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FAVELIZAÇÃO E ILEGALIDADE: “UM MAL NECESSÁRIO” O período que se abre a partir da década de 1990 no Brasil, sob

de Janeiro (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO et al (1996a;

MOVIMENTOS SOCIAIS

2.2. FAVELIZAÇÃO E ILEGALIDADE: “UM MAL NECESSÁRIO” O período que se abre a partir da década de 1990 no Brasil, sob

a influência do intenso avanço do neoliberalismo, é marcado por um refluxo e institucionalização dos movimentos sociais populares urbanos e por um crescimento alarmante da exclusão social e da ocupação irregular e favelização nos centros urbanos. A solução encontrada pelo Estado para tentar assegurar a superação da crise que assolava o país foi um golpe pesado que atingiu em cheio os segmentos populares da população: a ênfase na informalidade. A promoção do setor informal surge para, em parte, retirar o próprio Estado da esfera social. De acordo com Gohn (2006), as políticas para o setor informal visam resgatar um pouco da legitimidade do Estado, que, normatizando aquele setor, faz com que situações informais de trabalho ou habitação sejam redefinidas, não sendo mais percebidas como excludentes e negadoras de direitos sociais. Muda-se a lógica dos programas de políticas públicas que, baseando-se na relação custo-benefício, apelam ao comunitarismo para este fim.

A criatividade popular, o saber contido nas práticas tradicionais herdadas dos antepassados são reapropriados como forma de rebaixamento de custos. O resultado tem sido a instauração de um novo padrão de urbanização, de segunda categoria; a institucionalização da segregação social existente, e a desqualificação dos direitos de cidadania, criando-se uma cidadania inferior (GOHN, 1991, p. 36).

Os diversos problemas sociais que se multiplicam são fruto do modelo de desenvolvimento escolhido pelo governo brasileiro, que embora tenha conseguido estabilizar a economia com a criação de uma nova moeda (o real), teve um altíssimo custo social relacionado à sua abertura ao capital financeiro. Como afirma Gohn (2006), este último tem no capital especulativo um setor que atua completamente desvinculado do processo produtivo (formal ou informal), que pela sua

volatilidade migra sem o mínimo compromisso com os processos de desenvolvimento das nações onde investem. Esse caminho intensificou a lógica excludente no Brasil, que através da modernização de algumas regiões em poucas décadas, deslocou milhares de pessoas do campo para as cidades, transformadas em mão de obra de reserva e sem as mínimas garantias de direitos básicos para sua cidadania. Mas isto não é o bastante para explicar as mudanças na estrutura de classes ocorridas a partir dos anos 1990, porque além da mão de obra migrante, o desemprego também atinge pessoas que nem sequer foram incorporadas (ou que foram incorporadas precariamente) ao mercado de trabalho, e que nem mesmo foram expulsas de atividades em extinção. Ou seja, o aumento de produtividade da indústria brasileira não carrega consigo a diminuição das taxas de desemprego, ao mesmo tempo em que gera diversos impactos negativos relacionados à força de trabalho: precarização das condições de trabalho, com aumento da informalidade; instabilidade, com a ampliação das subcontratações e terceirizações; e, conforme Souza (2012, p. 183), “no limite, estímulo ao incremento de estratégias de sobrevivência ilegais, especialmente as relacionadas ao subsistema varejo do tráfico de tóxicos”.

Podemos entender que onde se territorializa precariamente essa população excluída, as opressões sociais acabam sendo substancialmente acentuadas, devido ao fato de esses espaços mais vulneráveis tornarem-se uma espécie de “terra de ninguém”, onde a “lei é do mais forte” (MARICATO, 2010). Além da estruturação do tráfico, que é responsável por diversos tipos de violências e sujeições da população, podemos notar elevados índices de homicídios, dentre outros problemas. Para além da “guerra ao tráfico”, a segurança do Estado, protagonizada pelas polícias, muitas vezes acaba por reproduzir nas suas práticas preconceitos enraizados e difundidos pela mídia e outros meios, encarando o sujeito favelado e periférico muitas vezes enquanto um potencial criminoso. Daí decorre, por exemplo, o número assustador de pessoas – negras, principalmente – mortas ou desaparecidas. Quanto às mulheres, se a falta de segurança e a falta de leis de amparo e/ou cumprimento das mesmas já é débil na “cidade oficial”, nas áreas de pobreza a situação é pior (o que também vale para a população LGBT), o que facilita a ocorrência de casos de assédios, agressões, estupros e feminicídios. O abandono de mulheres com as crianças também é muito comum, e a falta de amparo legal acaba por sustentar um alto índice de mães de família sustentando crianças sozinhas e sem pensão, o que intensifica sua condição de pobreza e favorece o distanciamento das

