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Existe uma outra instituição judaica que devemos notar co­ mo tendo relação com nossa leitura dos quatro evangelhos: ela é o Sinédrio, que nos dias do Novo Testamento era o supremo tribunal civil e religioso da nação judaica. Pertence para sempre a esse cor­ po representativo a verdadeira responsabilidade pela crucificação do Messias de Israel, o Filho encarnado de Deus. Pôncio Pilatos foi simplesmente o “ carimbo" do império romano que completou a terrível injustiça. Além do mais, a fim de apressar o crime, o Siné­ drio violou seu próprio código de honra.

O Sinédrio é citado em todos os versículos que se seguem, embora o leitor talvez nem suspeite, pois a palavra grega sunedrion

é traduzida por “ con cílio” : Mateus 26.59; Marcos 14.55; 15.1;

Lucas 22.66; João 11.47; também Atos 4.15; 5:21, 27, 34, 41; 6:12, 15; 22:30; 23:1, 6, 15, 20, 28; 24:20. A tradução da Socie­ dade Bíblica do Brasil tem “ Sinédrio".

Tratava-se de uma instituição notável, como até nossas breves notas mostrarão. Além do Sinédrio central, metropolitano, havia sinédrios menores, locais, ou “ co n cílio ” (Mt 5.22). Havia de fato dois deles na capital propriamente dita, na entrada para o monte do templo e no salão do templo respectivamente, que tratavam de questões menores do que as julgadas pelo “ Grande Sinédrio” . Mas nosso interesse maior nestas notas está ligado ao “ Grande Siné­ drio”, o supremo concílio judicial e administrativo do povo judeu.

Origem

A tradição dos judeus, com sua habilidade para considerar an­ tigas as inovações judaicas, remonta a instituição do Sinédrio à época em que Moisés designou os setenta anciãos para julgar o povo (Nm 11). Mais tarde, segundo se conta, no início da monarquia, o rei Saul foi presidente do mesmo e jônatas vice-presidente. Ele continuou através do exílio na Babilônia, sendo tempos depois reorganizado por Esdras entre o remanescente que voltou à Judéia.

Mas o Sinédrio que aparece nos Evangelhos e Atos não tem uma origem tão antiga, embora já tivesse nessa ocasião algumas centenas de anos. Nem os livros históricos nem proféticos do Ve-

lho Testamento mencionam qualquer instituição que pudesse ser identificada com o Sinédrio. Não há também qualquer indicação de um outro grupo comparável, nos primeiros anos após o exílio. Ao se iniciarem os séculos intertestamentários, pode ter havido, mesmo sob o dom ínio persa, algum acordo entre a corte e o sumo sacerdote em suas responsabilidades administrativas, mas não há

evidência disso.

O nome Sunedrion, pelo qual a instituição se tornou conhe­ cida, sugere uma origem após o impacto grego de 333 a.C. Além do mais, um concílio supremo como o Sinédrio só poderia ter sur­ gido durante uma época em que os judeus tivessem ampla permis­ são para se autogovernarem, o que aponta novamente para o pe­ ríodo sub-grego, quando o primeiro dos três ptolomeus (323­ 222 a.C.) favoreceu a expansão do governo próprio. Além do mais, se, como diz a tradição judaica, a “ Grande Sinagoga” desa­ pareceu cerca de 300 a.C. com Simão o Justo, o que restou da mesma, passando para um sínodo do tipo encontrado no Siné­ drio iria adequar-se à conjuntura que mencionamos. Como dado histórico complementar, sabemos que um sínodo ou senado dessa espécie se achava funcionando e era evidentemente bem conheci­ do por volta de 202 a.C., pois um decreto de A n tío co o Grande refere-se então a ele como a Gerousia — cujo nome indica a super­ visão por parte dos anciãos, o qual reaparece em Atos 5.21, tra­ duzido como “ senado” .

Foi desta Gerousia, que provavelmente originou-se no início do terceiro século a.C. e substituiu a “ Grande Sinagoga” , que se desenvolveu o Sinédrio. Cerca do final do período intertestamen- tário nós o encontramos suficientemente poderoso para denunciar o jovem Herodes (mais tarde Herodes o Grande) por seus excessos como governador da Galiléia — embora tivesse perdido a coragem quando Herodes apareceu vestido de púrpura real e acompanhado de guardas armados. Podemos dizer que o Sinédrio dos Evangelhos e Atos era uma instituição de cerca de trezentos anos, embora na­ turalmente acumulasse tradições e ligações que se projetavam em direção ao passado, avançando muito além de sua origem histórica.

