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O PROBLEMA DA RELAÇÃO COM OS BRANCOS

AMAZÔNICO 55 2.1 CAPÍTULO 1 KOWAI, O JURUPARI BANIWA

1.5 O PROBLEMA DA RELAÇÃO COM OS BRANCOS

A relação entre os Brancos e a afinidade potencial já está bem estabelecida na literatura por meio de trabalhos como o de Gow (2001) entre os Piro, Andrello (2006) entre os Tukano e Kelly (2011) entre os Yanomami. Sobre a afinidade potencial como uma meta-afinidade que se apresenta enquanto princípio dominante na socialidade amazônica, já apontei que isso significa dizer que a essência da afinidade reside não nos afins efetivos, mas na afinidade não atualizada. Neste aspecto, a afinidade potencial quase nunca se transforma em afinidade atual, posto que “O verdadeiro afim [o afim potencial] é aquele com quem não se trocam mulheres, mas outras coisas: mortos e ritos, nomes e bens, almas e cabeças." (Viveiros de Castro, 2002, p.157)”.

Com base nisso, Gow (2001, p.306) observa a relação dos Piro com os brancos, conjecturando a possibilidade de entendê-la como sendo análoga às relações descritas por Viveiros de Castro para os Tupinambá com os seus inimigos. Ocorre que os Piro hoje, aponta o autor, não fazem mais guerra, concebendo a relação com os estrangeiros por meio do comércio. Mas ao assinalar que guerra e comércio são duas faces da mesma relação (Lévi-Strauss, 1976), enfatiza que é possível notar a anterioridade da relação dos Piro com os brancos à relação de parentesco dos Piro entre eles próprios. Em outros termos, os Piro concebem a relação com os brancos como sendo o fundo das relações de parentesco que estabelecem atualmente entre eles mesmos, motivo pelo qual, os brancos permanecem, como um todo, enquanto afins potencias. De modo semelhante, Andrello (2006, p.409) compreende que a alteridade veiculada pelos brancos é constitutiva aos grupos do Uaupés, não porque os brancos lhes forneçam conjugues, mas porque significam uma fonte de objetos, atributos e capacidades que são alvo das capturas e apropriações indígenas. Kelly (2011, p.102) aponta também para as questões elencadas por estes autores, mas ressalta o modo ambíguo com que os Yanomami concebem brancos, no qual ganha destaque a sua capacidade predatória e que precisa, por isso, ser obviada. Nesse sentido, este autor descreve a relação yanomami com os missionários e médicos que, uma vez aproximados, se apresentam enquanto versões enfraquecidas dos brancos e, então, são entendidos como capazes de mediar relações entre os grupos locais yanomami e a alteridade que provém do exterior.

Diante deste quadro, no que toca a este trabalho em específico, apontei que Kowai, em torno do qual os Baniwa realizam a iniciação masculina, é um ancestral Outro, um afim potencial e não um puro

ancestral, fato que se verifica, entre outras coisas, porque ele possui a forma de um homem branco. Kowai é ambíguo, pois, por um lado, sua força criativa foi capaz de transformar o mundo, expandindo-o quando ele ainda era muito pequeno, possibilitando a sua forma atual, mas, por outro lado, ele é poderosamente perigoso, se comportando como um ser canibal, legando à humanidade toda a feitiçaria atual, tal como os venenos (manhene). A ambiguidade de Kowai é, enfim, análoga a ambiguidade dos brancos com os quais os Baniwa historicamente mantém relações, tanto porque eles detêm conhecimentos e objetos formidáveis, mas também porque são sovinas, violentos e se concebem como sendo hierarquicamente superiores. Diante disso, podemos notar que Kowai expressa um princípio dominante na socialidade baniwa, a saber, a relação de troca não mediada entre afins, no sentido forte da afinidade, como sendo anterior às relações mediadas entre afins terminológicos e clânicos que caracteriza a sociedade atual na qual Kowai está obviado, pois transformado em flautas que repousam submersas nos igarapés próximos das comunidades.

Os Baniwa estabelecem com os brancos importantes alianças comerciais, políticas e de conhecimento, por meio dos comércios e patrões da cidade, das políticas indigenistas e governamentais e da educação escolar e universitária. Neste âmbito, procuro nesta tese explorar, além do plano mais abstrato ou virtual, as relações com os brancos, considerando o parentesco como uma abordagem pertinente. Utilizarei a noção de um parentesco em obviação, entendida por meio da abordagem do parentesco analógico de Wagner (1977) para compreender a mobilização do idioma da filiação adotiva de empregados baniwa aos patrões brancos, como sendo um processo de consanguinização que eclipsa provisoriamente a parte-afim do patrão, de modo que este pode ser considerado um “pai”. O que somente é possível porque este procedimento desdobra o eclipsamento das relações do parentesco indígena, ou seja, o pai indígena é obviado para que o patrão se apresente como um parente análogo ao pai. Esta abordagem analógica do parentesco permite-nos criticar a noção de filiação adotiva, não tanto pela noção per se, mas pelo contraste que ela pressupõe, a noção de filiação (não adotiva) como sendo plena de identidade. Dinâmica que estenderei para analisar a relações de anfitriões indígenas com seus hóspedes antropólogos.

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Lévi-Strauss (2005 [1988]), ao ser perguntado sobre o que seria o mito, opta por explanar as razões e os modos de sua instauração, “É característica do mito, diante de um problema, pensá-lo como homólogo

a outros problemas que surgem em outros planos: cosmológico, físico, moral, jurídico, social, etc. E analisar tudo em conjunto. (p.196)”. A exemplo do que foi exposto nas sínteses dos problemas nos quais tocam este trabalho, acompanharemos nesta tese uma repetição que é análoga ao processo mítico, na expectativa de que possamos compreender o seu problema como homólogo a outros, percorrendo para tanto diferentes domínios etnográficos. Notando assim variações em meio às continuidades, perseguirei nos capítulos seguintes a descrição da dinâmica entre planos distintos que atravessam tanto o parentesco, o mito e a relação com os brancos. Estas diferentes demonstrações etnográficas permitirão deslocamentos entre perspectivas distintas sobre o problema da diferença e da identidade, da consanguinidade e afinidade, da relação entre os parentesco agnático e o parentesco uterino, da inflexão das relações egocentradas e sociocentradas, dos mitos de transformação e dos mitos de criação, do mito e da história, da filiação e da filiação adotiva, das identificações totêmicas-metafóricas e das relações metamórficas- metonímicas, dos humanos e não humanos e dos vivos e dos mortos. Enfim, no domínio do parentesco, no domínio do mito e no domínio da relação com os brancos, trata-se do mesmo, compreender como planos distintos, opostos e complementares, podem coexistir e serem alternativamente determinantes para a socialidade Baniwa e, mais amplamente, para a socialidade rionegrina no Noroeste Amazônico.