crianças em relação à educação, dedicando seu tempo ao trabalho – que, quando ilegal, tende a reduzir drasticamente suas expectativas de vida40.

Sabe-se, conforme Maricato (2011), que a ocupação irregular de terras urbanas no Brasil é realidade intrínseca do processo de urbanização e tem uma dimensão gigantesca. Isso não ocorre, de modo geral, por influência de setores organizados da esquerda e movimentos sociais, mas é algo estrutural e institucionalizado pelo mercado imobiliário excludente e também se deve ao histórico das políticas sociais que não tiveram a resolução do problema como foco. E como se trabalhou no capítulo anterior, a dissimulação ideológica tem um papel fundamental na manutenção dessa realidade.

Em termos de habitação, é importante compreender a diferenciação existente entre a realidade das cidades dos países centrais e a dos países periféricos, que tem a ver com a regulação estatal sobre o espaço urbano e o alcance do mercado imobiliário formal. Isto porque nas “cidades centrais”, o Estado aplica uma regulação efetiva do solo urbano, enquanto nas “cidades periféricas” a maioria da população acaba por ocupar áreas informais, segregadas em relação à chamada “cidade oficial”, devido à não aplicação das leis e planos urbanísticos (vide capítulo anterior). Em países (semi)periféricos como o Brasil, a maior parte da população (cerca de 70%) encontra-se fora do mercado privado formal e necessitariam de subsídios para moradia. Isto é, o mercado formal ou legal restrito (sendo ele um produto de luxo para uma pequena parcela da população) é característica estrutural do modelo de cidade periférica baseada no lucro especulativo das terras e imóveis, que combinado à escassez de moradia, segregação e informalidade, possibilita um maior êxito – isto se deve ao fato de estes três últimos elementos não ocorrem de forma completamente espontânea, mas serem produtos históricos desse modelo de cidade (MARICATO, 2010).

40 De acordo com os dados da Anistia Internacional no Brasil, referentes ao período entre 2004 e 2007, 192 mil brasileiros foram mortos, sendo que um número inferior (170 mil) foi detectado em países como Iraque, Sudão e Afeganistão. Isso significa que se matou mais no Brasil do que nas 12 principais zonas de guerra no mundo. De acordo com os últimos levantamentos feitos pelo grupo, 56 mil pessoas foram assassinadas em solo brasileiro em 2012, sendo 30 mil jovens e, entre eles, 77% negros. (Fonte: Carta Capital. In: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/violencia-brasil-mata-82-jovens- por-dia-5716.html>. Acesso em: 25 jul. 2015.

Devido às restrições do mercado formal e falta de alternativas habitacionais, a população de baixa renda, os excluídos e excluídas, que passam a proliferar proporcionalmente à intensificação da urbanização nos moldes corporativos, passam a ocupar as áreas “que sobram”, desinteressantes à especulação: encostas, mananciais, mangues, áreas de inundação e áreas públicas em geral de preservação ou proteção ambiental. As leis acabam sendo por muitas vezes flexibilizadas, para que as cidades comportem a massa de despossuídos, a mão de obra barata tão importantes à reprodução e acumulação do capital.

Maricato (2010) considera que ao levarmos em conta a dimensão do número de favelas e o número de pessoas/famílias que nelas “invadem” terras para morar, podemos entender que há um consentimento do Estado nos países subdesenvolvidos no que se refere à gigantesca ocupação irregular do solo urbano. Esse consentimento serve à flexibilização das leis, sendo o mercado o definidor das terras que podem ser ocupadas pela pobreza urbana – isto é, onde não há interesse do mercado a ocupação ilegal é permitida. Vale lembrar que mesmo nesses casos o mercado pode se beneficiar depois, avançando sobre áreas ocupadas pela população pobre e passíveis de regularização.