Ao que parece, o Sinédrio foi temporariamente dissolvido durante a revolta dos macabeus, devido às pressões do período, sendo porém restaurado depois da conclusão vitoriosa desse con­ flito.

Constituição

A maior parte dos detalhes interessantes desta seção e da se­ guinte foi extrafda de várias partes da Mishna e Gemara.

O Sinédrio consistia de 71 membros, sendo, ao que parece, formado por: (1) o sumo sacerdote; (2) 24 “ principais sacerdotes” que representavam todas as 24 ordens do sacerdócio: veja 1 Crô­ nicas 24:4, 6; (3) 24 “ anciãos” , que representavam o laicado, mui­ tas vezes chamados de “ anciãos do povo” , como em Mateus 21:23; 26:3; Atos 4:8 — e nos fazendo lembrar de Apocalipse 4:4; (4) 22 “ escribas” , peritos na interpretação da Lei em assuntos tanto religiosos como civis.

Quando é usada a palavra Sinédrio, como em Marcos 14:55, ela denota esta assembléia quádrula; e vice-versa, quando “ princi­ pais sacerdotes, anciãos e escribas” são mencionados em conjunto, como em Mateus 16:21, etc., trata-se de uma perífrase para Siné­ drio. Um nome alternativo para anciãos é “ autoridade” . Em algu­ mas passagens encontramos apenas “ principais sacerdotes e autori­ dades” (Lc 23:13) ou simplesmente “ autoridades” (At 3:17) usado como uma sinédoque para todo o Sinédrio.

Havia um presidente, chefe nominal do Sinédrio, um vice- presidente (“ pai da casa do julgamento” ), que dirigia as delibera­ ções nas seções; e um chakam, ou juiz perito, que pré-examinava os assuntos pendentes e os apresentava à casa. O Sinédrio elegia o seu próprio presidente, vice-presidente e chakam. Só o rei não po­ dia ser eleito como presidente, por ser proibido por lei contradi­ zê-lo.

Funcionamento

Na época em que o Senhor nasceu, o Sinédrio realizava suas sessões no “ Salão dos Quadrados” , mas na época de sua crucifica­ ção ele se mudara para o “ Salão da Compra” a leste do monte do templo. Havia reuniões diárias, entre o sacrifício da manhã e da noite, exceto nos sábados santos e dias de festa. O presidente ocu­ pava uma cadeira elevada, ficando o vice-presidente à sua direita e o juiz à esquerda, enquanto os membros se assentavam em almo­ fadas baixas, ao estilo oriental, num semi-círculo em forma de' ' V meia lua, para que todos pudessem ver-se. A sua frente sentavam- se três fileiras de discípulos — futuros juizes — e também dois es­

crivães, um à direita e outro à esquerda. O quorum consistia de 23 membros, permitindo que dois terços ficassem livres a qual­ quer tempo para dedicar-se a seus próprios assuntos; mas nenhum dos membros tinha permissão para sair se sua ausência implicasse na falta de quorum.

Filiação

A seguinte citação do falecido Dr. C. D. Ginsburg sobre as qualificações para a filiação é bastante esclarecedora: “ o candi­ dato tinha de ser moral e fisicamente irrepreensível. Devia ser de meia-idade, alto, de boa aparência, rico, conhecedor da Lei Divi­ na e de diversos ramos da ciência secular, tais como medicina, ma­ temática, astronomia, magia, idolatria, etc., a fim de poder julgar nessas matérias. Era exigido que se conhecesse várias línguas, a fim de que o Sinédrio não precisasse depender de intérprete no caso de qualquer estrangeiro ou assunto estrangeiro se apresentas­ se diante dele. As pessoas muito idosas, os prosélitos, eunucos e “ nethinim” eram inelegíveis em vista de suas idiosincrasias; os que não tinham filhos também não podiam ser eleitos, por não terem condições de julgar as questões domésticas, nem os que não podiam provar ser descendentes legítimos de um sacerdote, levi­ ta ou israelita, os que jogavam dados, emprestavam dinheiro a ju­ ros, os que soltavam pombos para enganar outros, ou negociavam os produtos do ano sabático. Além de todas essas qualificações, o candidato ao Grande Sinédrio devia, antes de tudo, ter sido juiz em sua cidade natal, ter sido transferido dali para o pequeno Siné­ drio que ficava à entrada do salão do templo, antes de poder ser recebido como membro dos setenta e um.”

