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4 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS POLÍTICAS DE AVALIAÇÃO DA

4.7 Exame Nacional de Cursos

No Governo FHC, as reformas neoliberais são retomadas com ímpeto e têm, no ensino superior, um de seus principais alvos. Segundo Lima (2005), Shiroma, Moraes e Evangelista (2007), o processo de reformulação do ensino superior brasileiro teria sido orientado por documentos de organismos internacionais, como o Banco Mundial, a UNESCO e a CEPAL, preconizando medidas de liberalização nesse nível de ensino para expandir o sistema de ensino superior e também de adequá-lo às necessidades do mercado. Segundo tais documentos, as conclusões desses organismos internacionais indicavam que a ES passava pela crise de financiamento, de qualidade, de eficiência, de demanda, e de não atendimento às reais necessidades do mercado de trabalho, conforme mencionei anteriormente.

Sob a ótica de Barreyro, Rothen (2008b), Shiroma, Moraes e Evangelista (2007), mesclado a esse diagnóstico, vinha o pressuposto de que certas atividades estatais poderiam ser mais bem desenvolvidas pelo mercado, assim o Estado se desincumbiria da prestação de vários serviços, cabendo-lhe, entretanto, a regulação e a supervisão, por meio de agências reguladoras autônomas, das atividades a serem privatizadas. Dessa forma, os objetivos desse novo Estado avaliador seriam:

[...] garantir a competitividade privada; defender os interesses dos consumidores; estimular o investimento privado; garantir a remuneração dos investimentos; aumentar a qualidade com a redução de custos; resolver os conflitos entre os agentes econômicos e coibir o abuso do poder econômico (BARREYRO; ROTHEN, 2011b, p. 300).

Nesse contexto, embora descentralizando a oferta de ensino superior através de sua ampliação pela iniciativa privada, o papel de coordenador e supervisor do sistema pelo MEC foi reforçado para estabelecer uma sistemática de avaliação que averiguasse a qualidade do produto educação. Para tanto, promulgou-se a lei nº 9.131/95, que, ao mesmo tempo em que cria o Conselho Nacional de Educação (CNE), com menos atribuições que o antecessor CFE, estabelece as linhas gerais do novo processo de avaliação, que instituirá o ENC, posteriormente popularizado como Provão (ZAINKO, 2008b).

Focado em resultados, o ENC visava medir os conhecimentos de concludentes dos cursos de graduação, selecionados por publicação de portaria do MEC, tendo como base

conteúdos mínimos estabelecidos nacionalmente pelas Diretrizes Curriculares Nacionais18. O objetivo do exame era coletar dados para a comparabilidade entre as IES (ZAINKO, 2008b).

A partir da promulgação da lei nº 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a avaliação como política permanente de controle da qualidade do ensino, o credenciamento por tempo determinado para instituições de ensino, reconhecimento de cursos por meio de processos avaliativos e a diversificação legalmente incentivada de IES, propiciaram condições de aumento da oferta na ES pela privatização incremental da demanda (LIMA, 2005). Assim, a avaliação deslocou-se de sua função anterior no PAIUB, de diagnóstico pelas próprias IES para seu autoaperfeiçoamento, para tornar-se instrumento de controle externo do governo com objetivos regulatórios e coercitivos (WEBER, 2010).

Diferentemente do PAIUB, o ENC iniciava-se externamente à instituição por meio da seleção, através da publicação anual de portaria pelo MEC, dos cursos de todos os estabelecimentos cujos alunos concludentes deveriam se submeter obrigatoriamente ao exame, sob a pena de não recebimento do diploma. Os resultados globais e a classificação de cada curso eram encaminhados às instituições, ao passo que o aluno recebia seu resultado e sua classificação individual pelos correios (VERHINE; DANTAS, 2005).

Segundo Verhine e Dantas (2005), para ampliar o universo da coleta de dados, o Governo baixou o Decreto nº 2.026/96, que estabeleceu novos critérios de análise por meio da criação do Censo da Educação Superior, para coleta detalhada de dados das instituições, e da Avaliação das Condições de Oferta (posteriormente renomeada Avaliação das Condições de Ensino) (POLIDORI; MARINHO-ARAÚJO; BARREYRO, 2006; BERTOLIN, 2004), esta realizada por meio de questionário socioeconômico respondido pelos alunos. Também existia a Avaliação Institucional, realizada por uma equipe de especialistas da universidade e por especialistas enviados pelo MEC; contudo, esta avaliação geralmente ocorria com a finalidade básica de verificação de dados in situ para o credenciamento e recredenciamento de instituições (VERHINE; DANTAS, 2005).

