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4 ANÁLISE DOS DADOS

4.2.2 A Família como Fonte de Financiamento: Fontes Internas, Dívida ou Capital

A influência da família na gestão pode estar relacionada a situações citadas na literatura como opção pelo crescimento tardio, e menor uso de práticas gerenciais de contabilidade (LEMA E DURENDEZ, 2007).

No entanto, a família pode representar uma fonte segura de recursos quando da necessidade da empresa. Empresários podem recorrer aos parentes e familiares, encontrando neles uma saída para pagamento de dívidas ou para realização de investimentos na empresa sem a cobrança de juros e prazos delimitados para pagamento. Porém, Lee e Persson (2016) alertam que obter recursos por meio dessa fonte, por vezes, pode implicar em custos ocultos (shadow costs). Um casal entrevistado, quando questionado quais os benefícios de se recorrer aos recursos familiares, expressou de forma bem marcante:

Nenhum! [...] Dependendo do familiar... Hoje em dia a base praticamente da sociedade é o dinheiro... Por dinheiro se mata, se rouba... se faz tudo! E família é assim, ó... é bom cada um no seu canto, mas falou em dinheiro, se torna tudo inimigo da pessoa.

Os entrevistados mencionaram a possibilidade de familiares cobrarem juros para emprestar, e não concordam com essa prática, apesar de ela não ser tão comum (isto é, não ser comum que familiares cobrem juros ao emprestar).

De qualquer forma, parece que, familiar ou não, qualquer empréstimo informal feito a pessoas físicas, atualmente, é feito com alguma taxa de retorno: “É, aqui, hoje em dia, funciona assim”, diz o esposo, quando a esposa interrompe: “O rotativo daqui é isso... Eu quero mil reais emprestado. Pronto. É a 5% (...) com qualquer pessoa! Pode ser família, pode não ser”.

Esses mesmos entrevistados não parecem favoráveis à cobrança de juros por familiares por terem passado uma experiência desagradável em razão de um dos parentes ser agiota. Quando os entrevistados recorreram à família, o parente agiota foi o único a emprestar o volume pretendido de recursos:

[Esposo]: A gente já precisou uma vez de um valor mais alto, ele cobra 4%, que ele é agiota, dono de [estabelecimento omitido]. Já precisei algumas vezes. Quando eu pego assim de imediato, pego com ele...

[Esposa fala]: Mas ele é assim, ele é da família. Pelo fato de ser família, que nem se diz na pergunta, poderia emprestar! [Ele] Não tem condições [para emprestar]? Não vai fazer falta....

[Esposo fala]: Mas assim, se eu precisar de dois mil reais, coisa pouca, também ele empresta [sem a cobrança de juros].

Ainda segundo o esposo, pegar emprestado com família seria o último recurso financeiro a se recorrer, mas, se for uma urgência e o pagamento acontecer de forma rápida, ele considera aceitável: “Eu digo assim, último recurso, mas se for de uma semana pra outra, tudo bem”.

No entanto, a esposa ressalta, que por vezes, não pagar com juros é pior, pois a família reage mal a essa situação. A esposa mencionou que algum entrevistado poderia até negar que ocorresse a cobrança expressa de juros na obtenção de empréstimo familiar, mas que haveria, de toda forma, uma cobrança implícita: “Vou dizer a verdade a tu. [O entrevistado que nega a ocorrência de juros] Diz só pra enfeitar tua pesquisa! Porque quando não empresta com juros, depois é pra ficar falando na cara. Melhor emprestar com juros”.

Essa característica realça a existência de custos ocultos e de evidências deixadas por Lee e Persson (2016): “Se a família possui menos problemas contratuais e é mais barato que financiamento formal, poderia se esperar que este empréstimo seria a primeira escolha dos empresários. Tomadores de empréstimo deveriam preferir e ‘explorá-lo’”.

Paradoxalmente, isso não ocorre em alguns contextos. A exemplo da pesquisa feita por Guerin et al. (2012), que evidenciou, como análise resultante da aplicação de questionário, que poucos empresários pequenos rurais na Índia apontaram parentes e familiares como primeira opção para empréstimos de recursos financeiros porque que não gostariam de se envolver com dívidas dentro do contexto familiar. Isso é reforçado pela resposta da esposa (entrevista 6) de que tal situação não é agradável por gerar comentários na família.

Esse comportamento de quase “aversão” aos recursos familiares não foi encontrado em outras entrevistas desta pesquisa. Pelo contrário, quando perguntados sobre as fontes familiares, os respondentes, em geral, afirmaram não incorrer em custos adicionais, juros ou exigências.

Isso corrobora o estudo de Lee e Persson (2016), que acordam, que em contextos mais pobres, os empréstimos familiares são frequentemente livres de juros.

Bygrave e Hunt (2004), por exemplo, demonstram que aproximadamente metade dos que emprestam recursos informais não cobra juros. A consolidação da média, tempo de pagamento e retorno estão apresentados na figura 28 abaixo, oriunda do estudo dos autores.

Figura 25 - Características de Financiamentos (Bygrave e Hunt, 2004)

Fonte: Bygrave e Hunt (2004)

O entrevistado 1, quando questionado sobre as circunstâncias em que julga vantajoso obter recursos familiares, responde:

Quando o investimento é pequeno e você vai ter retorno rápido, tá entendendo? Acho que é viável, e a quem você pediu vai precisar também né? Aí você não pode pensar como um banco, para pagar com dois, três anos. Tem que ser um empréstimo que tenha um retorno rápido.

