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FEMICÍDIO/FEMINICÍDIO: O PANORAMA LATINO-AMERICANO

As constantes e diversificadas formas de violência sofridas pelas mulheres não são restritas a um espaço geográfico, não possuem fronteiras. Segundo Pasinato (2011), a América Latina é um exemplo de casos de violência contra a mulher que termina em morte, definida como feminicídio.

A autora afirma que a temática femicídio/feminícidio foi despontada no mundo, primeiramente, em Ciudad Juarez no México, para denunciar as mortes de mulheres. Atualmente, além do México, é possível encontrar estudos sobre femicídio em países como Argentina, Bolívia, Chile, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Panamá, Paraguai e Peru.

Segundo Vianna (2010), desde 2007, o México tem a “Ley General de acceso de las mujeres a una vida libre de violencia”. Essa lei, assim como a Lei Maria da Penha, no Brasil demonstra, que os Estados reconhecem a desigualdade de gênero que gera violência para mulheres e toma a iniciativa de combatê-la não só com maior visibilidade e categorias específicas em relação à questão criminal, mas também através de Políticas Públicas que transformem essas relações, aumentando a autonomia e a integridade física e psicológica das mulheres.

Segundo o relatório da ONU, o panorama do feminicídio é mundial. Estudos realizados em diversos países demonstraram que, em El Salvador, cento e quarenta e sete casos de femicídio/feminicídio ocorreram entre janeiro e maio de 2005. Ainda de acordo com a ONU, no mesmo panorama, dentre esses casos, vinte e um foram classificados como femicídio íntimo e sete como femicídio não íntimo, os demais casos representados por prostitutas assassinadas por clientes e mulheres assassinadas por estupradores, agressores sexuais. Em 2001, uma mulher era assassinada por seu parceiro a cada 12 ½ dias no Uruguai; em Porto Rico, em 2004, foram registrados trinta e um casos de mulheres assassinadas como resultado de violência doméstica; 32,3% das vítimas eram casadas e 12,9% estavam separadas na época do assassinato; na Colômbia, duas mulheres são assassinadas a cada dia como resultado dos conflitos armados.

Nas Américas, observam-se cifras elevadas em países como a Guatemala que passou por violentos conflitos internos. Lá, atingiram setenta mortes femininas por agressão para cada cem mil habitantes, consideradas as maiores taxas do continente. Outro ponto relevante é que, na América Latina e no Caribe, as mulheres não apenas dedicam mais tempo que os homens ao trabalho doméstico não remunerado ou de cuidados, mas também sua carga de trabalho total, incluindo as atividades remuneradas é maior. No entanto, continuam sendo discriminadas no mercado de trabalho e recebem salários inferiores (CAMPBELL, 2007).

Já na Costa Rica, segundo Carcedo; Sagot, (2000), mais da metade dos homicídios de mulheres são consequências da violência baseada na desigualdade de gênero e violência doméstica, sendo uma das causas mais frequentes dos homicídios de mulheres ocorridos entre 1990 e 1999.

No Chile, os femicídios estão legalmente tipificados no código penal e, conforme as estatísticas policiais, entre 2007 e 2010, foram registrados duzentos e vinte e cinco casos de femicídios, número que corresponde a 58,9% dos assassinatos de mulheres no mesmo período. Segundo a ONU, seis a cada dez mulheres assassinadas no Chile foram mortas pelo próprio parceiro ou por pessoas que tiveram algum vínculo afetivo. Ainda consoante os dados

oficiais, 30% dos crimes ocorreram na residência do casal e 23% na residência da vítima. Em 73% dos casos não foram identificadas denúncias prévias de violência. Uma característica interessante associada a esses crimes é que, em 30% dos casos, os agressores se suicidaram logo após os crimes e os 11% tentaram fazê-lo (ONU, 2011).

De acordo com o estudo da “Small Arms Survey”, em torno de sessenta e seis mil mulheres são assassinadas a cada ano no mundo, 17% das quais são vítimas de homicídios intencionais. O relatório Feminicídio: um problema global analisou os dados de assassinatos de mulheres em nível mundial de 2004 a 2009 e concluiu que a porcentagem de feminicídios é significativamente maior nos territórios com altos níveis de homicídios. (BRASIL, 2010).

Entretanto, embora a porcentagem de feminicídios seja significativamente maior nos territórios com altos níveis de homicídios, a dificuldade dos números reais de feminicídios é um fato corriqueiro na América Latina e no Caribe. Como afirma Carcedo; Sagot (2000), a ausência de informações dificulta uma contabilidade do número real de assassinatos baseados em gênero na região.

Para Gebara (2005), os sistemas de compilação de dados, nos diferentes países, não oferecem estatísticas precisas a respeito das vítimas, suas relações com os perpetradores, a causa específica das suas mortes, os motivos do crime ou a existência de violência doméstica prévia. Consequentemente, as investigações dependem da imprensa para informações, o que resulta em uma subestimativa do número atual de assassinatos na região.

