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Um olhar demográfico sobre as Configurações Familiares no Brasil: uma

O modus faciendi29 da família brasileira durante o período Colonial (1500-1815), traz em si singularidades e particularidades enquanto instituição decorrente das mais diversas influências de âmbito econômico, social, político e cultural, atingindo a família em seus mais variados aspectos, desde a sua ocupação no espaço urbano decorrentes das mudanças em curso nas relações de produção que vão impondo de diversas ordens nas configurações familiares. Para entender como se apresentam as configurações familiares na Região Metropolitana do Brasil, em especial, na RM/Natal, faz-se necessário compreender qual/quais as características do perfil sociodemográfico dessas configurações familiares em relação a sua tipologia e ao seu tamanho, a partir dos dados dos Censos Demográficos de 2000 e 2010.

Para apreender minimamente essas mudanças que vem ocorrendo nas configurações familiares no Brasil nessas duas últimas décadas, vale a pena refletir sobre esse passado recente da formação das configurações familiares no Brasil a partir das condições de privacidade do período Colonial. Assim, podemos estabelecer comparações a partir de análises mais próximas da realidade analisada. Como afirma Novais (1997, p. 10):

Reconstituir [...] as manifestações da intimidade na Colônia portuguesa, procurando articulá-las com as estruturas mais gerais da colonização, e, ao mesmo tempo, explicitar as peculiaridades desse processo, não é, por certo, nem de longe, uma tarefa fácil. Mas indispensável, para entendermos os contornos da privacidade no Brasil propriamente dito que, gestados no interior da Colônia, desenvolvem-se ao longo dos séculos XIX e XX.

No Brasil, como nas demais colônias regidas por suas metrópoles, havia uma imbricação entre as esferas do público e do privado que se estende por transições não mais feudais, e ainda não capitalistas. Para nossa história esse é um momento característico por apresentar uma posição intermediária em todos os ângulos que vai do político ao econômico. No ângulo econômico predomina a produção mercantil, mas não há o assalariamento como regime de trabalho dominante; já no ângulo político, o poder não está centrado mais nas relações de vassalagem e suserania, como no feudalismo, mas na monarquia absolutista ainda em formação (NOVAIS, 1997).

Para reconstruir as formações familiares no Brasil nesse momento, é necessário articulá-las no contexto da Colonização Moderna no geral por ter sido um fenômeno global que envolveu todas as esferas da existência (NOVAIS, 1997; NETO; MENEZES, 2009). A colonização não se deu apenas demograficamente, mas a dimensão demográfica foi essencial nesse processo porque envolveu grandes deslocamentos populacionais porque a família emerge como representação de um grupo social, no momento em que a colonização inicia a sua ocupação territorial e necessita povoar a terra ora descoberta.

A colônia é vista como um prolongamento da metrópole e ao mesmo tempo a sua negação. A metrópole é uma região onde as pessoas saem (emigram), e a colônia é uma região para onde as pessoas vão (emigram). No sentido demográfico as estruturas do cotidiano populacional na Colônia são de intensa mobilidade, dispersão, fluidez e instabilidade com correntes de povoamento pelo litoral brasileiro sem sedimentar/criar

laços primários, e dessa forma dificultando a formação de núcleos familiares que objetivavam a permanência em um espaço. De acordo com Novais (1997, p. 21), “[...] essa dispersão decorre diretamente dos mecanismos básicos da colonização de tipo plantation que prevaleceu na América portuguesa: da sua dimensão econômica [...] resulta a montagem de uma economia predatória que [...] tende para a itinerância”.

A organização familiar e a vida doméstica na formação da sociedade brasileira e o modo de viver de seus habitantes na Colônia são elementos essenciais para compreender a família brasileira no que se refere à constituição familiar, como também aos seus padrões de moradia, de trabalho, de tamanho e de tamanho ao longo do tempo, dessa forma:

[...] o próprio caráter de uma sociedade estratificada, na qual a condição legal e racial dividia os indivíduos entre brancos e negros, livres e escravos, dificulta a tentativa de buscarmos de norte a sul do país, no mundo urbano e rural e ao longo de quase quatro séculos, padrões semelhantes de vida e de organização familiar, até mesmo no interior de uma determinada camada da população (ALGRANTI, 1997, p. 85).

