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Cabe à família a gestão dos interesses privados, e o seu controle é fundamental para o progresso do Estado e da humanidade. Há várias funções desempenhadas pela família, como bem mostra o item 1.2, dentre as quais destacam-se o funcionamento econômico e a transferência do patrimônio, a reprodução biológica e a transmissão dos valores simbólicos da sociedade. Ou seja, as principais funções da família são a econômica, biológica e social. Portanto, segundo a afirmação de Perrot (1991, p. 105):

A “boa família” é o fundamento do Estado e, principalmente para os republicanos [...] existe uma continuidade entre o amor à família e à pátria, instâncias maternais que se confundem, e o sentimento de humanidade. Daí o interesse crescente do Estado pela família: em primeiro lugar pelas famílias pobres, elo fraco do sistema [...].

Percebe-se que a família ocupou um espaço privilegiado na sociedade, tornando- se lugar de intervenções nas mais diversas áreas. Tais ações privilegiavam as famílias pobres e/ou tidas como incapazes de desempenhar seu papel. Essas intervenções se dão por meio de ações filantrópicas, pela igreja, pela sociedade civil e pelo Estado, pois as famílias pobres não conseguiam, e não conseguem ainda na atualidade, subsidiar as funções para sua subsistência. Para tanto, faz-se necessário que demais instituições como o Estado e a sociedade civil organizada intervenham na esfera privada das famílias, principalmente das famílias pobres.

A partir do século XX é que o Estado reconhece a família enquanto espaço de intervenções numa perspectiva de garantia de direitos por meio de políticas públicas. Essas intervenções em sua maioria são feitas em famílias dos setores mais pauperizados da sociedade muitas vezes com ações estereotipadas com termos como: “família desestruturada”, “família de mãe solteira”, dentre outros que ferem a dignidade da pessoa humana.

A noção de desestrutura familiar, de acordo com Neves (2008), está pautada em contradições embasadas por um olhar burguês e por intervenções inférteis que abordam as famílias pobres sob um olhar homogêneo, por culpar as próprias famílias pela desestrutura dos vínculos familiares. Nesse sentido, cabe ressaltar que a pobreza não é uma escolha, muito menos uma opção para as famílias das classes populares. No capítulo seguinte, veremos que a família ainda é uma expressão da questão social pouco conhecida pelo Estado.

De acordo com Fonseca (2007), é necessário ter conceitos analíticos que sirvam para compreender famílias de camadas abastadas e famílias de camadas mais pauperizadas, não sendo construído um tipo ideal ou modelo familiar hegemônico que sirva de padrão quando se pensar em família. Os conceitos trazidos pelos estruturalistas ou culturalistas trazem uma compreensão de família pautada no imobilismo, no invariável, objetivando uniformizar os modos de vida privada.

Voltando à questão de gênero, na história da vida privada da sociedade oitocentista, o pai representa a direção da família e da sociedade civil, sendo considerado a proa, aquele que dá a direção, aquele que direciona o espaço público e o privado. Nas palavras de Perrot (2009, p. 110), “O pai tem duplos poderes. Ele domina totalmente o espaço público. Apenas ele goza de direitos políticos”.

Essa representação da figura paterna, como a direção, é interrompida apenas com a sua morte. Nesse momento é considerado grandioso e carregado de significados de ordens econômicas e afetivas na vida privada.

É objeto de relatos e representações. [...] estas são regulamentadas por lei. Mesmo assim sendo um lugar de despedidas, das transferências de poder, das grandes reuniões, dos perdões e reconciliações, dos novos rancores derivados da injustiça do desfecho. [...] é o acontecimento que dissolve a família, que permite a existência das outras famílias e a libertação dos indivíduos (PERROT, 2009, p. 116-117).

