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A educação recebida ao longo de uma vida, na família, na escola e nas relações sociais, vem inserindo mecanismos que prescrevem e inscrevem como devem ser e se comportar determinados sujeitos. Esses dispositivos historicamente constituem sujeitos e produzem relações, dentre elas, a de identidade étnica, sexual, racial, de classe e de gênero. Geralmente, seus efeitos e resultados acabam instaurando posições hierárquicas tendo, como consequência, as relações desiguais entre os sujeitos (MARQUES; MAGALHÃES 2012).

Em outras palavras, é durante o processo educativo que os padrões de comportamentos, as regras sociais, os valores éticos e morais, os costumes e estereótipos são

transmitidos e, certamente, isso refletirá nos hábitos, princípios e valores de cada pessoa, de forma positiva ou negativa.

Ainda para Marques; Magalhães (2012), desse modo, por exemplo, desde muito cedo, as crianças recebem orientações dos pais, avós, professores, enfim, dos mais velhos, as quais indicam que homens e mulheres deverão desempenhar funções diferentes. Essas mensagens são difundidas socialmente e vão influenciar até mesmo o modo de brincar de meninas e meninos, isto é, os meninos são instruídos a brincarem com bola, soltar pipas, como atividades exclusivas de homens, enquanto que brincar de boneca e "casinha" são brincadeiras apenas para meninas. Aliás, essas inculcações dão-se inclusive na escolha da cor rosa para menina e azul para o menino.

Como consequência, essa divisão vai dificultar a relação entre meninas e meninos e, no futuro, entre mulheres e homens, favorecendo uma segregação, estimulando-se as relações de poder e a violência de gênero (PAECHTER, 2009).

Corroborando com esse pensamento, Brougére (2004) diz que os estereótipos provêm dos pais e das pessoas que cercam a criança, isto é, os pais constroem o primeiro ambiente de brinquedos da criança, antes que ela comece a fazer suas escolhas, sendo que o quarto das meninas é rosa, com bonecas; o dos meninos, azul, com carros em miniatura. As meninas costumam brincar de “casinha” e representam o papel da mãe; os meninos, de “motorista”, que dirige o carro. Meninos não choram e são bagunceiros; menina pode chorar e deve ser comportada.

Villamarín (2002) acrescenta que é o contexto em que a criança vive especialmente no meio familiar, que dirige inicialmente tais escolhas, pois a família é o primeiro lugar onde inculcam o que é serem mulher e o que é ser homem e isso, certamente, reflete-se no tratamento cotidiano: atitudes que se reforçam e sancionam.

Além da Educação informal recebida na família, a educação formal recebida através da escola tem um papel fundamental na formação das relações de gênero, visto que a escola na sua função social caracteriza-se como um espaço democrático que deve oportunizar a discussão de questões sociais e possibilitar o desenvolvimento do pensamento crítico na formação das relações sociais e de gênero.

Sales (2010) afirma que a escola está dentre as instituições influentes na construção do pensar e do agir e tem um papel de destaque na construção das relações de gênero. Dessa forma, a escola não pode se eximir da responsabilidade que lhe cabe de discutir determinados temas, tais como as desigualdades de gênero e a diversidade sexual. Para esta autora, desde

cedo é incutido nas crianças uma educação sexista na qual se mantêm papéis sociais identificados de acordo com os sexos.

Entretanto, Sales (2010) acrescenta que, na escola, a visão sexista de mundo materializa-se na fila das meninas, nos materiais didáticos de cunho sexista e na postura dos profissionais da educação que são exemplos da divisão sexual entre as pessoas, dos preconceitos a eles correlatos, os quais são até socialmente incentivados.

Assim, é possível perceber, na escola, a existência de espaços e territórios delimitados para a ocupação masculina e feminina. Esses territórios são construídos, utilizando-se de diferentes artifícios originados nos conceitos pré-estabelecido de masculino e feminino e de relações de poder. As diferenças percebidas entre os sexos, em razão da existência das relações de gênero, são organizadoras do espaço social, ou seja, o fato de as meninas e as moças serem consideradas mais quietinhas e de os meninos e rapazes serem vistos como os mais bagunceiros é levado no jogo de quem ganha e de quem perde (COUTINHO, 2011).

Para o aludido autor, dessa forma, o homem é o forte, quem, na verdade, redigem as ordens, o provedor e, por isso, ao longo da história, foi-se construindo uma mulher frágil, considerada inferior e incapaz. Assim, na nossa sociedade, o masculino é mais valorizado, causando muitas desigualdades construídas desde a educação diferenciada para os meninos e meninas. Enquanto na escola os meninos são incentivados a valorizar a agressividade, a força física, a ação, a dominação e a satisfazer seus desejos, inclusive os sexuais, virilidade, as meninas são valorizadas pela beleza, delicadeza, sedução, submissão, dependência, sentimentalismo, passividade e, o mais agravante, a sexualidade reprimida.

