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A dor é o sentimento principal das pessoas que integram o Movimento pela Vida. Foi a dor da perda, da violência, que fez com essas pessoas se unissem para lutar por justiça social. Foi pela dor que elas decidiram não se acomodar, não se calar e lutar por justiça.

Por isso, fizemos a seguinte indagação: o que seria a dor? Para Denis (2011, p. 42), a dor física produz sensações e a dor moral ou espiritual produz sentimentos. O autor deixa claro que a experiência com a dor traz ao indivíduo a maturidade, a serenidade diante da vida. Segundo ele, muitas vezes é difícil para o homem compreender a dor como algo benéfico na

sua vida. É com a dor que esse homem alcançará sua ascensão espiritual e moral. “Cada qual gostaria de refazer e embelezar a vida do jeito que quisesse, enfeitá-la como todos os atrativos, sem pensar que não há bem sem-dor nem ascensão sem-esforços” (DENIS, 2011, p. 413).

Para Sarti (2001, p. 4), no entanto, a dor seria um processo de socialização entre indivíduo e sociedade. São experiências vividas ao longo do tempo. O entendimento sobre a dor é construído pelos indivíduos mediante suas referências coletivas e realidade social. Assim, a experiência da dor é regida por códigos culturais que são constituídos pela coletividade e determina as formas de manifestação dos sentimentos. Isto é, a dor se manifesta de acordo com essas experiências vividas coletivamente. Ela é constituída e manifestada pelo indivíduo a partir de sua interação com outro.

Em culturas estóicas, onde se valoriza o autocontrole, por exemplo, a dor será vivenciada e suportada distintamente de outras culturas sem estes valores. CECIL HELMAN (1994), ao distinguir a “dor privada” da “dor pública”, assinala que a dor é vivenciada nestes diferentes âmbitos sociais, de acordo com seu significado para o indivíduo e a cultura a que pertence. A forma de manifestação da dor precisa fazer sentido para o outro. Vivenciado e expresso mediante formas instituídas coletivamente, tal sentimento se torna inteligível para o grupo social. Os sentimentos constituem uma linguagem. As formas de expressão dos sentimentos não são naturalmente dadas, mas, segundo o trabalho clássico de MARCEL MAUSS [1921, p. 153], têm a obrigatoriedade dos fatos sociais: “mais do que uma manifestação dos próprios sentimentos, é

um modo de manifestá-los aos outros, pois assim é preciso fazer. Manifesta- se a si, exprimindo aos outros, por conta dos outros. É essencialmente uma ação simbólica” (SARTI, 2001, p. 6).

A autora diz que a manifestação das dores pelos indivíduos tem a necessidade de ser vista pelo outro, lembrando-nos da discussão de Schutz (2012), que defende que estamos sempre agindo para o outro. Nossas ações e comportamentos são pensados a partir da reação do outro. Assim acontece com a dor. Cada indivíduo que manifesta a sua dor ao outro, tem sua bagagem cultural e vivências que serão vistas e ditas durante sua manifestação de dor. Esses aspectos serão interpretados por um outro indivíduo que tem seu próprio mundo de sentidos. A dor, nesse sentido, passar a ter um valor social, participando da socialização, constituindo uma forma de interagir com outro, de fazer ver o sofrimento e de despertar no outro o sentimento de compaixão.

As integrantes do Movimento pela Vida expressam a sua dor com o desejo de interagir com outro. Sobretudo, com esse outro que não vivenciou essa dor com a violência. Por isso, mostrar o sofrimento ao outro é mostrar a violência e não permitir que a história do ente querido caia no esquecimento. A dor que uma mãe sente com a perda de um filho faz com ela queira

perpetuar a memória do filho. A mãe ou a pessoa que perdeu seu ente querido vive as dores do luto. Dores que, segundo Parkes (1998, p. 62), não são manifestadas em uma depressão profunda, mas em episódios agudos de dor, com ansiedade e dor psíquica. “Nessa ocasião, o enlutado sente muita saudade das pessoas que morreu, chora ou chama por ela” (PARKES, 1998, p. 62). Observamos essa dor da saudade na maioria das integrantes entrevistadas por nós, ficando evidentes os momentos em que elas relembram do ente querido. Choro, silêncio, pausa na hora de falar – tudo isso foi vivenciado por nós pesquisadoras durante nossas entrevistas. Relembrar do ente querido foi um momento muito triste para todas nós, as entrevistadas e as pesquisadoras.

