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4.3 Uma troca de experiência 1

4.3.2 Narrativas de Dª Andrelina

4.3.2.1 Trocando experiências com Dª Andrelina

O modo como ela fala sobre ele nos faz acreditar na existência material de Bruno.

Nossa conversa foi carregada de muita emoção, com momentos de relato entre saudades, fatos vividos e lembranças coletivas. Ao final, fomos convidadas para tomar um cafezinho da tarde, na cozinha de Dª. Andrelina. Ao redor da mesa, vários outros assuntos foram relatados, entre festas, viagens, amigos, passeios e comportamento em família. Foi uma tarde diferenciada. Enquanto tomávamos o café, observamos havia fotos de Bruno Abner por todos os cantos da cozinha – paredes, armários, etc. Tamanho o amor dessa mãe para com Bruno que fez-nos perceber que se trata de uma mãe dedicada e amorosa. Esse amor pelo filho é o motivo de sua quase superação da dor da perda.

4.3.2.1 Trocando experiências com Dª. Andrelina

Nossa conversa foi iniciada com a presença de Bruno. Dª. Andrelina fez questão de espalhar em torno do sofá e da mesa de centro, álbuns de fotografias por toda parte. Essa mãe falava todo tempo com carinho do filho. Pediu aos pesquisadores, primeiro, para falar de Bruno. Quem era, o que fazia, como se relacionava, isto é, contar um pouco de sua vida. Segundo ela, isso era importante para entendermos quem era Bruno. Também entendemos como um desejo de uma mãe em não apagar a presença do filho. Relatou a nós que ele sempre foi uma criança precoce. Começou a ler e a escrever muito cedo, com 3 anos de idade. Aos 16 anos, entrou na faculdade e cursou Processamentos de Dados na Universidade da Amazônia (Unama). Foi tenente do Exército e por isso não tinha moradia fixa. Foi num desses lugares que Bruno conheceu Bruna, namorada que estava com ele durante sua morte. Andrelina fala com muito carinho de Bruna. Eles viveram durante 5 anos, mas não tiveram nenhum filho. Como Bruno sabia falar inglês e queria exercitar a língua, ele foi trabalhar à época na empresa de aviação TAM, hoje LATAM Airlines. Bruno foi assassinado na porta de casa, em 24 de março de 2008. Nas narrativas, Andrelina lembra que, no dia em que ele se foi, Bruno saiu do trabalho e passou na casa dela para pegar a chave da casa e a esposa. “Foi bem... meu Deus só de falar... na última vez que vi meu filho foi aqui na porta de casa com a roupa da TAM. Pegou um cesto de roupa que nós trouxemos do carro e guardou aqui em casa” relata a mãe, emocionada e chorando. Nesse momento, a conversa teve uma grande pausa, Andrelina chorou muito e, com a emoção, as palavras lhe faltaram.

Volta à narrativa. Relata que insistiu para que Bruno e Bruna dormissem em sua casa, pois o filho estava muito cansado e com dor de cabeça. Andrelina disse a eles que iria tomar um banho e pediu para que aguardassem. Subiu para o segundo pavimento da casa, mas Bruno e a namorada foram embora. Quando retornou do banho, Andrelina chamou por Bruna, mas ela não respondeu. Os dois tinham saído rumo à residência localizada no bairro do Telegrafo para buscar alguns pertences. Chegando em casa, relata a mãe, Bruno viu alguns e-mails, arrumou as coisas, colocou o cachorro dentro do carro e começou a tirar o carro da garagem. Bruna estava saindo da casa e trancando o portão. Bruno, de dentro do carro, já fora da garagem, pediu para ela entrar novamente em casa. Ela não atendeu ao pedido dele e entrou correndo no carro. Bruno fechou os vidros ao perceber a aproximação de três homens. Ele ligou o carro e a luz, com Bruna já dentro do carro, e os homens atiraram.

Antes de acontecer tudo isso ele falou para Bruna: “Não reage que eles estão

armados”, e os dois levantaram os braços. As fotos da perícia aparecem os

dois, ele de braço levantado. Aí ele disse: “Não reage que eles estão

armados”, só que a Bruna não está sabendo. Aí ele falou para ela assim: “amor, eu vou morrer”. Quando ela tocou aqui (no peito) nele parecia que

fervilhava aqui dentro (informação verbal)31

Segundo o relato de Andrelina, Bruno foi morto por engano. Os homens confundiram o carro dele, pela cor semelhante, com o de um traficante que eles estavam procurando, marcado para morrer e que morava ali por perto. Chegaram disparando em direção ao carro de Bruno achando que seria o carro dessa outra pessoa. Andrelina narra que, no momento do que estava acontecendo isso, ‘sentiu’ uma angústia muito grande:

Até então, sinceramente, eu não sabia quando tudo isso estava acontecendo. Antes que eu soubesse qualquer coisa, acho que as nossas ligações de mãe são muito fortes. Eu deitei, virei, segurei a minha perna, virei assim e senti tanta dor, tanta dor no meu corpo. Eu acho que era na hora que estava acontecendo. Eram dez e meia da noite. Estava com muita dor no meu corpo. Passou um pedacinho, um pedaço, logo após ligaram: “Alô”, meu marido atende o telefone. Pensa num homem que vai mudando completamente, ... ele foi ficando todo pálido: perguntei: Ribamar o que foi que aconteceu?” “Não...”