Em outro trabalho, a autora define favela a partir da “condição jurídica totalmente ilegal de propriedade do lote” (MARICATO, 2011, p. 153). Apesar de reconhecer a rejeição do termo invasão por parte dos movimentos sociais, ela usa-o para buscar uma precisão jurídica, tratando-se da ocupação da terra alheia (frequentemente pública ou de propriedade confusa) por falta de alternativas, na maioria absoluta dos casos. Segundo a autora:

Se considerarmos que toda população moradora de favelas invadiu terras para morar, estaremos nos referindo a mais de 20% da população do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre (LABHAB, 1999), 28% da população de Fortaleza (LABHAB, 1999) e 33% da população de Salvador (SOUZA, 1990). Nas cidades do Norte e Centro-Oeste (Belém, Manaus, Porto Velho, Rio Branco, Cuiabá/Várzea Grande) essa relação pode se revelar mais grave devido ao alto e recente crescimento demográfico decorrente de movimentos migratórios. Na cidade do Recife, segundo o próprio IBGE, a população moradora de favelas chega a 40%. Os dados mostram que

exceção nas grandes cidades” (MARICATO,

2011, pp. 153-154, grifo nosso).

Se considerarmos loteamentos ilegais, que não constituem, geralmente, terras invadidas, mas têm diversas ilegalidades, o problema se acentua de modo assustador. “Se somarmos os moradores de favelas aos moradores de loteamentos ilegais temos quase a metade da população dos municípios do Rio de Janeiro e de São Paulo (MARICATO, 2011, p. 154). Desde a última virada de século, a oferta de lotes ilegais em São Paulo ultrapassou a soma de todas as formas legais de unidades habitacionais do mercado privado. Maricato (2011) busca sempre pontuar o fato de que a gigantesca ilegalidade que estamos abordando não é fruto de ação de lideranças subversivas contrapondo-se à lei, mas resultado de um processo de urbanização que segrega e exclui ao mesmo tempo que necessita ceder em alguns pontos para manter uma ordem.

Por mais que a ocupação de terras e imóveis na constituição das favelas, ou mesmo na ocupação por sem teto, seja uma afronta aos princípios da propriedade privada, isso acaba sendo tolerado ao levar-se em conta que “sem a válvula de escape representada por essas saídas ilegais, os pobres urbanos não teriam como sobreviver – e o sistema não seria viável, entrando em colapso” (SOUZA, 2006, p. 305, grifo no original). Para Souza (2006), essa tolerância é um indício de “inteligência sistêmica” que cumpre com o papel de manter viva a economia urbana e a ordem social vigente. A informalidade da economia dos pobres é, portanto, um mal necessário à economia capitalista urbana, ao garantir condições de subsistência às pessoas que, se não fosse por isso, não teriam alternativas ao desemprego e, por consequência, ao desespero (fator de elevação da criminalidade). Deste modo, há uma comercialização de bens baratos entre os pobres, permitindo sua reprodução social, caracterizando o que Santos (2013) denominou de circuito inferior na economia urbana41.

41 Santos (2013) afirma que o “circuito inferior na economia urbana constitui um mecanismo permanente de integração que oferece um número máximo de oportunidades de emprego com um volume mínimo de capital. [Correspondendo] às condições gerais de emprego e disponibilidade de dinheiro, assim como às necessidades de consumo de uma importante fração da população” (p. 67). O autor critica a denominação deste circuito de “setor informal”, que o trata como algo paralelo ao “setor formal”. Isto porque seu funcionamento é dirigido por leis, sendo ele um subsistema complementar ao

Souza (2006) não deixa de comentar que há um perigo para as elites e Estado frente a esses modos de ocupação ilegal/irregular (podendo ser os imóveis privados ou públicos), principalmente nos casos em que isso se dá de forma organizada, por sujeitos coletivos dotados de uma consciência social – como no caso dos/as sem teto. Mas este é um ponto chave e contraditório na produção capitalista do espaço urbano, pois a pobreza precisa se reproduzir de um lado e o sistema e a ordem social, de outro. O uso da ideologia e do clientelismo acabam por exercer um papel importante para a manutenção da “paz social”.