Esse mesmo entrevistado, questionado se os empréstimos estão atrelados a algum tipo de exigência ou juros, afirmou que isso não ocorre, e que a única preocupação é em devolver o dinheiro rapidamente: “Não. Não exige não, só [exige] o ‘me dê rápido’ (risos).”.

O fato de esse valor ser comumente baixo perfila-se ao argumento de Lee e Persson (2016) de que empresários, que podem ser dependentes de recursos familiares, preferem usar recursos financeiros formais quando são investimentos arriscados ou para o crescimento da empresa.

A entrevistada 5, quando questionada sobre as circunstâncias de buscar recursos familiares, afirmou que

Só se a pessoa tiver devendo muito. Assim, se tiver que pagar aquela dívida, naquele momento, tá entendendo?”. Ela também afirmou que quando usa tais recursos,

não enfrenta dificuldades ou mesmo exigências, sejam juros ou prazo para pagar. A entrevistada 7 similarmente relata que:

Pra familiar eu iria se eu tivesse uma dívida. Não pediria do banco, porque o banco tem aquela regra, aquela coisa que se você fugir das normas, você é penalizado. Porque eles [os parentes] são mais flexíveis, né? Pelo

parentesco...

Ela também informou que a família, caso viesse a emprestar, não exigiria participação na tomada de decisão, nem estabeleceria qualquer tipo de restrição ou obrigações. Na mesma linha, a entrevistada 8 conta que, quando precisa, recorre a tal fonte:

Tipo assim, pedir dinheiro emprestado a alguém da família, né? Se precisar... sempre é eu [emprestando ou recebendo] e mãe [emprestando ou recebendo] (risos). É eu e ela... indo e voltando, desse jeito!”.

Quando perguntada se obter dessa fonte implicava alguma exigência, respondeu:

Não! É que é só a quantia que tá precisando (risos). Não tem isso de pagar

juros a ninguém. Eu e ela [sua mãe], a gente não tem isso não. [...] Já o meu

pai... [muda entonação] é diferente! ‘Vai me pagar com quanto?’ [entonação sarcástica].

Semelhantemente à entrevista 6 (o casal), ela discorda desse tipo de prática [de juros e encargos] vindo da família:

Rapaz, né normal não a pessoa cobrar juros da família. Fazer como o outro [expressão popular]: isso não é de Deus não! Não, normal não é não”.

Em suma, embora não seja comum a cobrança de juros e exigências, por vezes ocorre de familiares cobrarem algo, mas essa prática, aparentemente, não é a esperada ou bem vista pelos empresários. Isso se adequa ao trazido por Lee e Persson (2016) sobre obtenção de recursos formais e informais.

Os autores trazem exemplos de alguns estudos: o primeiro, de Petersen and Rajan (1994), aduz que há uma tendência de as firmas adotarem uma Pecking Order dinâmica, visto que os empréstimos são primeiramente relacionados aos familiares e amigos, realidade que vai sendo progressivamente alterada. O segundo, de Chavis et al (2010), mostra que, enquanto as empresas são jovens, tendem a usar mais recursos familiares do que bancos ou fontes formais, e que esse padrão financeiro vai sendo revertido à medida que a empresa existe. Asseverem, ademais, que, apesar de alguns familiares exigirem retorno sobre o que foi emprestado, as empresas tendem a recorrer a essas fontes quando precisam e julgam tal fonte como apropriada.

Destacam, por fim, a característica de se obter menor valor pelos parentes, se comparado aos bancos, e que algumas vezes há prazo para devolução dos empréstimos. Os entrevistados, entretanto, afirmam não haver interferência da família no negócio quando dos empréstimos.

Esse resultado descaracteriza a classificação feita por Araújo et al. (2016), que enquadrou as famílias como capital próprio enquanto fonte de financiamento (Berger e Udell, 1998, sustentam que tal fonte pode assumir a forma dívida ou capital próprio). Os autores assumem que a classificação da família como capital próprio implica a interferência (da família) nas decisões, sua participação nos negócios ou uma expectativa de retorno sobre o montante investido. Logo, o fato de familiares fornecerem recursos não seria ato de “altruísmo”, como alegam Lee e Persson (2016) em uma das hipóteses, mas, sim, de esperança, participação e estímulo a relacionamentos semelhantes aos pressupostos de agência.

O resultado do estudo atual coaduna-se com a ideia de recursos familiares serem caracterizados como recursos internos (como indica Mac na Bhaird, 2010), podendo, às vezes, assumir característica de dívida informal (por meio da cobrança de juros), como demonstra Berger e Udell (1998).

Reitere-se que, ao incorrerem em juros, os empresários podem se sentir indiferentes em obterem recursos externos, em detrimento dos internos advindos de familiares (como demonstrado pela entrevista 6). As evidências apontam, contudo, que, na maior parte das vezes, os recursos familiares são livres de custos e exigências, e são menos onerosos do que qualquer outra fonte. Isso pode explicar o fato de recurso familiar ter a segunda maior média de utilização de recursos para se iniciar o negócio (ver segundo bloco, item 4.1.2), e ser a terceira fonte de recurso mais utilizada durante a gestão, depois de recursos próprios e créditos com fornecedores. A preferência pelos recursos internos informais (pessoais e familiares) também se mostra relevante (ver segundo bloco, item 4.1.2).