Como já mencionado, Gomes (2010) também afirma que, na América Latina, a maioria dos homicídios contra mulheres constitui femicídios. A exemplo do Brasil, em estudo realizado na região metropolitana de Cuiabá, evidenciou que mais da metade, 58% em 2007 e 62% em 2008 dos homicídios contra mulheres foram casos de femicídio.

Pesquisa realizada por Meneghel; Hirakata (2011) demonstrou que aproximadamente vinte mil mulheres morreram por agressão no Brasil entre 2003 e 2007, um coeficiente de mortalidade médio padronizado de 4,1 óbitos/100.000. Espírito Santo, Pernambuco, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Rondônia, Alagoas, Mato Grosso do Sul, Roraima e Amapá apresentaram os maiores coeficientes no período.

Para as autoras, entre os vinte mil óbitos femininos por agressão registrados nos cinco anos estudados, a maioria eram jovens, solteiras e de baixa escolaridade. Mulheres pretas e pardas representaram 50,7% do total da amostra. Cerca de 20% das mortes femininas ocorreram entre adolescentes e menores de vinte anos. Aproximadamente um terço dos óbitos ocorreu no domicílio das vítimas.

De acordo com estudo do Instituto Sangari, coordenado pelo sociólogo Júlio Jacobo Waiselfisz e realizado em parceria com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, de 1980 a 2010, houve um aumento de 217,6% nos índices de assassinatos de mulheres. Para esse sociólogo, à medida que se adentra à investigação sobre as mortes violentas de mulheres, especialmente aquelas decorrentes de conflitos amorosos ou sexuais, percebe-se novas dimensões que desafiam o conhecimento. E mais: para ele, embora os assassinatos sejam quase sempre cometidos por maridos, ex-maridos, companheiros e ex-companheiros namorados e ex-namorados, decorrentes de situações de rupturas do relacionamento ou de ciúme, ocorrem outras modalidades também em circunstancias de gênero, além de vitimarem outras pessoas como filhos, parentes e amigos das mulheres que estão na mira da violência.

Ressalte-se que a violência contra a mulher continua sendo grave problema social no Brasil e no mundo. O Mapa da Violência de 2012 que trata de Homicídios de Mulheres no Brasil colocou o Brasil na 7ª posição de índice de feminicídios entre oitenta e quatro países (WAISELFISZ, 2012).

Ainda de acordo com a pesquisa do Mapa da Violência de 2012, a taxa de homicídio no país ficou em torno de 4,4 vítimas para cada cem mil mulheres. El Salvador encabeça o ranking, com taxa de 10,3 vítimas para cada cem mil mulheres. O Brasil aparece atrás apenas de Trinidad e Tobago (7,9), Guatemala (7,9), Rússia (7,1), Colômbia (6,2) e Belize (4,6). Em outra ponta, aparecem Marrocos, Egito, Bahrein, Arábia Saudita e Islândia com taxa zero. Chama atenção o fato de 69% das mulheres-vítimas, atendidas pelo SUS brasileiro terem sido violentadas no ambiente doméstico, ou seja, a violência que acontece no lar é praticada por quem, supostamente, deveria amar e proteger a vítima.

Lemos (2010) refere que uma das marcas do femicídio no Brasil tem sido a impunidade, o que constitui um grave problema. De acordo com o autor, a problemática da violência contra a mulher, até hoje, não tem encontrado um razoável caminho para solucioná- la ou pelo menos reduzi-la e punir os culpados. Destaca-se, no entanto, que algumas tentativas de enfrentar tal problema foram postas em prática, como exemplo, conseguiu-se implantar na estrutura policial a Delegacia de Defesa da Mulher e, no âmbito do legislativo, a aprovação da Lei Maria da Penha. Convém apontar que sete anos após a promulgação da Lei, o número de denúncias vem aumentando, porém, a maioria ainda esbarra no obstáculo que beneficia os agressores: a impunidade.

Ainda de acordo com Lemos (2010), no observatório Lei Maria da Penha, ligado à UFBA, que monitora a aplicação da lei em todo o Brasil, verifica-se que ainda há muito machismo e preconceito entre os próprios delegados e juízes, que tendem a classificar a

violência contra a mulher como um assunto de foro íntimo, relegado a um segundo plano diante de outras questões.

Blay (2008) corrobora com Lemos quando afirma ser recorrente ouvir da parte de policiais, delegados/as, juízes/as e advogados/as que não adianta intervir nos casos de agressão contra a mulher porque elas mesmas acabam por retirar a queixa antes realizada contra o agressor. Em um precipitado julgamento, acusam as mulheres pela falta de coragem e criticam-nas pelo fato de retirarem as queixas. Para Blay, é lamentável que alguns profissionais ainda pensem assim e não tenham a sensibilidade para perceber que, quando uma mulher retira a queixa, geralmente é porque ela é dependente financeiramente do parceiro ou teme a retaliação do parceiro.

No entanto, houve algumas alterações na lei quanto à possibilidade de retirada da queixa pela mulher, depois de realizado o Boletim de Ocorrência - BO. Essa renúncia da ofendida a essa representação somente será admitida perante o Juiz, conforme o Art. 16 da Lei Maria da Penha.

Outro aspecto pertinente de pontuar é quanto as relações extraconjugais que sempre tiveram uma conotação diferente entre homens e mulheres. Conforme Koerner (2002), no Brasil, sob o pretexto do adultério, o assassinato de mulheres era legítimo antes da República. O Código Criminal de 1830 atenuava o homicídio praticado pelo marido quando houvesse adultério, porém, se o marido mantivesse relação constante com outra mulher, essa situação constituía concubinato e não adultério. Posteriormente, o Código Civil (1916) alterou essas disposições, considerando o adultério de ambos os cônjuges razão para desquite.

Para Biancarelli (2006), durante séculos, o assassinato de mulheres pelos maridos não era tratado como crime de punição. Argumentos como “legítima defesa da honra”, aliados à construção de uma identidade transgressora da mulher, invertiam os papéis de vítima e agressor. As mulheres brasileiras lutaram contra essa inversão que ocorria nos Tribunais de Júri, garantido a impunidade de assassinos confessos. Para a autora, esse tipo de argumento foi rejeitado formalmente pelo Superior Tribunal de Justiça em 1991 e é menos aceito em nossas cortes na atualidade.

Estudos realizados pela SPM demonstram que um terço das mulheres sofre violência física ou ameaça com armas de fogo e arma branca, e grande parte delas acabam sendo assassinadas por esse tipo de arma. Também é comum o espancamento com as mãos ou objetos, tentativa de estrangulamento, arremessos de objetos contra a mulher e pontapés, que muitas vezes chegam a assassinato (WAISELFISZ, 2012).

Há, ainda, a subnotificação das denúncias presentes em todas as classes sociais. De acordo Biancarelli (2006), existe uma grande parcela de mulheres em situação de violência e muitas em estado de ameaça de morte, sentindo-se presas ao parceiro, com medo de realizar a denúncia. Nesse sentido, tornam-se reféns dentro de seu próprio domicílio e, às vezes, quando fazem denúncias, temem ser mortas pelo agressor em represália.

Lobo; Almeida; Brasil (2010) acrescentam que o serviço de notificação da violência é precário ou inexistente, de modo que a violência é tratada como morbidade por causas externas, sem uma particular atenção para a complexidade da situação.

Outro ponto relevante a ser observado é que, na declaração de óbito, a causa básica da morte é lançada, obedecendo-se às normas do CID-10 no capítulo XX, que se refere à morte por causas externas, nos códigos CID (X85 a Y09); e o código do CID -10 que classifica o assassinato da mulher pelo parceiro é o Y07.0. Entretanto, muitas vezes esse código não é utilizado no preenchimento da declaração de óbito, mascarando, assim, a morte por questão de gênero (OMS, 2009).

Ainda para Lobo; Almeida; Brasil (2010), outro fator que pode colaborar para falhas na revelação das verdadeiras estatísticas de morte de mulheres por violência são os cemitérios clandestinos, ainda comuns no interior do Nordeste, visto que para enterrar a morta nestes cemitérios não há controle de atestado de óbito.

Assim, se as informações a respeito desse fenômeno ainda não são reais, obviamente elas não poderão desencadear medidas preventivas adequadas. Barsted; Pitanguy (2011) afirmam que, geralmente, ao mensurar a violência contra as mulheres, esbarra-se em muitos obstáculos que começam na naturalização ou banalização desse fenômeno, contribuindo para a histórica subnotificação dos eventos violentos em geral e, especialmente, daqueles de natureza sexual ou praticados no âmbito doméstico.

Meneghel (2012) acrescenta que a precariedade nos sistemas de informação dificultará a estimativa do número real de assassinatos baseados em gênero. Na maioria dos países latino-americanos, os sistemas de compilação de dados não oferecem estatísticas precisas a respeito das vítimas, suas relações com os perpetradores, a causa específica das suas mortes, os motivos do crime ou a existência de violência doméstica prévia.

O Ministério da Saúde dispõe de um sistema informatizado reconhecido como o Sistema de Informação de Mortalidade - SIM com o objetivo de fornecer dados da mortalidade em todo o país. Entretanto, o próprio Ministério enfatiza que, embora seja perceptível que a cobertura do SIM esteja crescendo e a qualidade da informação venha melhorando desde sua implantação, sabe-se que tal cobertura do sistema ainda não é

completa. Ademais a comparação entre o número de óbitos ocorridos e os declarados no SIM mostra ainda deficiências. Para melhorar essa análise da cobertura do SIM, foi calculada a razão entre os óbitos notificados pelo SIM e os estimados pelo IBGE. Os resultados apontam que, nas regiões Sul e Sudeste, os dados estejam sendo melhores coletados que nas outras regiões. No Norte e no Nordeste, a subnotificação de óbitos é evidente, fazendo com que as taxas de mortalidade não expressem a realidade do país, especificamente da região Nordeste (BRASIL, 2011).