“Ribamar, o que aconteceu com o Bruno que o Victor Hugo está lá embaixo?”. Ele estava aqui em Belém porque nessa época o Victor Hugo fazia

mestrado. Aí eu disse: “O que foi que aconteceu com ele? Ribamar não mente

para mim, porque eu estou sentindo que aconteceu alguma coisa, se tu mentir é pior”, Ribamar disse: “Não, Andrelina, foi um assalto que teve e atiraram

31 PEREIRA, Andrelina. Entrevista concedida as pesquisadoras Ana Paula Mesquita, Alda Costa e Denise Salomão. Belém: 11. Mai.2017.

nele”. Aí eu gritei nessa casa inteira que vocês nem imaginam. Gritei... gritei...

gritei... parecia uma louca (informação verbal)32

Nesse momento, nós pesquisadores, fomos tomadas por uma emoção muito grande ao ouvir o relato de desespero dessa mãe. Identificamos nesse testemunho a experiência de Andrelina com a dor e com a violência. Relatou em seguida todas as suas sensações ao saber da morte do filho. A sua experiência com a violência em um primeiro momento a fez ficar desesperada. Num relato visceral, fala de seu desespero e de sua dor, a dor da perda. Andrelina consegue na narrativa nos transportar para o momento narrado, construindo as cenas do acontecimento. Atribuímos a esse relato o caráter de testemunho.

Identificamos, como pesquisadores, o testemunho da dor e do desespero de uma pessoa afetada pela violência. Da dor, porque o relato de Andrelina, desde quando começa a falar do filho, observamos os sentimentos de saudade, de dor da perda, pela forma trágica e violenta de como o filho foi tirado do seu convívio. Quando ela narra que sentia dor no corpo, associamos à mesma dor que o filho estava sentindo ao ser morto. Essa dor se configura em violência. Perder uma pessoa ou ente querido para a violência é per se uma violência. Testemunhamos também a dor e a violência sentidas na narrativa de Andrelina, a partir dos seus gestos, olhares, lágrimas, expressões da face e das mãos, evidentes durante a troca de experiência entre pesquisado e pesquisadores.

O segundo momento de dor veio revestido pelo sentimento de justiça. Dª. Andrelina ficou um ano, como ela mesma relatou: “sem viver a minha vida”. Foi um ano que não saía do Ministério Público do Estado procurando os promotores. Ligava todos os dias para o gabinete do juiz. Segundo ela, tinha que de alguma forma correr atrás da justiça. “A gente faz essas coisas assim, porque no momento que você vê a justiça ser feita olha, eu lhe juro, sabe? Deus sabe que não é vingança, parece que tiram um peso dos meus ombros, das minhas costas”, desabafou. Os dois assassinos de Bruno foram condenados um a 41 anos e o outro a 42 anos de prisão. O terceiro envolvido foi assassinado com 17 tiros, um ano depois da morte de Bruno.

A experiência com a violência, afirma Dª. Andrelina, foi de fato com a morte do filho. Antes, relata que nunca tinha tido contato e nem se ‘interessava’ pelo tema violência. Nunca tinha tido experiência com violência. Contou que nunca viu nem o pai e a mãe brigarem. Inclusive um dia perguntou à mãe em que local eles brigavam. Narrou que não tinha preocupação, antes, com o problema violência, e muito menos de que um dia a violência pudesse fazer parte de sua vida. Relatou que achava que a violência acontecia com os outros,

32 Idem

não fazia parte de sua realidade. “Eu tinha uma vida completamente diferente da que tenho hoje. Meus filhos cresceram no Cassazum, domingo a gente ia para lá fizesse chuva ou sol, sábado ou domingo jogávamos vôlei. Então assim, nunca me dei conta, sabes, nunca. Eu passava lá na Praça da República, olhava o Movida, mas nunca pensei que um dia eu estaria ali naquele lugar”.

4.3.2.2 Dª. Andrelina e o Movida

Dª. Andrelina ouviu falar do Movimento pela Vida a partir de uma informação que obteve de jornalistas de O Liberal. Eles, repórteres, deram o número da presidente do Movida, Dª. Iranilde. Narrou que inicialmente não procurou a entidade, não queria aceitar essa experiência com a violência e a condição de ter perdido um filho de forma violenta. Enfatiza: “Não aceitava isso”. Na missa de um mês de morte do filho, Dª. Andrelina conheceu a presidente do Movida, que participou junto com outras integrantes da cerimônia religiosa no Santuário de Fátima. No início, ficou reticente em participar do grupo.

Eu não me sentia naquele meio. Mas aí eu fui. Cheguei lá, comecei a conversar e o Movida, posso te dizer que ele me ajudou muito. Está resolvido o caso do meu filho, não é? Já foram julgados, condenados, então não tem mais nada para eles. Mas aí eu digo: não, eu vou. Eles me ajudaram, então eu tento ajudar as outras pessoas. Chegam mães lá iguais a mim quando cheguei, sabe, na mesma situação (informação verbal)33.

Dª. Andrelina explica aos pesquisadores que tem um compromisso com o Movida e com todas as pessoas que fazem parte do movimento. O sentimento empático é fundamental para estabelecer os laços e a força do movimento. Identificamos na narrativa de Andrelina não só o compromisso, mas também e principalmente a solidariedade quanto à dor do outro. Ao trocar experiências em torno da dor e da violência no grupo, consegue entender o outro na plenitude. A comunicação interativa acontece pela conversa, desabafo de mãe para mãe; de coração para coração. Observamos na narrativa de Andrelina a construção do afeto pelo grupo. As conversas que ela tinha com as outras mães, que também perderam filhos, confortaram-na profundamente. “O outro me entendia. O outro sentia o que eu sentia. O outro falava a minha língua”, afirma Andrelina. Segundo ela, essa troca de afeto ajudou a amenizar a dor da perda e a saudade do

33 PEREIRA, Andrelina. Entrevista concedida as pesquisadoras Ana Paula Mesquita, Alda Costa e Denise Salomão. Belém: 11 maio 2017.