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Existem fratrias entre os Baniwa?

AMAZÔNICO 55 2.1 CAPÍTULO 1 KOWAI, O JURUPARI BANIWA

3. PARTE 2: CLÃS-PARENTES E PESSOAS-PARENTES NO RIO AIAR

3.2 CAPÍTULO 3 – HIERARQUIA RELATIVA:

3.2.2 Existem fratrias entre os Baniwa?

Com base na minha pesquisa e na bibliografia disponível, podemos apontar que a composição de clãs hierarquizados das fratrias baniwa no rio Aiari é a seguinte63:

63 Na bibliografia há registros de outras ordens para estas mesmas

fratrias (ver Garnelo, 2003; Wright, 2013; T.Oliveira, 2016), e também, de outras fratrias aqui não apontadas, na Colômbia e Venezuela, (ver Journet, 1995; Hill, 1993). Algumas destas ordens registradas por alguns destes antropólogos serão abordadas no decorrer do capítulo a título de comparação.

Quadro 2 - Ordem de nascimento dos clãs por fratria (Hohodene, Walipere e Awadzoro)

Como se pode deduzir a partir do que desenvolvi na seção anterior, este quadro é muito problemático, pois não há consenso entre os diferentes membros de uma fratria a este respeito. Notemos que neste quadro há doze clãs, mas apenas as perspectivas de três clãs foram comtempladas, justamente, daqueles clãs que se consideram os chefes e irmãos mais velhos. Pretendo demonstrar que, no limite, todo clã se considera chefe e irmão mais velho de sua fratria, mesmo que para isso se “invente” uma fratria. O que é possível porque, veremos, toda fratria é inventada pela afirmação de um clã apoiada no crescimento e contingente populacional significativo. Deixemos este aspecto para mais adiante.

Em primeiro lugar, as variações da ordem de nascimento dos clãs por fratria ocorrem a depender do narrador, do clã a que ele se identifica, da região onde mora e das relações de vizinhança que estabelece. As variações dependem também do contexto em que o narrador relata o nascimento mítico de sua fratria. Um mesmo narrador pode, a cada vez que narra o mito do nascimento do ancestrais dos clãs na cachoeira de Hipana, incluir e excluir clãs de sua fratria, tal como pode reordená-los. As versões das ordens clânicas de nascimento awadzoro e hohodene, acima expostas, foram contadas a mim durante o trabalho de campo por homens velhos, benzedores, reconhecidos por seus parentes por deter um importante conhecimento. Mesmo assim, em diferentes momentos da pesquisa etnográfica, pude registrar ordens ligeiramente distintas anunciadas por esses dois importantes narradores.

Considerando isso, parece-me ainda mais relevante perscrutar as variações, não somente para um mesmo narrador, mas no modo como certos clãs se reconhecem e são reconhecidos por outros clãs. Por exemplo, no quadro 2, os Awadzoro ocupam tanto a ordem narrada por Gabriel (clã Hohodene) quanto aquela narrada por Alberto (clã Awadzoro), mas em posições diferentes, algo análogo ocorre com os Adzaneni que ocupam também duas sequências. Neste último caso, porque não considerei a perspectiva dos próprios Adzaneni, eles não ocupam a posição de clãs chefes e irmãos mais velhos em nenhuma das duas versões em que estão presentes. Mas este seria o caso se considerássemos o modo como eles próprios se concebem, o que é descrito por Journet (1995) em sua pesquisa com este clã que vive no rio Guaínia (Colômbia). Estes casos não são simplesmente, como se poderia objetar, exceções à “regra”.

Os clãs e seus membros vislumbram configurações discordantes sobre como se compõe as “fratrias” e, assim, revelam-nos a impossibilidade de estabelecer e estabilizar, antropologicamente, essas unidades sociais, sua composição e seus limites. O que estou denominando de fratria, em companhia da literatura baniwa, não é possível de determinar e delimitar inequivocamente, deixando-nos a questão se podemos, de fato, defini-las como unidades categóricas. Poderíamos, como Wagner (2010 [1974]), nos perguntar se existem grupos sociais (fratrias) entre os Baniwa no Alto Rio Negro?

Em primeiro lugar, pode-se assinalar que um sistema frátrico baniwa, se existe, não pode ser totalizado, o que aliás já foi notado por Journet (1995). Não somente porque não é possível elencar extensivamente suas fratrias, esgotando uma pretensa lista, mas também porque não é possível descrever as suas ordens internas de clãs sem que um destes clãs relacionados a conteste. As classificações entre os clãs não são necessariamente recíprocas.