Para entender as organizações familiares e a vida doméstica na Colônia, optou- se analisá-la a partir do domicílio, pois esse é o espaço privilegiado de convivência da intimidade, do foro privado. Segundo Algranti (1997), esses domicílios são dos mais variados formatos e habitados por diversas composições familiares, uma das causas dessa sobreposição era que as famílias se constituíam a partir de diferentes tipos de uniões e estavam dispersas por longos tempos. Na atualidade, o domicílio ainda se sobrepõe à família em algumas análises, como exemplo, podemos citar a forma de mensuração do IBGE, em que cada domicílio é uma entidade familiar. Diante do exposto, surge uma indagação: será que em cada domicílio no Brasil há apenas uma família residente? Ou em um domicílio pode residir mais de um arranjo familiar? Se a segunda hipótese ocorrer, haverá subnotificação dos tamanhos e dos tipos das configurações familiares no Brasil.

Tantas foram as formas que a família colonial assumiu, que a historiografia recente tem explorado em detalhe suas origens e o caráter das uniões, enfatizando-lhe a multiplicidade e especificidades em função das características regionais da colonização e da estratificação social dos indivíduos (ALGRANTI, 1997, p. 87).

No que diz respeito às formas de sociabilidade no ambiente doméstico eram concentradas fora do domicílio, ou seja, na esfera pública, na igreja, na rua, nas festas religiosas com as procissões e missas. As relações íntimas na Colônia eram marcadas por sexo pluriétnico, escravidão e concubinato. Com isso, pode-se até questionar que a família patriarcal não era o modelo exclusivo de organização familiar no Brasil, como demonstram os estudiosos sobre família (VAINFAS, 2000). Já nesse período havia diversas composições familiares além do modelo patriarcal que era colocado como sendo o ideal e mais indicado para a sociedade que se formava até então no Brasil, houve uma insignificância do espaço público que hipertrofiou o espaço privado no país.

O modelo de família patriarcal no período do Brasil Colônia e Império pode ser caracterizado por tais características: rural e extensa até o século XIX, e nuclear no século XX, quando a população brasileira vai para um ambiente urbano e moderno (TERUYA, 2000). Ainda conforme essa autora:

O modelo de família patriarcal pode ser assim descrito: um extenso grupo composto pelo núcleo conjugal e sua prole legítima, ao qual se incorporavam parentes, afilhados, agregados, escravos e até mesmo concubinas e bastardos; todos abrigados sob o mesmo domínio, na casa-grande ou na senzala, sob a autoridade do patriarca, dono das riquezas, da terra, dos escravos e do mando político. Ainda se caracterizaria por traços tais como: baixa mobilidade social e geográfica, alta taxa de fertilidade e manutenção dos laços de parentesco com colaterais e ascendentes, tratando-se de um grupo multifuncional (TERUYA, 2000, p. 3-4).

A égide da família patriarcal explica a estrutura colonial vivenciada pelo país por um longo período. A ausência de um Estado centralizado e forte fortaleceu o poderio patriarcal.

No período Imperial (1815-1889), a vida privada confunde-se com a vida familiar porque, ao longo do processo de organização política e jurídica nacional, a vida escravista é repleta de contradições quando comparada com a ordem pública. O significado de privus (particular), na língua portuguesa, tem raiz filológica do latim e do direito romano, originando duas palavras similares, como menciona Alencastro (1997, p. 16): “a primeira privatus (privado) e a segunda privus-lex ou privilegium” (lei para um particular, privilégio).

Os determinantes sócio-históricos no Brasil Império desenham o cotidiano, a sociabilidade, a vida familiar (espaço privado) e a vida pública nacional cabendo

ressaltar que o escravismo não se apresenta como uma herança colonial, mas o retoma e o reconstrói no cenário da modernidade (ALENCASTRO, 1997). O poder privado do senhor sobre seus escravos é que define a ordem escravista.

A formação de colônias alemãs no sul do país data de 1824, ano de fundação da Colônia de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Essas famílias viviam da produção de subsistência, como, por exemplo, a produção de alimentos para uso próprio a qual era realizada num sistema semelhante ao de uma pequena empresa em que cada membro da família detinha um fazer na divisão social do trabalho. No fim do século XIX, o período imperial no Brasil se desestabiliza, com isso a monarquia enfraquece e novas forças políticas e ideológicas entram em cena. Como afirma Sevcenko (1998, p. 14), “uma nova elite de jovens intelectuais, artistas e políticos, chamada de geração de 70 comprometida com [...] a modernização das estruturas ossificadas do Império”. As bases ideológicas dessa elite insurgente são fundamentadas nas correntes cientificistas tais como o darwinismo social de Spencer, o monismo alemão e o positivismo francês de Augusto Comte.