O surgimento do casamento no século XIX tornou-se um meio para os demais membros das famílias de escapar do domínio do pai e de ter uma vida independente de seu controle. Assim, uma das principais características desse século estava centrada: primeiro, em torno do próprio casamento, porque era através dele que se alcançava a tranquilidade, a felicidade e a tão almejada liberdade, e, segundo, nos dramas e nos conflitos familiares, que por vezes levavam a ruptura familiar. Em relação a esse último aspecto, Perrot (2009, p. 246), afirma que “a família é uma microssociedade ameaçada em sua integridade e até em seus segredos”.

Ao longo do século XIX, a família nuclear também passa a ser alvo de críticas e de revoltas apoiadas pelos artistas, pelos intelectuais e pelos seus membros, principalmente contra a autoridade paterna.

O domínio privado da família nesse século é a casa, seu elemento de fixação, considerada o fundamento material da ordem social, e ainda nas palavras de Perrot (2009, p. 286), “[...] lugar de sua existência, seu ponto de encontro [...]. Estabelecer um

lar é residir em uma casa”. As formas de morar são distintas entre a burguesia e as classes populares. A burguesia copiava os gêneros arquitetônicos europeus, misturando a racionalidade funcional e o conforto, enquanto as classes populares moravam em imóveis coletivos, como as vilas operárias, ou viviam mesmo nas ruas. É apenas no final do século XIX que surge a noção de moradia mínima, proposta pelo patronato industrial à classe operária.

Vejamos a relação entre classes pobres e o desejo de um lugar, enquanto a busca de uma identidade, no contexto do desenvolvimento urbano:

Para as classes pobres, a cidade é como uma floresta onde é preciso caçar a existência. [...] A originalidade das classes populares urbanas está em sua rede familiar não se inscrever nem na imobilidade da terra nem no fechamento de um interior [...], o duplo desejo de um lugar e um espaço para si se afirma com força crescente [...] (PERROT, 2009, p. 293).

Como podemos observar, a maneira de morar descreve a forma de socializar-se das pessoas. No caso de moradia de grupos populares, são utilizados termos pejorativos como vilas, moradia para carente, dentre outros termos subalternizantes e moralizantes. O que se propõe é pensar os modos de morar, o habitatus dos grupos populares numa perspectiva histórica, contudo, não há como negar as diversas formas de sociabilidade dos grupos populares.

O espaço privado não deve ser visto como natural, mas como uma realidade histórica construída pela sociedade, nas palavras de Prost (2009, p. 14), “não existe uma vida privada de limites definidos para sempre [...]. A vida privada só tem sentido em relação à vida pública”.

A partir do século XX a organização das famílias torna-se o público e o privado, com sentidos antagônicos. Isso ocorre na medida em que a sociedade vai se modificando e seguindo as suas próprias regras.

Uma das grandes mudanças ocorridas durante o século XX foram as transformações no mundo do trabalho, pois é nesse século que a esfera privada ingressa na esfera pública. As principais características que marcam essa passagem são a separação e especialização do que pertence ao espaço público e ao espaço privado, como também normas diferentes aos ambos espaços. Como afirma Prost (2009), os locais de trabalho e as normas não são mais os da vida doméstica. O espaço doméstico rompe com as regras dos séculos anteriores, no que diz respeito ao trabalho, ao mesmo

tempo em que esse espaço do trabalho é regido por contratos coletivos e não por normas da ordem do privado.

No início do século XX havia uma grande diferença entre trabalhar em casa ou na casa de outrem. Para os abastados, por exemplo, o ideal era ficar em casa sem trabalhar, e caso trabalhassem, a opção seria a própria casa, como ambiente próprio de trabalho. Já nas camadas pobres, o trabalho dava-se no espaço público, fora de casa, ou seja, nas fábricas, nas oficinas ou em casas de terceiros, isto é, “o trabalho [...] está totalmente integrado à esfera privada, mas ele a absorve inteiramente: a vida e o trabalho se confundem” (PROST, 2009, p. 20). Essa mudança altera significativamente a família, conferindo-lhe outras funções para além da econômica; a partir de então, são atribuídas outras funções, como a função educativa e assistencial, por exemplo.

Nesse momento o gozo a uma vida privada era reservado aos proprietários, rentistas e burgueses, enquanto às classes populares restavam-lhes as obrigações profissionais, pois eram reconhecidas apenas pelo trabalho. Sendo necessário entender a partir de qual pressuposto teórico está se discutindo o que é trabalho. De acordo com Bottomore (2001, p. 383), por exemplo, trabalho é “[...] uma condição da existência humana independentemente de qual seja a forma de sociedade; é uma necessidade natural [...] que medeia o metabolismo entre homem e natureza e, portanto a própria vida humana”.

O trabalho é a mediação entre o homem e a própria natureza, é através dele que o homem se reconhece enquanto ser humano. É qualquer dispêndio de força física ou mental que cria valor, tendo em si uma capacidade teleológica, capacidade essa entendida como a antecipação mental do resultado de suas ações. A teleologia é reservada aos seres humanos. Segundo Marx (1867 apud BOTTOMORE, 2001, p. 383):

[...] e é nessa qualidade de trabalho concreto útil que produz valores de uso. De um lado, todo o trabalho é um dispêndio de força de trabalho humana, no sentido fisiológico, e é nessa qualidade, de trabalho humano igual, ou abstrato, que ele constitui o valor das mercadorias. Por outro lado, todo o trabalho é um dispêndio de força de trabalho humana de uma determinada forma e com um objetivo definido.

É notório que o trabalho torna-se historicamente a protoforma da atividade humana e um elemento estruturante da organização da sociabilidade da vida humana. O

processo de trabalho é o trabalho materializado/objetivado em valores de uso, e a sua condição de existência é comum a todas as formas da sociedade humana. O trabalho adquire não apenas o valor econômico em si, mas valor moral que é retirado por meio dele, segundo Sarti (2007), a capacidade de trabalhar é transformada em mercadoria17 a ser vendida em troca de salário no modo de produção capitalista, correspondendo à força de trabalho18.

As transformações no processo de trabalho no capitalismo atingi diretamente a produção de mercadorias, como também refletem nas instituições tais como a escola, a igreja, o Estado, a família, dentre outras. Mas em relação ao objeto de estudo, nos deteremos às consequências na instituição familiar.

Em relação à família percebe-se que há uma perda paulatina de suas funções públicas, restando-lhe as funções ditas privadas. Uma de suas funções, como a educação, foi transferida gradualmente por instituições coletivas, ocorrendo assim uma privatização da família denominada de “vida privada individual”.

A família que agora se consagra exclusivamente a suas funções privadas já não é, de fato, exatamente a mesma que também possuía funções públicas. A mudança de funções acarreta uma mudança de natureza: na verdade, a família deixa de ser uma instituição forte; sua privatização é uma desinstitucionalização (PROST, 2009, p. 53). Diante do exposto, pode-se dizer que houve dois motivos que foram divisores na história da vida privada durante o século XX, ambos ocorreram de forma solidária e articulada na sociedade. O primeiro diz respeito às mudanças no mundo do trabalho, momento esse em que o trabalho sai das residências e se firma nos espaços públicos por meio de normas legais, das convenções coletivas sobre os direitos trabalhistas. O segundo motivo é que houve uma privatização do indivíduo dentro da família.

As transformações em curso nas quatro últimas décadas vêm contribuindo decisivamente para as mudanças dos perfis familiares, como exemplo, pode-se

17 “A mercadoria é a forma que os produtos tomam quando essa produção é organizada por meio da troca.

[...] os produtos são propriedade de agentes particulares que têm o poder de dispor deles transferindo-os a outros agentes. A mercadoria tem duas caraterísticas: pode satisfazer a alguma necessidade humana (valor de uso); e pode obter outras mercadorias em troca, poder de permutabilidade que Marx chamou de VALOR” (BOTTOMORE, 2001, p. 265-266).

18 “Força de trabalho é a capacidade de realizar trabalho útil que aumenta o VALOR das mercadorias. É a

sua força de trabalho que os operários vendem aos capitalistas em troca de um salário em dinheiro. A força de trabalho [...] é o próprio exercício efetivo da capacidade produtiva humana de alterar o valor de uso das mercadorias e de acrescentar-lhes valor” (BOTTOMORE, 2001, p. 156).

mencionar o aumento no número de divórcios, das relações monoparentais19, das famílias reconstituídas20 e homoafetivas, como também o aumento considerável da união estável21, principalmente nos países ocidentais. Dessa forma, faz-se necessário compreender as alterações em curso que ocorrem em escala societal e o elo que existe entre as transformações no espaço familiar e os padrões mais abrangentes dessas mudanças.

A temática da Família é um campo de intersecção para o qual as diversas áreas do conhecimento trazem uma relevante contribuição na perspectiva de elucidação do tema, como, por exemplo, na História, na Sociologia, na Antropologia, na Psicologia, no Direito, na Educação, no Serviço Social, assim como também no campo da Demografia. Ou seja, é uma temática em que há vários pontos de convergências com as mais diversas áreas do saber/conhecimento, pela própria particularidade do tema. Dessa forma, há necessidade de abordar a temática da Família a partir de uma óptica interdisciplinar22, dialogando e debatendo-a nas diversas áreas do saber, pois uma única área do conhecimento não consegue dar conta da totalidade de dimensões que compõem os estudos sobre a temática; caso contrário, ocorrerá uma leitura reducionista da família. Como afirma Prado (1985, p. 7):

A história da humanidade, assim como os estudos antropológicos sobre os povos e culturas distantes de nós [...] esclarece-nos sobre o que é a família, como existiu e existe. Mostra-nos como foram e são hoje ainda variadas as formas sob as quais as famílias evoluem, se modificam, assim como são diversas as concepções do significado social dos laços estabelecidos entre os indivíduos de uma sociedade dada.

Para compreender a diversidade de configurações familiares, faz-se necessário, também conceituar o que vem a ser família em suas múltiplas acepções nos vários campos do conhecimento. Destarte, parece mais apropriado falar de famílias do que

19 Refere-se a composições familiares chefiadas pelo homem ou pela mulher. A família monoparental é

diversificada, podendo ser composta por mães o pais viúvos (GIDDENS, 2005).

20 “Refere-se a composições familiares em que ao menos um dos cônjuges tem filhos de um casamento ou

relacionamento anterior” (GIDDENS, 2005, p. 159).

21 A união estável também pode ser entendida como a coabitação. Coabitação é quando um casal tem um

relacionamento sexual sem estar casado (GIDDENS, 2005).

22Crítica de uma concepção de conhecimento que toma a realidade como um conjunto de dados estáveis, sujeitos a um ato de conhecer isento e distanciado... A interdisciplinaridade questiona a segmentação entre os diferentes campos de conhecimento produzida por uma abordagem que não leva em conta a inter-relação e a influência entre eles – questiona a visão compartimentada (disciplinar) da realidade [...] Refere-se, portanto a uma relação entre disciplinas” (BRASIL, 2000, p. 40).

família, pois, como afirma Giddens (2005, p. 152), “referir-se a famílias enfatiza a diversidade de formas familiares. Embora possamos nos referir de modo simplificado à família, é fundamental lembrarmos a variedade compreendida do termo”.

Como foi possível perceber desde a pré-história até a atualidade, há variados formatos de composições familiares, mas a cada passagem histórica a sociedade e os indivíduos vão se complexificando. Para compreender melhor o que foi exposto até o momento, no próximo item abordaremos o(s) conceito(s) de família(s), a fim de nos aproximarmos de um mapa conceitual sobre as múltiplas configurações familiares que coexistem no tecido social.