A dor vivenciada pelas mães e/ou mulheres do Movimento pela Vida é o processo de luto. Segundo Freitas e Michel (2014, p. 274), o luto é vivenciado com a ruptura física entre o morto e o enlutado. Por conta dessa nova fase e momento da vida, o enlutado deverá ter uma nova significação no mundo da vida. “A vivência do luto impõe, por conseguinte, novas formas de ser no mundo, uma vez que aquelas anteriormente dadas não podem ser vividas novamente, e assim não haveriam uma exigência de ressignificação do luto, mas da relação com aquele que morreu” (FREITAS; MICHEL, 2014, p. 274).

A experiência que o enlutado irá vivenciar com o ente querido será reconfigurada. A relação dele com o ente querido que morreu se dará a partir do campo da coexistência do mundo vivido com a ausência presente do outro, como se esse ele ainda permanecesse na vida do enlutado. Andrelina, uma das nossas entrevistadas, relatou-nos que até hoje conversa com o filho, Bruno8. Ela nos disse que chama por ele, mantém uma relação como se ele estivesse vivo e próximo a ela. Esse relato de Andrelina sobre a dor acaba cativando uma relação e a atenção de quem a escuta. Relatar que ainda sente o filho próximo e vivo reforça esse pensamento. A esse respeito, Sarti (2001) diz que o relato da dor ganha o sentido de vivências coletivas – o que faz sentido quando nos envolvemos com a dor de Andrelina. Nesse momento, sua dor é socializada, passando a ser de todos nós, pois testemunhamos a sua história.

O desejo de perpetuação da memória do filho é um aspecto defendido por Freitas e Michel (2014), sobre o qual destacam que, no relato das mães que eles entrevistaram, o desejo de manter as memórias dos filhos é algo constituinte da vivência do luto. “O anseio de perpetuação da memória surge como uma tentativa de que o filho não seja esquecido pelos outros após a sua morte” (FREITAS; MICHEL, 2014, p. 280). Apropriando-nos do pensamento dos autores, nas observações que tivemos no Movida, pudemos identificar esse aspecto, já que

as integrantes do movimento têm esse desejo forte de manter viva a memória dos filhos. A presença dos banners, das camisetas estampadas com as fotos dos filhos ou entes queridos faz parte da realidade do Movida. Em qualquer evento de que o grupo participe, existe algo que lembre os seus entes queridos.

Homenagens em cemitérios, locais públicos, fotos, relatos escritos e verbais da história do filho, manutenção do quarto do filho, entre outras tantas formas de perpetuar a sua memória, são manifestações ampla e complexas da relação que a mãe passa a ter com o filho morto (FREITAS; MICHEL, 2014, p. 280).

Esse desejo de manter a memória do filho, segundo os autores, é um processo de ressignificação da relação eu-tu. Para Freitas e Michel (2014), as mães querem manter um vínculo com o filho mesmo após a sua morte. Essa atitude lhes ajuda a lidar com a perda, sobretudo, por não permitir que o filho seja esquecido. Relacionando ao cotidiano do Movimento pela Vida, o aspecto de querer manter essa memória de alguém querido é perceptível entre as integrantes entrevistadas. Elas buscam perpetuar essa memória nas aparições em eventos e na Praça da República. Mantendo tais memórias, além de ressignificar a relação entre eu-tu, como defendem os autores, é possível que outras pessoas conheçam as histórias e os casos do Movida. Há muitas maneiras de a mãe ressignificar sua relação com o ente querido morto, por exemplo, participando de projetos ligados a ele, aproximando-se de pessoas que lhe recordem dele. Para os autores, todos esses aspectos são formas de o enlutado manter uma relação com o ente querido morto.