A definição em uma fratria da posição de clãs chefes e servos e de clã irmãos mais velhos e mais novos mobiliza, certamente, os Baniwa. A dinâmica que envolve este ordenamento hierárquico de clãs, a partir do mito do nascimento em Hipana dos ancestrais dos atuais clãs, é motivada na forma de disputas, negociações e conflitos, que podem ser mais ou menos explícitos. Em relação a isso, retomemos mais algumas definições antropológicas para que em seguida façamos uma comparação entre os pontos de vista dos clãs sobre seus ordenamentos hierarquizados nas fratrias.

Os etnógrafos dos Baniwa frequentemente quantificam o número de clãs que, paradigmaticamente, uma fratria baniwa associaria. Mas é

evidente a dificuldade em definir uma quantidade exata, bem como descrever os princípios a partir dos quais ocorrem o ordenamento. Além disso, os antropólogos divergem quanto à capacidade das configurações encontradas no seu próprio trabalho de campo se aplicar às diferentes regiões onde vivem os variados clãs baniwa onde eles não pesquisaram. Wright (1981) em sua pesquisa no alto rio Aiari com o clã Hohodene, indica que as fratrias baniwa são compostas de cinco ou seis “sibs”, sendo que o sib irmão mais velho é o chefe e nomeia este conjunto, registrando que esse clã não foi o primeiro nascido na sequência mítica em Hipana, mas os Maolieni, o clã servo da fratria; Hill (1993) em sua pesquisa na Venezuela com o clã Dzawinai indica cinco ou mais patrisibs (clãs) compondo uma fratria, mas, diferente de Wright, aponta que o clã irmão mais velho e chefe é o primeiro a ter nascido em Hipana; Garnelo (2003) a partir de seu trabalho com o clã Walipere do médio rio Içana, revela um ordenamento mais complexo, uma sequência de 7 “sibs”, sendo o clã “mais velho” e chefe o quarto nascido em Hipana, o qual confere também nome à fratria; Journet (1995), no Alto rio Içana e rio Guaínia na Colômbia, a partir de diferentes clãs koripako, descreve um panorama geral em que uma fratria associaria normalmente 3 clãs, cujo clã irmão mais velho é o chefe, mas este não necessariamente empresta seu nome às fratrias, pois que elas nem sempre são nomeadas, o que difere das descrições de todos os outros etnógrafos supracitados.

Destes autores Journet é o que confere menos importância à caracterização da fratria, talvez justamente por ser aquele entre os etnógrafos de clãs baniwa-koripako que mais se dedicou ao estudo da organização social e parentesco. Nota-se um esforço deste autor em evitar o termo “fratria”, que não se torna ausente em seu trabalho, mas é pouco frequente, no lugar, utiliza a noção de um conjunto de clãs. Segundo Journet (1995, p.62), os Koripako distinguem entre seus clãs parentes – kitsienape (consanguíneos), isto é, seus clãs irmãos de fratria, dois ou três clãs que eles designam como sendo clãs “irmãos mais velhos” (-phenai) ou “irmãos mais novos” (-wenai). O ordenamento da fratria, então, obedece à lógica da germanidade. Deste ponto vista, o dos Koripako do Alto Içana e Guaínia na Colômbia, o autor comenta que a ordenação descrita por Wright para os Hohodene do Aiari (Brasil) é bastante singular. Lembremos que os Hohodene, diferente dos Koripako, compreendem uma sequência em que eles são os chefes e irmãos mais velhos, apesar de seu nascimento em Hipana ter sido antecedido pelos Maolieni, os seus -maakunai (servos). Isso ocorreu, segundo os Hohodene, para que os Maolieni limpassem o local do nascimento para chegada deles.

Em suma, Journet descreveu fratrias não nomeadas de três clãs, em que o mito de Hipana não descreve o nascimento dos clãs servos, ao passo que Wright descreve fratrias nomeadas de 5 ou 6 clãs, sendo os clãs servos mencionados no nascimento mítico em Hipana, mas marcados por terem nascido primeiro com uma função específica. De um lado, temos uma sequência maior de clãs associados em uma fratria e, do outro, uma sequência que associa uma quantidade menor de clãs. Mas vejamos que a diferença entre as fratrias Koripako e a fratria Hohodene não reside somente (ou tanto) na quantidade de clãs que associam.