Jurisdição

A jurisdição do Sinédrio era reconhecida tanto pelos judeus da pátria como os da diáspora, embora naturalmente os que esta­ vam em outras terras devessem observar as leis civis das comunida­ des onde viviam. De modo abrangente, sua grande função era a interpretação e aplicação especializada tanto da Lei Oral como da Escrita e, portanto, julgar em pontos de discórdia como o tribunal de justiça exe^tiplar da nação. A importância disto num estado que era tido como uma teocracia pode ser facilmente apreciada.

As principais funções do Sinédrio foram definidas mais ou menos assim: (1) Supervisão sobre a pureza de linhagem direta e legal do sacerdócio, inclusive registros genealógicos cuidadosos. (2) julgamento em casos de suposta imoralidade entre as esposas e fi'has dos sacerdotes. (3) Superintendência sobre a vida religiosa da nação, com especial vigilância contra qualquer lapso na adora­ ção de ídolos. (4) Prisão e julgamento de falsos profetas e here­ ges perigosos. (5) Vigilância para que nem rei nem sumo sacerdo­ te praticassem qualquer ato contrário à Lei Divina. (6) Decisão sobre a entrada ou não em qualquer guerra contemplada pelo rei e autorização para a mesma. (7) Determinação sobre a ampliação dos limites da cidade santa ou do templo em qualquer ocasião, pois só o Sinédrio podia declarar um solo como sagrado. (8) Indicação de sinédrios locais menores. (9) Organização do calendário judeu e harmonização dos anos solares com os lunares mediante dias inter­ calados.

Administração

Quanto ao modo e teor da administração, tomamos a liber­ dade de citar novamente o Dr. Ginsburg: “ Eles manifestaram ansiedade em absolver o réu em lugar de condená-lo, especialmente em assuntos de vida e morte. Tinham como princípio estabelecido que “ o Sinédrio existe para salvar, e não destruir a vida” . Portanto, ninguém podia ser julgado e condenado estando ausente; e quando o acusado era levado diante do tribunal, o presidente do Sinédrio logo no início do julgamento advertia solenemente as testemunhas, salientando-lhes a preciosidade da vida humana e suplicando-lhes sinceramente que com cuidado e calma refletissem se não haviam negligenciado quaisquer circunstâncias que pudessem favorecer a inocência do acusado. Até mesmo os espectadores tinham permis­ são para tomar parte no caso se uma sentença mais branda pudes­ se ser assim obtida; os membros do Sinédrio que durante o debate tivessem se manifestado a favor da absolvição do acusado, não po­ diam também votar pela sua condenação no final do julgamento. A votação sempre começava a partir do membro mais novo e pros­ seguia gradualmente até o mais velho, a fim de que os membros in­ feriores não pudessem ser influenciados pela opinião dos superio­ res. Nas ofensas capitais era necessária uma maioria de pelo menos

dois para condenar o acusado, e quando o julgamento se fazia diante de um quorum de 23, 13 membros tinham de declarar-se a favor da condenação. Nos julgamentos de ofensas capitais, o ve­ redicto de absolvição podia ser dado no mesmo dia, mas o de con­

denação ficava reservado para o dia seguinte; por essa razão tais

procedimentos não podiam ser começados no dia anterior ao sába­ do ou a uma festa. Nenhum julgamento de crime podia perdurar a noite toda. Os juizes que condenassem um criminoso à morte pre­ cisavam jejuar o dia inteiro. O condenado não era executado no mesmo dia em que se passava a sentença; mas depois dos votos pró e contra terem sido registrados pelos dois escrivães, os membros do Sinédrio se reuniam no dia seguinte para examinar o caso e ve­ rificar se havia qualquer contradição por parte dos juizes. Se a caminho da execução o criminoso lembrasse de algo novo para acrescentar a seu favor, ele era levado de volta ao tribunal e exami­ nada a validade de seu testemunho. Entretanto, clemência e hu­ manidade eram manifestadas para com ele mesmo quando jiã o havia qualquer dúvida quanto ao seu crime e quando a lei se via obrigada a seguir o seu curso final. Antes da execução, uma bebi­ da entorpecente era administrada ao condenado por mulheres pie­ dosas, a fim de privá-lo da consciência e aliviar o sofrimento. A propriedade do acusado não era confiscada, mas entregue aos her­ deiros.”

