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Irmãos afins: o casamento entre pessoas do mesmo clã Nos debrucemos agora sobre as “exceções” que vimos na seção

AMAZÔNICO 55 2.1 CAPÍTULO 1 KOWAI, O JURUPARI BANIWA

3. PARTE 2: CLÃS-PARENTES E PESSOAS-PARENTES NO RIO AIAR

3.1 CAPÍTULO 2 CONTEXTUALIZANDO OS BANIWA DO RIO AIAR

3.1.5 Irmãos afins: o casamento entre pessoas do mesmo clã Nos debrucemos agora sobre as “exceções” que vimos na seção

anterior nas alianças matrimoniais no rio Aiari, a saber, o casamento entre pessoas de clãs irmãos -kitsinape (consanguíneos), indexados pelos valores que constam em vermelho nas tabelas (3 e 7). Para tanto, atentemo-nos para a inflexão entre o plano das classificações sociocentradas e das classificações egocentradas, posto que os casamentos que descreverei como tendo ocorrido entre parentes consanguíneos (-kitsinape), somente podem ser assim considerados no plano sociocentrado, posto que no plano egocentrado eles não podem ser assim classificados. Antes, é importante notar que, no rio Aiari, as diferenças internas às fratrias se mostram de modos diferentes.

Já destaquei em seções anteriores que os Walipere são uma fratria cujas diferenças internas estão mascaradas, imprimindo a aparência, não de um conjunto de clãs associados, uma fratria, mas de um superclã, no qual as relações internas não são tão evidentes. Neste “superclã” se percebe infiltrações que insinuam o estabelecimento de distinções internas. Desta forma, não me parece fortuito que os casamentos entre cônjuges de clãs consanguíneos registrados nas tabelas acima sejam justamente entre pessoas da fratria Walipere e não, por exemplo, da fratria Hohodene. A questão é: que tipo de diferença se produz no seio da fratria (superclã) Walipere que é capaz de permitir o casamento entre eles?

Os casamentos entre conjugues de um mesmo clã/fratria são objeto de certa censura entre os Baniwa que questionam se eles seriam apropriados. Mas trata-se de uma controvérsia em aberto e não de um julgamento normativo e absoluto, pois, à primeira vista, aparentemente incestuosas, estas relações ao serem analisadas de perto demonstram as condições de sua possibilidade. Se retomarmos as tabelas veremos que

estes casamentos ocorreram em dois nexos diferentes: dois casamentos no nexo exogâmico Walipere do baixo Aiari (tabela 3) e um casamento no nexo exogâmico Walipere do médio Aiari (tabela 7). Dois destes três casamentos ocorreram em Santana, de homens desta comunidade com mulheres da comunidade de Canadá. Nestes dois casamentos, os dois homens são irmãos, filhos do dono da comunidade de Santana, e as duas mulheres, primas paralelas (-kitsidoa) entre si, são da comunidade de Canadá. O outro casamento ocorreu em Canadá entre conjugues walipere que viviam nesta comunidade. Em todos estes três casos, pode-se dizer que os conjugues e sua linha agnática se consideram, do ponto de vista da classificação clânica, parentes -kitsinape, entretanto, do ponto de vista da classificação egocentrada, ressalta-se que não são primos paralelos e ao traçar a genealogia destes indivíduos, não é possível alcançar nenhuma relação agnática entre eles.

Nesses casos, os ascendentes mais longínquos dos quais seus parentes têm lembranças não possuíam qualquer relação traçável. No caso específico do casamento em Canadá, do qual tenho mais informações, posso apontar que os pais dos conjugues, atualmente falecidos, não se tratavam mutuamente como -kitsinape, apesar de serem, notemos, da fratria Walipere: tratavam-se como sendo -doenai (co-afins). Os termos para a co-afinidade expressam nestas duas linhas agnáticas uma diferença interna à fratria Walipere. Esta diferença, portanto, haja vista os termos de parentesco uterino (-doenai), se expressa de maneira análoga ao de clãs distintos em uma fratria, apesar de não reivindicarem para si essa diferença por meio de emblemas clânicos distintos (estoque de nomes do clã, flautas Kowai, pimentas, tabacos e territórios exclusivos). No caso Hohodene, até onde pude verificar, somente os clãs distintos da fratria se tratam como parentes co-afins (-doenai), ativando o parentesco uterino, que é, por exemplo, o caso Awadzoro e Hohodene, em uma relação ambígua entre identidade e diferença. A mesma relação que pode ser externa, isto é, entre diferentes clãs, pode ser interna a um clã, como vimos, no caso Walipere.

Diante disso, o casamento entre pessoas de clãs consanguíneos, como sugere a classificação por cor da tabela, nos induz a um equívoco, posto que eles não são realmente consanguíneos. O casal walipere de Canadá revela no estudo de seu caso que eles não são verdadeiramente parentes consanguíneos relacionados agnaticamente (-kitsinape), mas parentes co-afins relacionados por parentesco uterino (-doenai). A possibilidade de tais casamentos são as relações de co-afinidade. Descrevi acima que parentes de um mesmo clã se consideram irmãos verdadeiros (-kitsinape kantsa) e parentes de fratria se consideram irmãos (-kitsinape).

Ocorre que na fratria Walipere do Aiari, as diferenças internas não assumem as feições de um clã. Poderíamos supor que, por um lado, a fratria Walipere subsumiu no tempo os diferentes clãs em uma coletivização ou, por outro lado, que o clã cresceu tanto a ponto de parecer uma fratria. Para os dois casos, as reclassificações terminológicas que descrevi expressam a reposição da diferença, mas não infletida sob a forma de clãs diferentes. Não podemos atribuir a estes casos, simplesmente, o rótulo da exceção, pois que eles não significam somente um desvio, uma falha nas “regras”. No lugar, seria preciso entender estes casamentos como o reestabelecimento das diferenças. Neste caso não é uma falha do parentesco, ao contrário, trata-se da otimização do parentesco baniwa que mobiliza todos os seus recursos para lidar com a ameaça de que a diferença possa ser subsumida pela identidade. O princípio que tende a organizar o nexo exogâmico – o parentesco agnático - pode ser suplantado, com igual eficácia ainda que com alguma reprovação, pelo princípio egocentrado atualizado por meio do parentesco uterino. O que demonstra de modo interessante como estes dois planos do parentesco expressos em escalas diferentes, sociocentrado e egocentrado, são análogos, mas não idênticos, podendo tomar um o lugar do outro.

Diante disso, a fratria se apresenta como uma condensação de clãs. No caso da fratria Hohodene, esta “nuvem” possui uma densidade que nos permite vislumbrar emblematicamente as diferenciações sociais por meio dos clãs (Hohodene, Maolieni, Awadzoro); por sua vez, no caso da fratria Walipere, esta condensação é tão densa que não permite, a um primeiro olhar, identificar suas distinções, pois não objetificadas emblematicamente por meio de clãs distintos. As diferenças internas à fratria Walipere, que toma a forma de linhas agnáticas distintas não nomeadas, comporta-se analogamente às diferenças objetificadas na forma de clãs, observadas na fratria Hohodene. Talvez tenhamos entrado, neste tópico, em relações que ainda não foram suficientemente apresentadas para acompanharmos suas nuances. Tentarei realizar isso no próximo capítulo quando eu descrever a relação entre os clãs de modo mais explícito.