Ademais, a forma de lidar com os sentimentos também é diferente entre meninos e meninas que aprendem a lidar com as emoções de maneiras diversas. Sales (2010) aponta que os meninos são ensinados a reprimir as manifestações de algumas formas de emoção, como amor, afeto e amizade. Por outro lado, são estimulados a exprimir outras, como raiva, agressividade e ciúmes. Entretanto, não deverão chorar porque foram ensinados que “menino não chora”; portanto, “homem também não deve chorar.” Essas manifestações são tão aceitas que, muitas vezes, acabam representando uma licença para atos violentos.

Outro ponto importante a ser destacado é o comportamento do professor ou professora, enquanto educador (a) que acaba por reproduzir o que foi adquirido também na sua construção de identidade de gênero. Silva (2005) afirma que, nas atitudes de boa parte dos professores (as), ainda há um preconceito instituído e manifestado em sua prática pedagógica, a exemplo de separar em fileiras meninos e meninas e repreender um menino que está brincando de boneca.

Desse modo, Felipe (2008) chama atenção para a urgente necessidade de formação de professores que possam atender ao desafio de uma educação com maior equidade de gênero, de modo a criar um espaço de discussão entre os atores envolvidos sobre o papel da educação na produção das desigualdades de gênero, como também refletir sobre a cultura da violência, especialmente na constituição das masculinidades e da cultura da submissão, presente na Educação das meninas.

Ainda para Felipe (2008), as revisões dos currículos e das práticas escolares são necessárias, visto que boa parte deles atua na produção e na reprodução das relações de gênero socialmente construídas, pautando-se em relações desiguais de poder e que, muitas vezes, promovem ou reforçam concepções naturalizadas em torno das masculinidades e feminilidades.

Nesse sentido, Marques (2012) afirma que os conteúdos ministrados nas diversas disciplinas, as rotinas, a utilização dos espaços, as atividades propostas nas instituições escolares, as sanções e até mesmo as linguagens, devem ser revistos para a quebra de paradigmas relacionados à desigualdade de gênero, que poderão ser fonte geradora da violência de gênero mais frequentemente voltada para meninas e mulheres.

No bojo desse contexto, não se pode deixar de pontuar outra questão relevante que são os livros didáticos, importantes veículos de reforço discursivo, cujo referencial indentitário é o masculino. Segundo Nath-Braga (2013), o livro didático insere-se como um instrumento de propagação de ideologias que chega facilmente às mãos de educadores e educandos, oferecendo textos e temas que podem naturalizar a discriminação da mulher e reafirmar uma compreensão patriarcal de família. O grande problema é que nem sempre tais discursos são analisados sob outro prisma, além do que o livro didático sugere. Além do mais, as ideologias podem estar de tal forma naturalizadas que professores e alunos podem não perceber a intenção intrínseca nesse material.

Nath-Braga (2013), ainda acrescenta que o livro didático disponibilizado aos educandos é um instrumento de poder, que pode veicular ideologias dominantes, oferecendo aos alunos uma compreensão, muitas vezes, unilateral dos fatos, naturalizando preconceitos, como isso, fomentando as desigualdades e perpetuando as relações de dominação entre homens e mulheres.

Estudo realizado por Marques; Magalhães (2012) remete-nos à discussão de como questões de gênero não vêm sendo trabalhadas nos livros didáticos. No âmbito da perspectiva dos estudos de gênero, as autoras analisaram dois livros didáticos de ensino de História: História do Brasil, de Rocha Pombo (1958); e História Global: Brasil e geral, do autor

Gilberto Cotrim (2011). O objetivo foi confrontar os livros editados em épocas bastante diferentes e distantes: um deles editado no século XX e o outro, mais atual. Ambos revelam a ausência de uma abordagem de gênero ou de visibilidade para mulheres nos cenários da história; ao contrário, recorrem a um referencial historiográfico eminentemente masculino.

Nos livros de história analisados por Marques e Magalhães, os heróis são quase sempre homens. Em Rocha Pombo, é possível destacar: Pedro Álvares Cabral (o descobridor); Martim Afonso (dono de importante capitania); Tomé de Sousa e Duarte da Costa (governadores gerais); Mem de Sá (expulsou os franceses do Rio de Janeiro), dentre outros. Logo, não há mulheres na História do Brasil de Rocha Pombo. Ou melhor; nessa perspectiva historiográfica, não há espaço para mulheres (MARQUES; MAGLHÃES, 2012).

Sob o mesmo ponto de vista, Franco; Cervera (2006) asseveram que parte dos materiais educativos participa de uma progressiva socialização discriminatória, visto que as mulheres quase não aparecem nos livros didáticos e, quando isso acontece, são mostradas como dependentes, frágeis, sem ambição, pouco inteligentes etc. Os homens, pelo contrário, aparecem como indivíduos valentes e autônomos, ambiciosos e fortes. Ademais, convém lembrar que a linguagem utilizada até os nossos dias, do ponto de vista gramatical, é predominantemente masculina, como exemplo, adotar o gênero masculino como fórmula única para referir-se a homens e mulheres de forma genérica. É necessário, portanto, que o livro didático incorpore e inclua no seu conteúdo as questões de gênero.

No entanto, importa ressaltar que somente os livros didáticos, embora venham a possuir até mesmo uma abordagem de valorização da mulher, por si só não resolverão o problema, pois é preciso também que os professores repensem como tratar essa questão, ou seja, no modo como eles construíram suas identidades de gênero e como eles reproduzem isso no espaço escolar.

Seffner (2008) afirma que essas desigualdades poderão acontecer sem que pai, mãe e professores percebam a dimensão. Desta forma, embora em algumas situações, mesmo inconscientemente, pode-se estar construindo os primeiros passos para a formação de um gênero desigual e, consequentemente, uma violência de gênero.

Assim, ao longo da história da educação formal e informal adquirida, são produzidos e reproduzidos comportamentos que vão dando uma forma às relações de gênero. De acordo com Paechter (2009), essas construções acerca de gênero estabelecem fronteiras entre homens e mulheres, normatizando o que é aceitável para cada gênero, sendo a mulher o lado mais atingido com essa desigualdade, ficando mais vulnerável e, ao desrespeitar essa fronteira, enfrentará a possibilidade de geração da violência de gênero.

Segundo Franco; Cervera (2006), o processo educativo também dá-se pela linguagem do cotidiano. Para as autoras, a discriminação de gênero também é construída a partir da linguagem. Assim, sua desconstrução deverá passar pela eliminação de todas aquelas palavras que mantêm as mulheres não apenas invisíveis, o que é, como dissemos, uma forma de discriminação mediante a exclusão, mas por eliminar também o uso de palavras que as desvalorizam, subordinam e rebaixam as mulheres. Para as autoras, isso poderá ser percebido desde uma simples consulta ao dicionário, em que se pode ver que a palavra homem se define como indivíduo macho da espécie humana, considerado o oposto à mulher, um indivíduo dotado de inteligência e linguagem articulada e, em contrapartida, a mulher é definida apenas como um ser humano do sexo feminino, aquela que atingiu a puberdade, esposa.

Ainda para Franco; Cervera (2006), a linguagem não está isenta das relações de poder entre homens e mulheres, pois está carregada de uma clara intencionalidade por remarcar o caráter de submissão das mulheres, a partir do modo como o feminino é tratado e o masculino supervalorizado. E é fato que existe um uso sexista da língua na expressão oral e escrita, nas conversações informais e nos documentos oficiais, que transmite e reforça as relações assimétricas, hierárquicas e não equitativas que se dão entre os sexos em cada sociedade e que é utilizado em todos os seus âmbitos. Um exemplo dessa linguagem sexista no Nordeste pode ser expresso pelo romance do Senador e Escritor maranhense José Sarney, publicado no ano de 2000, denominado “Saraminda”.

O livro desenvolve a historia de Saraminda, “mulher de peitos firmes” e Cleto Bomfim, um homem rico, dedicado à indústria do ouro. Eles se conhecem em um leilão onde Saraminda pelos seus dotes corporais é oferecida juntamente com outras mulheres pela dona do bordel (SARNEY, 2000).

De acordo com Cortês (2009), o sexismo na linguagem ainda hoje é muito utilizado, o que denota uma linguagem que discrimina as mulheres, ao adotar o gênero masculino como fórmula única para referir-se a homens e mulheres de forma genérica. Nesse sentido, a autora assinala que, na ortografia, geralmente a mulher apresenta-se invisível, tornando-se apenas uma “sombra” do homem, ou seja, quando se fala a palavra “homem”, de forma generalizada. O homem é sempre colocado como o representante da humanidade brasileira e, com isto, a mulher não necessitava ser citada diretamente uma vez que possuía um representante legal, pré-estabelecido pela escrita. Portanto, para quebrar esse paradigma, faz-se necessário criar o hábito da utilização dos termos gerais, ou seja, adotar a palavra "pessoas".

Ainda segundo esta autora, quando se generaliza o termo no “masculino”, para nomear um grupo composto por pessoas de sexos opostos, como por exemplo: “bom dia, alunos”, em

uma sala formada por alunos e alunas, contribui-se para a exclusão das mulheres da sociedade através da língua, embora que involuntariamente.

Com efeito, dependendo do tipo de educação recebida ao longo da vida, esta poderá favorecer uma relação de desigualdade hierarquizada entre o homem e a mulher construídos historicamente, favorecendo a geração da violência, trazendo consequências catastróficas, aumentando as estatísticas de violência direcionada à mulher.

3 VIOLÊNCIA DE GÊNERO