegrias, vitórias e frustrações.

A figura de comunhão de apóstrofe também pode ser encontrada no discurso. Lula aponta de forma direta para o auditório relatando suas realizações durante o mandato, porém, em alguns momentos promove um distanciamento da proposta enunciada. Aqui não se objetiva o acordo, mas sim uma reflexão sobre as realizações expostas, assim como exemplificamos com trechos do discurso:

Lula DN - 23: Este país que, depois de produzir seguidos espetáculos de crescimento

e inclusão, vai sediar os dois maiores eventos do planeta: a copa do mundo e as olimpíadas. Este país que reduziu a desigualdade entre as pessoas e entre as regiões e vai seguir reduzindo-a muito mais. Este país que descobriu que não há maior conquista do que recuperar a autoestima do seu povo.

Apesar de o discurso conter informações e dados correspondentes à efetividade administrativa de Lula no país entre os anos de 2002 a 2010, o orador convida o auditório a refletir sobre a importância de todos os investimentos feitos para acelerar o crescimento. O acordo é secundário quando aplicamos a figura de comunhão, pois, relatando quase uma a uma as obras realizadas por sua gestão, reafirma a importância das obras realizadas e o retorno sobre o suposto bem-estar que estas trarão para o povo brasileiro.

A enumeração das obras propostas na narração do discurso pode ser traduzida como figuras de acumulação, conforme define Fiorin (2014, p. 141): “Trata-se da figura retórica denominada conglobação, enumeração ou epimerismo, que consiste em enumerar os diversos aspectos de um objeto ou de um evento”. O desenrolar do discurso é uma enumeração detalhada das obras e resultados dos projetos governamentais do governo Lula. A expansão do texto intensifica o sentido, pois o detalhamento torna viva a prestação de contas ao final do mandato. Desafiando qualquer classificação, a figura retórica de conglobação emprega a multiplicidade dos atos governamentais para dar dinamismo e complexidade para as palavras do presidente Lula. Vejamos os exemplos nos excertos abaixo (grifos nossos):

Lula DN - 24: Nosso modelo de governo também permitiu que o salário-mínimo tivesse

ganho real de 67% e a oferta de crédito alcançasse 48% do PIB em 2010, um recorde

histórico. O investimento em agricultura familiar cresceu oito vezes e assentamos 600

mil famílias, metade de todos os assentamentos realizados no Brasil até hoje.

Lula DN – 25: Com o Luz para Todos, levamos energia elétrica a 2 milhões e 600 mil

pequenas propriedades, e, através do Minha Casa Minha Vida, estamos construindo 1 milhão de moradias, e as famílias que recebem até 3 salários-mínimos serão as mais beneficiadas.

Os excertos apresentados suprimem as possibilidades de ligação do texto e apresentam variados elementos de forma sucessiva. O discurso de Lula desencadeia uma série de realizações que retratam investimentos realizados nas áreas da saúde, educação, infraestrutura, entre outras. No trecho 24, Lula destaca as conquistas sociais obtidas pelo Programa de Agricultura Familiar, ao mesmo tempo em que expõe o crescimento do PIB. O trecho 5 apresenta resultados de reservas internacionais obtidas durante o mandato, destacando que “temos quase US$ 300 bilhões de reservas internacionais próprias, dez vezes mais do que

tínhamos no início do nosso governo. Nossa taxa média anual de crescimento dobrou”.

Percebemos que não há uma prestação de contas por setor administrativo, o presidente valoriza os números obtidos pela equipe gestora do país. A estratégia de utilização de números em

milhões e bilhões agrada aos ouvidos do auditório, pois qualifica a grandeza das realizações e, assim, o discurso ganha em credibilidade.