Já no fim do século XIX e meados do século XX, precisamente em 1889, inicia o período Republicano no Brasil, e em nenhum momento anterior tantas pessoas foram envolvidas num processo tão amplo de transformações no contexto econômico internacional que afetaram desde suas sociabilidades, representadas por seus hábitos cotidianos, suas convicções, até a noção de tempo e espaço das pessoas num ritmo e intensidade dos transportes, das comunicações e do trabalho (SEVCENKO, 1998; MONTES, 1998). No século XX, a vida privada não se confina apenas ao isolamento individualista, mas se estende para além da esfera doméstica e dos limites da casa e do círculo familiar. Os estudos sobre família no Brasil foram por um longo tempo relegados à segunda classe pelos cientistas sociais no país. Apenas em meados da segunda metade da década de 1970 é que há um impulso nos estudos populacionais sob vários ângulos.

Um dos desafios apontados sobre as tendências da família brasileira, de acordo com Berquó e Oliveira (1989), é a diversidade de possibilidades de análises que está por trás de indicadores sintéticos e que camuflam a realidade familiar no país sem considerar a heterogeneidade de sua formação sócio-histórica; outro desafio descrito pelas autoras é o relativo desconhecimento das características da vida familiar vivida no Brasil.

Algumas evidências sobre a família no Brasil, com enfoque nos estudos demográficos, ratificam que a temática foi deixada de lado por muito tempo também pela demografia. Muito embora, esta tenha dedicado seus estudos principalmente à estrutura da população por fecundidade, sexo, idade e situação conjugal, os quais têm trazido inúmeras contribuições sobre a população brasileira, porém esses indicadores precisam ultrapassar análises sintéticas que não retratam a realidade dos dados.

É necessário, portanto, compreender essas mudanças pelo olhar da demografia, que nos fornece condições teóricas para analisá-las em nível regional e local. Vale ressaltar as contribuições dos historiadores demográficos ingleses e franceses, a partir do século XVI, que coletavam registros de forma sistemática referentes a casamento, batismo e morte, estabelecendo a história biológica das famílias ao mesmo tempo com dados censitários fornecidos casa por casa, construindo assim tipologias das unidades domésticas nas paróquias (FONSECA, 1989).

No Brasil, os historiadores demográficos, de acordo com Teruya (2000), acompanharam as discussões da Inglaterra e da França, adaptando as metodologias utilizadas e considerando as especificidades da formação social e histórica local.

A compreensão das estruturas populacionais específicas, nesse caso as famílias, a partir de processos demográficos são resultados de mudanças nas formas e concepções de viver e sobreviver de uma sociedade e de estilos de vida de diferentes camadas sociais. (BERQUÓ, 1998).

Esses processos de mudanças demográficas dependem de transformações sociais, econômicas e culturais em um momento em uma determinada população de um país. Na perspectiva demográfica e estatística, as mudanças e permanências vêm marcando a estrutura familiar brasileira nas últimas décadas, pois, segundo Berquó (1998, p. 414), “a família é [...] a instituição a que é atribuída a responsabilidade por tentar superar os problemas da passagem do tempo para o indivíduo como para a população”. Dessa forma, percebe-se a importância da função social e da função biológica /reprodutiva inerente à família.

Nos estudos demográficos esses processos são resultados de vários condicionantes: da evolução dos níveis e padrões da fecundidade, da quantidade e do tempo da nupcialidade, das separações, dos divórcios, dos recasamentos, das alterações dos níveis de mortalidade por sexo e idade, sem esquecer também da intensidade dos deslocamentos espaciais da população no território. Algumas hipóteses são levantadas a partir desses estudos: a família nuclear no Brasil continua predominante, com o

tamanho reduzido; ocorreu um aumento considerável das uniões estáveis30 e de famílias monoparentais, tendo o pai ou a mãe como chefe da família, sendo esta última a mais frequente.

Vale ressaltar duas principais mudanças que estão ocorrendo na esfera privada, ou seja, no interior do núcleo familiar: a primeira é o acúmulo de papéis que a mulher vem ocupando tanto no espaço público quanto no espaço privado, atribuições que há algumas décadas eram exclusivamente masculinas foram, paulatinamente, divididas e/ou delegadas às mulheres; a segunda está relacionada aos novos padrões de relacionamento entre os membros da família, ou seja, está ocorrendo uma tendência da passagem de uma família menos hierárquica para uma família mais igualitária nas camadas médias e, a posteriori, deverá atingir as camadas populares. Tal realidade traz mudanças incomparáveis ao que se entende por “família” porque o sentido de família sai da sobreposição da dimensão biológica/reprodutiva de consaguinidade e passa para uma mais dimensão social e emotiva, elencando a afetividade como um elemento estruturador nos arranjos familiares na atualidade.