O Sinédrio e Cristo

Tudo isto naturalmente se relaciona com as circunstâncias da vida e morte do Senhor, como registrado nos evangelhos. A regra de que ninguém podia ser julgado à revelia lembra imediatamente o “ ponto de ordem” de Nicodemos em João 7:51: “ Acaso a nossa lei julga um homem, sem primeiro ouvi-lo e saber o que ele fez” ? O fato do Senhor ter sido levado à noite diante do ex-sumo sacer­ dote Anás (Jo 18:13), a farsa do julgamento no turno perante Cai- fás no palácio do sumo sacerdote (19-27), a sentença e execução sem um dia de intervalo, sem mencionar outros aspectos, foram absolutamente contra o código de imparcialidade do Sinédrio.

Se perguntarmos o motivo sinistro dessa aceleração do pro­ cesso de acusação e condenação, o Dr. Ginsburg nos diz que a úni­ ca exceção a todas as tolerâncias legais acima mencionadas foi

“ aquele que se apresentou como o Messias, ou que desviou o povo da doutrina de seus pais. Alguém assim tinha de suportar todo o ri­ gor da lei sem qualquer mitigação. Ele podia ser até julgado e con­ denado no mesmo dia ou noite.” O Dr. Ginsburg, porém, cita como sua autoridade para isto o Tosefta Sinédrio x. talmúdico; mas os Toseftas, como mencionamos em nosso artigo sobre o Tal- mude, não passavam de adições, com datas posteriores à Mishna oficial, completado no segundo século A.D.. E evidentemente du­ vidoso que qualquer omissão especial dos regulamentos nesse senti­ do tivesse sido posta em prática antes daqueles líderes judeus vio­ larem vergonhosamente o código de seu próprio Sinédrio na con­ denação ilegal do Senhor Jesus.

De qualquer modo, era ilegal por parte do Sinédrio reunir- se no palácio do sumo sacerdote (Jo 18:15) em lugar do seu pró­ prio salão de conselhos, e mais ainda o fato do sumo sacerdote usurpar a presidência na ocasião!

Talvez esse comportamento tenebroso possa ser um tanto

atenuado se dissermos que se tratava de uma convocação extraor­

dinária da assembléia e não de uma reunião determinada por es­

tatuto — é certamente d ifícil pensar que homens como Gamaliel, Nicodemos e José de Arimatéia estivessem presentes; todavia,

muitos dos membros devem ter estado lá, como indicado por Ma­

teus 26:59 (apesar de alguns dos melhores manuscritos omiti­ rem "anciãos” ). Não há um versículo mais trágico em qualquer ponto da história de Israel: “ Ora, os principais sacerdotes e todo o

Sinédrio procuravam algum testemunho falso contra Jesus, a fim

de o condenarem â m orte."

Pouco antes dessa época a autoridade de inflingir a pena ca­ pital tinha sido retirada dos governantes judeus (o apedrejamento de Estêvão, mais tarde, foi ilegal); e eles foram obrigados a pedir a aprovação de Pilatos para a crucificação. Mas, por que deveriam eles reclamar tal morte? Desde tempos imemoriais as modalida­ des de morte judicial dos israelitas eram apedrejamento, morte na fogueira, decapitação e estrangulamento.

Depois da destruição de Jerusalém no ano 70 A.D., Jerusa­ lém deixou de ser o centro administrativo cJa religião judaica; e o Sinédrio, depois de várias mudanças, eventualmente localizou-se em Tiberíades. Seu poder declinou gradualmente até que desapa­ receu cerca de 425 A.D.

Nosso Senhor tomou provavelmente como exemplo o presi­ dente e setenta senadores do Sinédrio quando escolheu seus seten­ ta representantes e colaboradores, como registrado em Lucas 10; assim como tinha em mente as doze tribos de Israel quando indi­ cou os doze apóstolos. Sua escolha desses setenta foi talvez pro­ fética, entre outros significados, de que a autoridade da velha cor­ te judaica estava de fato desaparecendo agora a favor de novos “ setenta” sob a sua presidência.