• Nenhum resultado encontrado

de Janeiro (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO et al (1996a;

1.3.4. O Estatuto da Cidade: uma faca de dois gumes

O Estatuto da Cidade (EC), para além de suas limitações, foi uma importante conquista advinda do “caldo de politização” que influenciou o planejamento urbano no Brasil nos anos 1980. De acordo com Villaça (1999), o EC surgiu como uma das principais frentes da luta pela reforma urbana, pois dele dependia muito da credibilidade dos planos diretores – sendo estes últimos uma outra frente, além dos movimentos populares setoriais por terra urbana, habitação ou transporte. Para o autor, que escrevia seu trabalho dois anos antes da aprovação do Estatuto da Cidade, o destino do planejamento urbano no Brasil e o perfil, a credibilidade e o conteúdo dos planos diretores

estariam ligados principalmente “aos avanços da consciência de classe, da organização do poder político das classes populares” (pp. 240-241).

O Estatuto da Cidade, lei federal nº 10.257, foi aprovado em 2001 e adquiriu prestígio mundo à fora tornando-se um “exemplo de como setores de diversos extratos sociais [...] podem persistir muitos anos numa ideia e alcançá-la, mesmo num contexto adverso” (MARICATO, 2010, p. 05). À sua aprovação seguiu-se a criação do Ministério das Cidades (MC), no primeiro ano do governo Lula em 2003, que veio a “ocupar um vazio institucional inexplicável para um país maciçamente urbanizado e que apresentou nos últimos 50 anos uma das maiores taxas de urbanização do mundo” (MARICATO, 2005b apud TOMÁS. 2012, p. 127).

Porém, não se pode ignorar que, embora caracterizem avanços na esfera legislativa, o EC e o MC não garantem mudanças efetivas em problemas estruturais que vêm sendo produzidos ao longo de várias décadas. Com tudo o que vimos trabalhando até aqui, podemos constatar o quão arbitrário é o uso da lei na sociedade brasileira, o que se agrava quando a legislação está relacionada à questão da propriedade fundiária e imobiliária. Aplicar as determinações do Estatuto da Cidade no contexto excludente de um país como o Brasil, marcado pelo poder político associado à propriedade patrimonial com raízes tão profundas, não é tarefa simples. Mas para além de todas as dificuldades, não se deve negar a relevância deste instrumento em caso de implementações concretas das suas diretrizes – o que é perfeitamente possível. Um dos grandes diferenciais do EC é gerar aos municípios uma grande autonomia para a efetivação dessas diretrizes, o que põe suas aplicações na dependência da correlação de forças da esfera municipal36.

A função social da propriedade é central no EC, possibilitando através de sanções regular a propriedade urbana voltada ao mercado imobiliário. “O EC trata, portanto, de uma utopia universal: o controle da propriedade fundiária urbana e a gestão democrática das cidades para que todos tenham o direito à moradia e à cidade” (MARICATO, 2010). Segundo Maricato:

A construção da nova matriz urbanística passa pela eliminação da distância entre planejamento

36 No item 3.2 do Capítulo 3, trabalharemos um exemplo de como são complicadas essas correlações de forças, ao abordarmos a experiência do Fórum do Maciço do Morro da Cruz (FMMC) em Florianópolis e a sua relação com o poder público local.

urbano e gestão. Passa ainda por uma nova abordagem holística [...]. Mas, talvez mais importante do que tudo, ela não pode ignorar a necessidade de desconstrução das representações dominantes sobre a cidade e nem a necessidade de construção de uma nova simbologia engajada a uma práxis democrática (2011, p. 169).

Se a organização de setores populares foi crucial na construção de um instrumento tão importante como o Estatuto da Cidade, acreditamos que para a efetiva aplicação dessas leis e a construção de novos avanços que podem levar a modelos de cidades mais humanizadas, o caminho deve ser semelhante. Por isso mesmo entendemos que a organização e os processos educativos que podem ser gestados em cada espaço de territorialização precária, que são impulsionados por esse modelo de urbanização excludente, têm uma grande relevância. Quando determinados sujeitos coletivos rompem a bolha da aceitação de sua condição e passam a caminhar rumo à sua cidadania, os interesses conflitantes no espaço urbano vão sendo explicitados, possibilitando confrontos de ideias que oportunizam diferentes horizontes.

Nesse sentido, Gohn (2010, p. 66), reconhece a importância do papel educativo dos movimentos sociais na consolidação de instrumentos participativos para a política das cidades:

O importante a destacar é esse campo de força sociopolítico, é o reconhecimento de que suas ações impulsionam mudanças sociais diversas. O repertório de lutas que eles constroem demarcam interesses, identidades, subjetividades e projetos de grupos sociais. A partir de 1990, os movimentos sociais deram origem a outras formas de organizações populares, mais institucionalizadas, como os fóruns nacionais de luta pela moradia popular. No caso da habitação e reforma urbana, por exemplo, o próprio Estatuto da Cidade é resultado dessas lutas. O Fórum de Participação popular e tantos outros fóruns e experiências organizativas locais, regionais, nacionais e até transnacionais estabeleceram práticas, fizeram diagnósticos e criaram agendas, para si próprios, para a sociedade e para o poder público. O Orçamento Participativo e vários programas surgiram como fruto desta trajetória.

Souza (2006) reconhece a importância de instrumentos que garantam a participação popular como um passo importante para um planejamento e gestão do espaço urbano, mais voltados à autonomia de seus cidadãos e cidadãs. Porém, o autor alerta que a sociedade civil deve ser mais do que “apenas uma interlocutora ou “parceira” do Estado em matéria de planejamento e gestão: é preciso que ela geste as suas próprias propostas e, à revelia do Estado, apesar do Estado e contra o Estado, busque concretizá-las” (SOUZA, 2006, p. 273). Esse caminho deve ser construído pelos setores da sociedade que defendem um outro modelo de cidade, pautado na justiça social e na garantia de direitos elementares, e compreendemos que os ativismos e movimentos sociais têm grande destaque nessa tarefa.