De forma resumida, vamos traçar o quadro demográfico do Brasil entre as décadas de 1940 a 1980, para depois adentrarmos nas duas últimas décadas. Em termos gerais, nesse período a população brasileira passou por profundas mudanças apresentando taxas de crescimento bem variadas, ora crescente ora decrescente.

Entre 1940 e 1960, seu ritmo de crescimento anual foi acelerado, passando de 2,4% entre 1940 e 1950, para 3,0% no segundo decênio deste período. Já na segunda metade do período, ou seja, de 1960 a 1980, seu ritmo se reduz, caindo para 2,9% ao ano, entre 1960 e 1970, declinando ainda mais até atingir a taxa anual de 2,5% nos últimos dez anos (BERQUÓ; OLIVEIRA 1989, p. 2-3).

Observa-se também que a partir da década de 1980 a taxa de fecundidade no Brasil continua a decair, chegando em 1984 a estimativa de 3,5 filhos por mulher em cada domicílio. Uma consequência da queda da taxa de fecundidade é um progressivo envelhecimento da população com mais de 60 anos de idade que passou de 4,2 em 1950 para 6,1 em 1980 (BERQUÓ; OLIVEIRA, 1989).

30 De acordo com o Código Civil de 2002 em seu artigo 1723: É reconhecida como entidade familiar a

união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família (ANGHER, 2009, p. 214 ).

A família brasileira apresentou, principalmente nos dois últimos censos, uma redução contínua de seu tamanho e uma maior diversidade em sua composição devido às diversas transformações que vêm ocorrendo em vários aspectos, sejam econômicos, políticos, sociais e culturais, e que se encontram no perfil demográfico da população brasileira com o crescente número de divórcios, de separações, no adiamento de casamento entre jovens, dos recasamentos, do aumento na legalização das uniões estáveis e de famílias monoparentais e de famílias monoparentais chefiadas por mulheres.

De forma geral, pode-se afirmar que essas duas mudanças que vêm ocorrendo nas últimas décadas nas configurações familiares referentes às composições e aos tamanhos das famílias no país, desnaturaliza uma concepção simplista e harmônica da família nuclear como sendo o padrão familiar que tem o objetivo de atender as necessidades básicas (funções econômicas, sociais e biológicas) dos sujeitos. Segundo Alves (2010, p. 8):

O modelo de “família normal” integrada por um pai provedor, uma mãe dona de casa e seus filhos, como garantia intergeracional do futuro e da reprodução contínua do mesmo tipo de célula familiar, não corresponde ao tipo predominante de arranjo doméstico contemporâneo existente no Brasil e em outras partes do mundo. Embora tipos tradicionais de família sejam encontrados, a família, em geral, não é nem homogênea e nem harmonicamente integrada como sugerem as descrições de alguns tipos ideais que não levam em consideração o contexto de desigualdades sociais existentes em um mundo globalizado, com seus mecanismos de exclusão e estratificação social.

Como se pode observar, o modelo de “família normal/ nuclear” não é garantia da continuidade da espécie humana, e no caso do Brasil, não corresponde mais ao único arranjo doméstico legal e reconhecido pelo Estado. Ao contrário, na atualidade tipos tradicionais de configurações familiares convivem com os demais tipos de configurações familiares que também foram reconhecidos como família pelo Estado, dispondo das mesmas garantias constitucionais das configurações familiares nucleares: a união estável e as uniões homoafetivas31.

31 O Supremo Tribunal Federal, em 05.05.2011, por meio de uma Arguição de Descumprimento de

Preceito Fundamental nº 178 (ADPF), vem propor “a). que é obrigatório o reconhecimento, no Brasil, da união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher; e b). que os mesmos direitos e deveres dos

O processo de modernização das estruturas econômicas e sociais traz consequências para a população brasileira, pode-se mencionar as mudanças nas características das famílias, na produção e reprodução das condições materiais e subjetivas de sobrevivência da população. Segundo o IBGE (2014), outras configurações e tamanhos familiares vão dinamizando as relações sociais na esfera pública e privada. No próximo capítulo, veremos de forma breve como foi a formação da RMN.

companheiros nas uniões estáveis estendem-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo” (BRASIL, 2011).

4 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS