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AMAZÔNICO 55 2.1 CAPÍTULO 1 KOWAI, O JURUPARI BANIWA

1.1 O PROBLEMA DA TESE

Como “ver” por uma nova perspectiva a famosa passagem do roubo das “flautas sagradas” no mito de Jurupari (em baniwa Kowai), cujo motivo mítico está presente não somente no Noroeste Amazônico, mas também no Xingu e na Papua Nova Guiné (Gregor & Tuzin, 2001)? Ou então, que diferença constitui este mito que permite que ele seja distinto em si mesmo? A resposta não é óbvia. Uma abordagem é considerar o mito como sendo sagrado, algo como a voz dos deuses, no sentido de inconteste e total. Neste caso o mito não é diferente em si e a questão está resolvida. Outra abordagem possível, a levistraussiana, é considerar o mito como feito de outros mitos e, então, o mito não é um todo homogêneo e nem a expressão de um demiurgo transcendental, o que significa dizer que o mito é complexo, diferente em si mesmo, comportando aspectos e perspectivas que não se podem esgotar. Nesta tese, abordarei o mito, mas não somente ele, como uma fonte inesgotável de perspectivas, pois sempre diferente em si mesmo.

Para voltar à questão, compreendo que podemos acessar o mito de Kowai e a passagem do roubo das flautas por um outro ponto de vista. Entre as muitas perspectivas do mito é bastante saliente a diferença de gênero que nele habita. Vejamos. No primeiro capítulo da tese, uma análise do mito de Kowai, acompanharemos um triângulo de heróis míticos, Ñapirikoli, Amaro e Kowai, respectivamente, um pai, uma mãe e um filho. Logo no primeiro episódio desta epopeia mítica há uma controvérsia entre os homens e as mulheres em torno do filho que desencadeia uma disputa que motiva toda a narrativa. Neste contexto, Kowai é, enquanto filho, um terceiro elemento entre, de um lado, um pai e os homens e, de outro lado, uma mãe e as mulheres. Apesar de andrógeno, como defende S. Hugh-Jones (2001) serem todos os filhos, pois resultado da união de seus pais, Kowai tende a se aliar e se filiar ao lado materno e, assim, porque ele é um “filho de mãe”, Ñapirikoli o envia ao Céu, afastando-o deste mundo e, num outro episódio, mata-o numa fogueira. Não vou me antecipar à análise, mas quero apontar que podemos notar duas perspectivas no mito de maneira bem evidente: a masculina, que destaca o roubo feminino das flautas masculinas que é o Kowai transformado depois que foi morto por Ñapirikoli e; a feminina, que ressalta o roubo do filho Kowai ainda bebê das mulheres pelos homens.

A literatura regional decidiu-se por adotar a perspectiva masculina, não fortuitamente o roubo feminino das flautas masculinas se tornou uma passagem famosa, ao passo que a passagem do roubo do bebê das mulheres pelos homens ficou menos conhecida. Com isso chamo à

atenção que o episódio do roubo feminino das flautas dos homens não totaliza os significados e as perspectivas do (e não sobre o) mito. O que não significa dizer que a perspectiva verdadeira é a feminina, a qual desvaleria um segredo encoberto pelos homens, invertendo diametralmente a questão. Isso porque, não se trata da “verdade”, mas de reconhecer a multiplicidade que constitui os mitos, o parentesco, a organização social, a cosmologia e, em suma, a socialidade baniwa. O problema desta tese se situa exatamente na coexistência das perspectivas e da relação dinâmica que elas performam entre si, motivo pelo qual não se trata de saber, por exemplo, no caso mítico em questão, qual das perspectivas, feminina ou masculina, é mais significativa, determinante ou paradigmática para a vida baniwa. Não se trata de optar por uma alternativa, mas descrever, justamente, o modo como estas alternativas se relacionam. Esta é a dinâmica que pretendo descrever não somente no mito, mas no parentesco, na organização social e na cosmologia baniwa por meio de diferentes demonstrações etnográficas.

Diante disso, se faz notar a importância de reconhecer os distintos planos da socialidade baniwa como estando, mais do que em relação de complementariedade, mas relação de obviação, ou seja, numa dinâmica figura e fundo em que para um estar evidente o outro precisa estar eclipsado e vice e versa. Deste modo, acompanharemos a relação entre os planos egocentrado e sociocentrado de relações, que nos permitirá avançar no entendimento das relações mais estritas de parentesco entre as pessoas, tal como podemos vislumbrar por meio da terminologia dravidiana em sua inflexão com a organização social baniwa nas relações entre os seus clãs. Estes últimos entendidos aqui como grupo de parentes relacionados agnaticamente que compartilham emblemas rituais e possuem uma relação especial com o animal epônimo a quem chamam de avô (-wheri).

Para tanto, contrastarei o mito de Kowai e o mito de quando Ñapirikoli retira as pessoas-clãs-ancestrais da cachoeira de Hipana. Pode- se considerar esta dualidade mítica tal como propôs Kelly (no prelo) a partir do material yanomami apresentado por Leite (2010) como sendo, de um lado, os mitos de transformação (Kowai) que lidam com a formulação de humanidade generalizada, em um contexto metamórfico e de diferenciação no qual é evidente a humanidade imanente, donde se vislumbra a importância da afinidade potencial e; de outro lado, os mitos de criação (Hipana) que trata de uma humanidade exclusiva em sua estabilização que culmina na sociedade atual. Kelly sugere, a partir de comentários de Viveiros de Castro para o mesmo material yanomami (2008: ver logo abaixo), que os mitos de transformação são logicamente

anteriores aos mitos de criação. Proposição que é pertinente para o caso aqui em tela, pois que no mito de Kowai formula-se o parentesco por meio de relações entre afins (parentes cruzados) que caracteriza a terminologia dravidiana, inaugurando a possibilidade de reprodução que engendra, por sua vez, a formulação da segmentação clânica no mito de Hipana, onde nasceram os ancestrais dos clãs, as primeiras pessoas propriamente humanas, completando os princípios da socialidade atual.

Além do mito, esta anterioridade pode ser encontrada de modo disperso na Amazônia. Sobre isso, Viveiros de Castro, extrapolando uma análise do xamanismo sugere:

Para resumir os vários aspectos do contraste examinados por Hugh-Jones, podemos dizer que o xamanismo horizontal é exoprático, o vertical, endoprático. Minha tese é que, na Amazônia indígena, a exopraxis é anterior — lógica, cronológica e cosmologicamente — à endopraxis, e que ela permanece sempre operativa, mesmo naquelas formações de tipo mais hierárquico como as do Noroeste amazônico, ao modo de um resíduo que bloqueia a constituição de chefaturas ou Estados dotados de uma interioridade metafísica acabada (2008, p.101).

Esta anterioridade da exopraxis permite lidar com esta dualidade como não sendo somente dinamizada por uma complementariedade não simétrica, demonstrando que há uma ternarização que a desequilibra. Trata-se, lembremos, do fato de que Kowai por ser um “filho de mãe” e um “filho de pai” revela-se como sendo os dois ao mesmo tempo e, por isso, um terceiro elemento na trama mítica. Não fortuitamente, o mito neste caso delineará uma série de ambiguidades para este herói mítico, pois ele é um ser extraordinário, um humano para Amaro e não humano para Ñapirikoli, um consanguíneo e afim para os outros habitantes da maloca mítica de Ñapirikoli, comportando-se ora como um parente e ora como um inimigo canibal que devora os seus primos paralelos matrilaterais. Por isso, dizem os Baniwa, ele é bom e mau ao mesmo tempo. Mas ao final, ou nos eventos que desdobram as passagens mais importantes do mito, a despeito da aparente simetria, Kowai demonstra uma tendência à afinidade.

Neste contexto, poderemos compreender como o parentesco agnático, classicamente descrito como mais pertinente aos povos do Noroeste Amazônico, e o parentesco uterino, em geral menosprezado pela

literatura, podem coexistir sendo alternativamente determinantes para a estrutura social rionegrina. Da tensão relacional entre estes dois modos do parentesco vêm à tona a categoria dos co-afins que são ambiguamente consanguíneos e potencialmente afins1. Assim, perseguiremos como a co-

afinidade que toma a forma paradigmática nesta região dos clãs ou grupos designados de “filhos de mãe” permite reclassificações no plano sociocentrado que abrem o seio agnático baniwa para transformações. O que veremos no modo de classificar e formular os seus parentes, favorecendo casamentos entre pessoas e funcionando como uma trava às relações hierarquizadas entre os clãs.

