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KOWAI HOJE E AS COMUNIDADES BANIWA DO RIO AIAR

AMAZÔNICO 55 2.1 CAPÍTULO 1 KOWAI, O JURUPARI BANIWA

1.2 KOWAI HOJE E AS COMUNIDADES BANIWA DO RIO AIAR

Vejamos agora mais de perto o contexto ritual atual que permite a formulação inicial desta tese baseada no mito. Certa vez, perguntei de Júlio Cardoso (83 anos), meu principal anfitrião durante a pesquisa, sobre as cerimônias Kowai. Ele explicou-me com desdém que quem as realizava na comunidade de Santa Isabel do rio Aiari da qual é dono (idzakale iminali) eram as pessoas do clã Hohodene, seus parentes co- afins (-doenai)2. As festas em torno do herói mítico Kowai são uma

cerimônia de grande importância ritual, não somente para os Baniwa, mas para os muitos povos de toda a região do Noroeste Amazônico, onde é conhecido por Jurupari. Estas cerimônias se caracterizam basicamente pela oferta de frutas coletadas na floresta e pela condução masculina exclusiva dos instrumentos de sopro chamados Kowai - cuja visão, mas não audição, é proibida às mulheres. Quando eu havia perguntado de Júlio sobre as cerimônias Kowai, eu já sabia que a última realizada em Santa Isabel, havia sido uma iniciação masculina em 2008. Júlio prosseguiu a conversa minimizando a importância deste evento ritual no qual não foi iniciado, desferindo para mim, secamente: “Estes instrumentos que eles chamam de Kowai é paxiúba, somente casca de pau”, encerrando o assunto. A fala meu anfitrião parecia desmascarar o caráter sagrado, tal como se convencionou na literatura, de Kowai e seu corpo atual, o conjunto de diferentes instrumentos musicais de sopro (Ver figura 1).

A opinião de Júlio nos interessa aqui na medida em que ela longe de estar isolada entre os Baniwa, reflete o seu contexto religioso. Estima- se hoje que aproximadamente oitenta por cento das 93 comunidades baniwa (Wright, 2013) da bacia do rio Içana no Brasil se declarem crentes, o que implica na adoção à liturgia evangélica3, a um modo de

vida abstêmio, à censura das práticas xamânicas e ao abandono dos rituais em torno de Kowai, contrastando com as comunidades que se declaram católicas, para as quais não pesa nenhuma reprimenda ao xamanismo e

2 O termo -doenai designa um coletivo de pessoas de clãs co-afins. O

sufixo -nai é uma partícula coletivizadora para os parentes -doe que, por sua vez, é o vocativo para o termo de referência utilizado tanto para designar o marido da irmã da esposa e a esposa do irmão do esposo. Segundo Journet (1995, p.66), etimologicamente -doe é um derivado do termo para mãe (-doa), motivo pelo qual

-doenai designa estritamente os co-afins, mas mais amplamente os parentes

uterinos (Ver mais capítulo 2).

ritual. No rio Aiari, entre as suas comunidades, 10 se declaram católicas e 9 evangélicas e, destas 10 comunidades católicas, 8 delas possuem os instrumentos musicais Kowai, realizando com maior ou menor regularidade as cerimônias em torno de Kowai. Este quadro é bastante significativo quando comparado com as comunidades às margens do rio Içana que, com duas exceções, não praticam mais o referido ritual em suas 74 comunidades. Diante disso, pode-se apontar que a “profanação” de Júlio orbita em torno de uma transformação, cuja repercussão mais evidente é o amplo declínio deste ritual entre os Baniwa, e também, em toda a região do Noroeste Amazônico.

Em Santa Isabel, explicaram-me que as cerimônias deixaram de acontecer em grande medida por conta do desestímulo de seu chefe. Nesse sentido, Júlio possui uma dupla e inusitada aliança no contexto religioso baniwa, de um lado, com seus parentes católicos e, por outro, com os seus parentes evangélicos4. Quanto à censura das cerimônias Kowai, ele

justificou em tom diplomático que seria melhor realiza-las em outro lugar para garantir uma convivência pacífica com os parentes “crentes” que vivem nesta região. Segundo Júlio, os instrumentos fazem uma grande “zoada”, constituindo uma afronta às comunidades evangélicas vizinhas. Motivo pelo qual os Hohodene de Santa Isabel continuaram a realizar as cerimônias Kowaipani, mas no igarapé Gavião, onde mantém um sítio para os dias de trabalho em sua roça neste local.

Meses após esta conversa com Júlio, circulava a notícia no rio Aiari de que haveria uma grande cerimônia de iniciação para 24 jovens em Ucuqui Cachoeira, comunidade hohodene localizada no igarapé Uaraná, alto rio Aiari. Mediante o convite de uma liderança desta comunidade que me ofereceu carona, eu estava entusiasmado com a possibilidade de acompanhar a cerimônia. Júlio havia notado meu interesse e, surpreendentemente para mim, nos dias que antecederam a minha ida para Ucuqui, explicou-me o ritual e a alertar-me para os cuidados e as consequências do que se desenrolaria. Assim, se passaram os dias antes da cerimônia, mas na data marcada a minha carona atrasou e cheguei somente no último dia, deparando-me com o fato de que, a pequena parte do “ritual” da qual pude participar, a do ensinamento que antecede o encontro com Kowai, ocorreu em Santa Isabel sob os

4 A partir da década de 1950, quando a missionária norte americana

protestante Sofia Muller iniciou a evangelização na região do Içana, seguida pelos católicos Salesianos, as relações entre as comunidades baniwa católicas e crentes eram marcadas por conflitos acirrados, atualmente a situação amenizou significativamente.

conselhos do meu velho anfitrião. Justamente aquele que “profanara” para mim os instrumentos Kowai. Refletindo então sobre a primeira conversa com Júlio a respeito de Kowai, acredito que ele, ao apontar que os instrumentos eram somente “casca de pau”, não pretendia propriamente desmascarar Kowai, o herói mítico, mas a parafernália ritual, objeto da pesada repressão missionária católica e protestante na região. Do seu ponto de vista, os instrumentos musicais de sopro e o Kowai são significativamente diferentes.

Júlio não pôde ser iniciado quando jovem: primeiro, porque sua família foi evangelizada por Sofia Muller e, segundo, porque ele com aproximadamente 12 anos de idade havia ido trabalhar com os patrões na Venezuela e Colômbia, onde passou sua adolescência, juventude e parte da vida adulta. Eu pude perceber que, para Júlio, Kowai, o herói mítico do qual se ressente não ter ouvido as histórias de seu próprio pai e avô paterno não era “à toa” (makadalitsa), tal como são para ele os instrumentos musicais que os seus parentes co-afins “dizem” ser o corpo do herói Kowai. Suspeito que esta distinção, impossível para o contexto ritual convencional, lance alguma luz sobre o declínio ritual na região e, em especial, para as transformações que ele enseja. A biografia de Júlio que consta na parte 4 desta tese descreve a sua relação com os patrões nos dará uma pista de que não é fortuito que ele tenha renunciado quando velho aos rituais Kowai, justamente porque ele se aventurou quando muito jovem a ir viver com os brancos.

Parece-me possível sugerir que a relação com os brancos se apresenta como uma transformação da relação dos clãs e das pessoas baniwa com os rituais de iniciação masculina e com Kowai. A este respeito, Andrello (2006, p.409) sugere que no Uaupés o estabelecimento de relações com os brancos implica em uma transformação análoga à iniciação e à nominação entre os Tukano. Assim, podemos apontar o aspecto não fortuito da relação entre a intensificação do contato baniwa com os brancos e o declínio do ritual em torno de Kowai, mas não me parece que este fato seja tributário exclusivamente à repressão missionária. Proponho que se entendermos o declínio ritual como sendo relativo apenas à “aculturação” induzida pelos agentes coloniais, notaremos uma transformação no modo de acessar as potências de Kowai que não necessariamente por meio das cerimônias de iniciação. Mas, então, que potências são essas e onde elas podem ser acessadas?

Para os Baniwa, parece-me que estas potências estão na relação com os não indígenas, atualizando o acesso à alteridade que outrora era realizado privilegiadamente por meio dos rituais de iniciação em torno de Kowai. Neste contexto, nota-se a intensificação dos movimentos baniwa

de aproximação deliberada aos brancos em um período histórico recente. No início do século XX assistiu-se o engajamento baniwa na indústria extrativista por meio dos patrões não indígenas (Wright, 2005), cuja motivação, como demonstrou S. Hugh-Jones (1999) e Andrello (2006), para os povos do Uaupés, não se restringia à aquisição pragmática de mercadorias industrializadas, mas concomitantemente ao desejo pelos conhecimentos, capacidades e atributos situados além das fronteiras do nexo de parentes conhecidos. Mais recentemente, nas últimas quatro décadas, esta relação com os brancos se atualizou na participação baniwa com o movimento indígena pela demarcação de terras que os colocaram em contato com as organização indigenistas, no entusiasmo com a educação escolar e o ingresso na formação universitária, no movimento ambientalista, o qual se apresenta na interface entre o associativismo indígena e as organizações não governamentais, bem como nas relações com os antropólogos e uma série de outros pesquisadores não indígenas que circulam na região, com os quais estabelecem parcerias e alianças. Assim, até hoje, entre patrões e indigenistas, escolas e garimpos, missionários e antropólogos, os Baniwa vêm mantendo alianças e relações contínuas com os brancos.

Retomemos o argumento de Andrello, para este autor a alteridade veiculada pelos brancos é constitutiva aos grupos no Uaupés, não porque estes lhes forneçam conjugues, comportando-se como afins efetivos, mas porque, como afins potenciais, significam uma fonte de bens materiais e simbólicos, tal como livros, roupas, utensílios, remédios, e também, a leitura, escrita, cálculo, medicina, e então, escolas, igrejas e postos de saúde. Em suma, os brancos possuem objetos, atributos e capacidades que são alvo das capturas e apropriações indígenas (2006, p.409). Mas diante desses entendimentos, os brancos como alvo da predação indígena por meio da incorporação que fazem de suas potências, porque exatamente as relações com eles substituiriam ou atualizariam as relações com Kowai? Porque esta transformação ocorreu nestes termos?

A resposta que demonstrarei na tese é que Kowai, tal como os brancos, é um afim potencial, fonte da potência criativa baniwa. O herói é uma atualização poderosa do fundo de alteridade contra o qual os Baniwa produzem suas diferenças, seus clãs e a pessoa baniwa. Por este motivo, eu sugiro, a relação contínua com os brancos se mostra como uma transformação da relação dos clãs e pessoas baniwa com Kowai. No caso Baniwa, esta formulação é mais evidente, posto que Kowai é o único Jurupari no Noroeste Amazônico que assume a forma de um homem branco, em geral, um patrão, mas também em algumas exegeses, um antropólogo. É preciso notar que esta proposição é significativamente

divergente da apontada por parte da literatura rionegrina e, mais especificamente, da literatura arawak, do Noroeste Amazônico.

Muitos trabalhos e análises compreendem Kowai, Jurupari, como um puro ancestral, uma espécie de epítome da consanguinidade que seria, em certo sentido, anterior à afinidade. Pretendo demonstrar que, para os Baniwa, Kowai é um ancestral, mas um ancestral Outro. Esta tese é, portanto, uma digressão mítica, social e cosmológica, por meio da descrição etnográfica, que pretende demonstrar, entre outras coisas, a potência do que significa ser Kowai um afim potencial, do qual se extrai a consanguinidade, os patri-clãs e, em suma, a diferença para os Baniwa. De modo análogo, pretendo demonstrar, os motivos pelos quais a relação com os Brancos é, digamos, o ritual de iniciação de Júlio, o meu velho anfitrião, descrevendo como ele se fez um homem do clã Awadzoro, e Baniwa, contra e a partir da relação com os patrões brancos.