Verhine e Dantas (2005) asseveram que, embora existindo outros instrumentos avaliativos, o Provão não apenas se sobrepunha em termos de visibilidade, como também era o ponto de partida de todo o processo, de modo que o desempenho do curso e da instituição

18 Segundo SALES (2010), as Diretrizes Curriculares Nacionais são “um conjunto de deliberações doutrinárias,

normativas, que visam orientar as instituições brasileiras de ensino na organização, articulação, desenvolvimento de suas propostas pedagógicas. O objetivo das diretrizes é fornecer subsídios para a consolidação de uma educação de qualidade, extensiva a todas/os as/os brasileiras/os. De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN – Lei 9.394, promulgada em dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), compete à União a deliberação das diretrizes curriculares. Essa atribuição é exercida pelo Conselho Nacional de Educação – CNE –, instituído pela Lei 9.131 de 1995” (s/p).

ficava diretamente vinculado ao desempenho discente no exame, independentemente de quaisquer condicionalidades. Como, na visão de Barreyro e Rothen (2011b), cabia ao MEC a definição dos parâmetros de qualidade e também de avaliação de todo o sistema, as instituições públicas sofreram um esvaziamento em suas prerrogativas didático-pedagógicas. O MEC, assim, passava a interferir diretamente na organização e no processo educacional das universidades, retirando-lhes, em consequência, parte de sua autonomia pedagógica.

Nesse sentido, Abreu Júnior alerta que

Esse modelo, inserido em uma macropolítica de contração do Estado, conforme as ideias neoliberais, leva à restrição orçamentária e delega ao mercado a manutenção do sistema, reservando-se a prerrogativa de ditar os mecanismos básicos de avaliação em detrimento dos processos que incentivem o amadurecimento institucional, como os autoavaliativos. Pode-se afirmar que esse modelo promoveu a demolição do comprometimento e da responsabilidade da comunidade para com o desenvolvimento institucional (2009, p. 263).

O ENC possibilitou ao governo subsídios para a consolidação do mercado de ensino superior, pois lhe permitiu condições de ampliar a oferta de vagas na ES pela iniciativa privada (ABREU JÚNIOR, 2009). O ENC, ao ser concebido e realizado externamente ao ambiente acadêmico e por desconsiderar as condições de precarização das instituições públicas, incentivou um ambiente de intensa concorrência interinstitucional e de desresponsabilização das universidades quanto à sua função social de prover subsídios para o desenvolvimento social e científico brasileiro, uma vez que a educação passou a ser regulamentada como mercadoria (WEBER, 2010).

O Provão foi duramente criticado desde sua implementação em 1995 até sua extinção em 2003, pelo Governo Lula. Muitas das críticas ensejaram campanhas de boicote ao exame pelo movimento estudantil e total indiferença ou descrédito junto aos professores, especialmente de IES públicas (VERHINE; DANTAS, 2005). Mesmo caindo nas graças de IES privadas, que organizavam até cursinhos preparatórios para o ENC, o Provão foi duramente criticado por especialistas em avaliação, por não elaborar critérios claros de mensuração e comparação dos resultados, desprezar a análise do processo de ensino- aprendizagem, e focar-se apenas no produto, com grande prejuízo para a validade desse instrumento como recurso auxiliar na elaboração de políticas para a ES (BARREYRO; ROTHEN, 2008b; VERHINE; DANTAS, 2005; ABREU JÚNIOR, 2009).

Na campanha presidencial de 2002, um dos itens mais importantes da plataforma da Coligação Lula Presidente era a transformação substancial da sistemática de avaliação da

ES por meio da diversificação do enfoque avaliativo e do aumento da participação da comunidade acadêmica na elaboração da nova política de avaliação (BARREYRO, 2004).

Iniciaram-se os debates de proposição de um novo sistema de avaliação que realmente fosse global, participativo e formativo. A avaliação, assim, era entendida como um aspecto importantíssimo nas políticas públicas de ES (BARREYRO; ROTHEN, 2006). Juntamente a isso, também se construíram propostas de democratização do acesso ao ensino superior por meio da ampliação de vagas nas instituições públicas e pela institucionalização de um programa de financiamento de bolsas de estudos em instituições privadas (BARREYRO, 2009). Ainda no primeiro ano do Governo Lula (2003 – 2010), o ENC foi aplicado junto aos concludentes de 26 cursos das mais diversas áreas, concomitantemente ao desenvolvimento de uma nova proposta de avaliação da ES (BARREYRO; ROTHEN, 2006).

Embora muito contestado pela comunidade acadêmica, o ENC sedimentou a noção de que avaliação coincide com mensuração e comparação e de que sua maior finalidade deve ser o controle da qualidade e regulação da oferta de ES. Além disso, ao longo do tempo, o Provão enraizou práticas que acabaram por naturalizar essa concepção de avaliação, que se desenvolveu concomitantemente ao processo de semiprivatização das IES estatais e de sua maior inserção no mercado educacional através da prestação de serviços de consultoria, treinamento e capacitação para empresas.

Nesse sentido, o Provão deixou um legado para a ES, que esteve à espreita ao longo do processo de discussão e elaboração do SINAES, de modo que este foi bastante influenciado pela perspectiva de regulação e controle, ainda que concebesse a avaliação como forma de conhecimento para a melhoria institucional. Como veremos, os embates em torno da ideia de ES e de sua avaliação continuaram ao longo do processo de implementação do SINAES e suas constantes regulamentações pelo governo federal, ao privilegiar o ENADE como instrumento de avaliação e controle, demonstram a força do legado do Provão.

No capítulo seguinte, apresento e analiso com mais detalhes as discussões sobre a elaboração do SINAES, os conflitos existentes em sua implementação e a forma como o legado do Provão reorientou os sentidos, objetivos e usos da avaliação de IES por meio da reconfiguração do papel do ENADE na operacionalização do SINAES e das políticas de controle e regulação da ES.