Descreverei, portanto, a co-afinidade como uma bifurcação categorial entre os parentes consanguíneos e afins, mas por sua tendência à afinidade, sugerirei que os parentes co-afins são uma versão não evidente dos afins potenciais. Neste sentido, notaremos que o ternarizador amazônico, a afinidade potencial (cf. Viveiros de Castro, 2002a), no Alto Rio Negro pode ser especificado, posto que entre os Baniwa a afinidade potencial parece se comportar como um ternarizador virtual, ao passo que a co-afinidade como um ternarizador atual. Com base nisso, acompanharemos reclassificações terminológicas que ocorrem por meio da modalização dos parentescos agnático e uterino que se apresentam como planos distintos em relação de obviação, permitindo-nos acessar o fundo a partir do qual as diferenças são estabelecidas entre os Baniwa e também a complexidade dinâmica que envolve a constituição delas. Desta maneira, no decorrer da tese revisitarei as categorias que se estabeleceram para a descrição social desta macrorregião - clã, fratria, hierarquia, unifiliação, descendência e ancestralidade - estendendo-as para compreender também a cosmologia.

Veremos além da descrição dos clãs co-afins (“filhos de mãe”) e sua importância para as dinâmicas entre os clãs, uma reflexão sobre a filiação a partir do caso dos filhos bastardos, em baniwa chamados de maapatsika. Para estes dois casos, o parentesco uterino vem à tona, apresentando-se como um aspecto determinante, lançando ao fundo de

1 Esta categoria é objeto na tese de uma discussão alongada, mas é

interessante desde já registrar o seu entendimento tal como estabelecido na literatura regional. Sobre isso, Cabalzar aponta que: “O campo social define-se então em três categorias: parentes [consanguíneos], afins e “filhos de mãe” [parentes co-afins]. Assim, a proposição clássica de Dumont (1953, p.36), segundo a qual afim de um afim é um consanguíneo, é enriquecida no contexto dos grupos Tukano, em que afim de afim ou é consanguíneo (parente agnático) ou “filho de mãe” [co-afim], ou ambos (2008, p.253)”.

suas relações o parentesco agnático que, em geral, figura num primeiro plano. Nesse sentido, descreverei uma série de acusações entre os clãs de que eles não são o que reivindicam ser, questionando ascendência agnática afirmada. Ainda apresentarei o estabelecimento de relações formais de amizade que lidam com o problema da distância no parentesco baniwa. Nestes casos, não se trata obrigatoriamente de uma modalização entre o parentesco agnático e uterino, mas de qualquer modo se direcionam ao problema de perspectivas em disputa na tentativa relativizar os modos afirmados (parentesco agnático, filiação legítima, mito) por meio da atribuição de modo à alternativos (parentesco uterino, filiação adotiva, história). Para os amigos formais, em específico, os compreenderei como um modo de lidar com a distância, encurtando-a para parentes distantes ou interpondo-a para parentes que estão mais próximos do que deveriam. Por fim, descrevo as relações com os brancos que podem ser formuladas como sendo de parentesco, em uma oscilação entre processos análogos à consanguinização e à afinização que, no caso da relação com os patrões brancos, os fazem variar entre patrões-pai e patrões-inimigos que implicam em reposicionamentos da filiação primeira dos Baniwa em relação ao seus pais.

Estas descrições das relações sociais encontram na cosmologia e na escatologia domínios para qual se estendem, a partir do que definirei o clã como uma diferenciação intrahumana, sob o manto da classificação totêmica, e também, de uma diferenciação transespecífica, apreendidas no registro metamórfico. Esta relação que revela o clã baniwa é análoga à definição de Coelho de Souza (2011) do parentesco como situado entre o incesto e o outcest que nos permite entendê-lo como um entre ascendentes e descendentes, vivos e mortos, humanos e não humanos, cujo esforço deliberado é desequilibrar estas dualidades em direção a um dos limites, ao humano e à consanguinidade, contra efetuando a tendência ao não humano e à afinidade.

Tais demonstrações etnográficas serão sempre acompanhadas pela formulação mítica que procura lidar com o aspecto inventivo da socialidade baniwa, descrevendo suas dinâmicas e fluxos. Este trabalho estará atento às transformações que os Baniwa vivenciam, não somente porque estão, secularmente, em contanto com os brancos (não indígenas), mas porque antes como descreve o mito, eles são os “Nascidos” de uma transformação, são objeto delas, contra efetuando-as todo o tempo como modo de se fazerem gente entre outras gentes, sejam de vivos ou de mortos.

1.2 KOWAI HOJE E AS COMUNIDADES BANIWA DO RIO